Problema meu, problema dele

Quando cheguei no estacionamento, vi que ele passava na calçada, há uns dez metros de mim. Virei de costas para entrar no carro e pressenti que ele se aproximava por trás. Vinha devagar. Pelo barulho dos passos parecia cansado, sem oferecer qualquer perigo.

-Moço! Ele me chamou.

Para os pedintes, somos sempre moços ou moças, independentemente da idade que tenhamos. Olhei-o de frente. Vinte anos mais velho que eu, no mínimo. As roupas não eram novas, mas ainda eram apresentáveis. Usava um relógio e um anel, que me pareceu mesmo de um metal qualquer sem valor.

-Eu to pedindo pelo amor de Deus para encontrar alguém que me pague um café com leite e um pão com manteiga. Não como nem sei desde quando.

Brasília, nesta época do ano, fica lotada de pedintes profissionais. Vêm da Bahia, de Minas, de olho nas gorjetas dos que vivem na ilha da fantasia. Mas lá, onde moram, muitos que aqui pedem têm casa, comida, não lhes falta nada, ao menos do básico.

-Eu to com vergonha, moço! Acredita! Com vergonha e com fome, nem sei com qual das duas eu to mais. – e começou a chorar. Parou quando pedi que se acalmasse

Eu não tinha nenhuma razão para acreditar naquele homem. Muito menos para duvidar.

Peguei uma nota da carteira, um valor que desse, no mínimo, para um café da manhã mais ou menos.

Ele pegou o dinheiro e baixou o rosto. Se realmente estava com vergonha, talvez fosse ela que pesasse em sua cara. Voltou a chorar. “Essa gente é artista, cara, não acredita não”, me disse uma vez um policial.

Eu disse vai em paz, e ele foi, pedindo a Deus que me abençoasse.

Se ele mentiu, o problema é dele.

Se falou a verdade e eu podendo ajudar houvesse negado ajuda, o problema seria meu.

Ainda de luto

Eu não tenho feicibúqui nem blog apenas para fazer piada sobre o fim do mundo. São espaços de discussão e reflexão, mesmo que  eu passe por chato sendo insistente.

Meu luto pelas crianças mortas no colégio nos EUA permanecerá por mais algumas horas, para completar os três dias regulamentares, ainda mais depois da informação de que as vítimas foram executadas à queima roupa, situação em que não há nem a chance de correr. Principalmente quando são inocentes. Principalmente quando são crianças.

A sociedade norte-americana retoma a discussão sobre o desarmamento. Dizem que lá é bem mais fácil conseguir um trabuco e, se for o caso, dar uma de besta-fera e cometer uma insanidade. Aqui parece que a lei é mais severa. Mas em se tratando de Brasil, sabemos que se a lei aperta, a fiscalização afrouxa.

Lá, eles precisam discutir não apenas o desarmamento, mas também o papel de xerife do mundo que se sempre avocaram para si. O atirador matou inocentes. As forças armadas deles fazem o mesmo desde a segunda guerra, em nome de uma democracia que na verdade é o apelido dos interesses da Casa Branca.

Aqui, além do próprio desarmamento, precisamos que ele seja aplicado de maneira eficaz, já que nossos inocentes também morrem por causa da arma (clandestina ou legalizada, tanto faz) que o pai ou outro parente qualquer guarda engatilhada e não tão bem escondida no fundo do armário.

Essa reflexão pode começar com as seguintes perguntas: você é policial? Você é segurança particular? Você é militar? Então pra que precisa de arma?

O caminho do analista

Muitas vezes é difícil conversar com quem amamos.

O desejo de pais, irmãos e amigos de nos verem bem, ao largo de qualquer problema e dificuldade, faz com que nem sempre sejam eles pessoas certas para desabafarmos, contarmos os motivos daquilo que justamente nos fez procurá-los na busca de apoio.

O afã de nos tirarem da enrascada lhes rouba muitas vezes o que mais queríamos quando batemos à suas portas: ser escutados.

Nem bem desenhamos a confusão em que nos metemos, e já despejam suas experiências de vida, seus conselhos que, pelo que parece, se logo aplicados, nossos dias voltarão ser azuis.

“Veja só o meu caso”, “Seu eu fosse você”, “Você precisa entender que”. E as frases prontas vão se encadeando na conversa de tal forma que, quem olhar de longe, pensará que eles é que precisavam soltar a voz, dissolver aquele bolo angustiado que fica virando dentro da gente quando as coisas não vão bem. No final, agradecemos pelo carinho, pela preocupação, e voltamos pra casa do mesmo jeito que ali chegamos, sem nosso desabafo. A única diferença é que além da cabeça, os ouvidos também estão cheios.

E aí, buscamos o caminho do consultório do analista. A gente paga, mas pelo menos ele fica calado escutando.

Genialidade e perfeição

Dentro da Catedral de Brasília, entramos em contato com um mundo de harmonia entre forma e luz. É como se naquele local de oração, não obstante ser um ponto turístico, recebêssemos a iluminação dos próprios anjos.

Sensação contrária advém dos corredores subterrâneos do Congresso Nacional, principalmente o corredor que liga às comissões ao anexo dos gabinetes na Câmara dos Deputados. Ali, a impressão é a de que estamos em uma mina de carvão acarpetada, onde é impossível ter a mínima idéia se o dia é de sol ou de tempestade lá fora.

Quem trabalha nos Ministérios nas salas viradas para o leste, ou seja, para o nascer do sol, tem a visão privilegiada do céu de Brasília e do Lago Paranoá. Entretanto, nas salas viradas para o oeste, torra-se a tarde inteira sob o sol do Planalto Central, especialmente na inclemência da seca do meio do ano. E aí, haja eletricidade para sustentar o ar condicionado.

Os Palácios da Alvorada e do Planalto detém um conjunto perfeito de concreto, vidro, luz, espaço e ventilação, pelo menos na maioria de seus ambientes. Já o espaço do Museu da República, com seu enorme piso externo de concreto, sem uma árvore sequer, chega a ser impiedoso com o morador de uma cidade que em boa parte do ano é árida e precisa da caridade do verde.

Não me parece, então, que genialidade seja perfeição a todo momento. Mas não é porque os gênios não são perfeitos que não podem ser considerados gênios.

Quem critica Niemayer, não deve manter os olhos apenas onde a genialidade não chegou à perfeição. O reconhecimento mundial ao trabalho do arquiteto talvez signifique que ele a tangeu na maioria das vezes.

E quem o considera gênio, aceite as críticas justamente por isso: genialidade não é exatamente perfeição, pelo menos não sempre.

Qual o sentido?

Quando olhei, o sujeito do carro ao lado almoçava enquanto o sinal estava fechado. E ele era o motorista.

Simples assim: almoçava enquanto o sinal estava fechado.

Quando abriu, naturalmente ele pôs o pequeno prato de plástico no banco do carona, engatou a primeira e saiu com o carro. No próximo sinal fechado, continuaria almoçando.

Eu, que ainda não havia comido nada, me perguntei qual a necessidade daquilo. Será que quando mostramos ao mundo que não nos importamos nem mesmo conosco, passamos a imagem de que somos mais eficientes, mais produtivos?

E produzir em nome de quê? Para quem?

Fomentar, às expensas de nossa saúde, o tal do PIB que nunca nos traz, verdadeiramente, a justiça social, mas apenas dados de ingresso de tais e tais no mercado consumidor?

Enriquecer quem? Os mesmos que enriquecem, sem dividir, há mais de 500 anos?

Não falo de uma ou outra ocasião. Todo mundo, algum dia, precisou almoçar pão de queijo e coca-cola enquanto dirigia. Falo de um modo de vida doente, que há algum tempo a sociedade decidiu (em nome de que interesses?) adotar como normal e eficiente, como se querer almoçar sossegado e sem tanta pressa fosse coisa de vagabundo.

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