Almoço de 1º de janeiro.

Levou à boca o garfo com bacalhau que sobrou da ceia. Ao contrário da noite anterior, quase nada dizia, respondia uma coisa ou outra com vagos monossílabos. E agora preferia o silêncio justamente por isso: por que antes falara demais. Não que houvesse bebido muito, ou muito mais do que estivesse acostumado. É que começaram a falar de política, de escândalos, e ele que já andava até a tampa com muita coisa, não economizou no verbo, sua palavra incendiou a noite, dentro da família fez mais barulho que o foguetório da virada. E azeitado por um razoável tinto argentino, soltou lá pelas tantas, depois que serviram o salpicão:

– Tinha que ter luta armada sim.

E fez-se um silêncio rápido e imediato, igual a quando cai uma taça e todos procuram saber quem foi que reduziu o patrimônio da casa.

Mas para que não houvesse dúvida de quem falou e do que foi dito, acrescentou até mais alto.

– Com sangue e cabeças rolando.

Ao silêncio fugaz, seguiu-se certo constrangimento, mas aí sua ira já viera à tona tal qual comida e bebidas postas pra fora do estômago pelo fígado maltratado pelos excessos.

– A Guerrilha do Araguaia, por exemplo, veio 40 anos antes. – ele estava certo disso, mesmo sem qualquer embasamento histórico. Era só ira e empolgação alcoólica.

Alguém, que tomava só coca-cola, ponderou sobre o estado de direito, as investigações, a Justiça. Outro tomou coragem e entrou na discussão defendendo o voto consciente, a participação política.

– Que nada! Pega o deputado que colocou grana na meia, o governador que pega propina… – e fez um gesto com a mão na altura do pescoço.

– Tudo bem, querem ter peninha? Então pega o cara, uns bons tabefes, uns dentinhos a menos. Ai que delícia um desgraçado desse todo costurado!

Alguém pigarreou, outro se levantou, tentaram mudar de assunto. Ele só queria tocar fogo no mundo.

– Outra idéia é pegar um deles, de madrugada, pintar de verde e pendurar pelado numa árvore no centro da cidade, deixar lá até a hora do almoço. O que acham? Os outros iam pensar duas vezes pra roubar de novo.

A prima de não sei quem, que veio de longe pra festa, se levantou assustada. A sogra da amiga da cunhada foi pegar sobremesa e não voltou mais. A mulher, ruborizada, também o deixou ali sozinho, pregando para si mesmo, olhando a fumaça que sobrara da queima de fogos naqueles primeiros minutos nublados do novo ano.

Agora, no almoço, mastigava a comida passada da véspera, mas também a ressaca física e até certo ponto moral. Olhando nos olhos de cada um, deu-se conta de seus excessos, nem tanto alcoólicos, mas sim verbais. E em algum momento dos comentários sobre a noite anterior, sua mulher tentou a defesa tardia do marido.

– Ele falou aquilo de brincadeira. Na verdade defende a paz como instrumento de mudança, que a coisa tem que se ajeitar é pelo voto, que quem roubou tem que ir pra cadeia e devolver o que roubou. Nada dessa doideira de cortar cabeça, de mandar político pro inferno.

Ele permaneceu calado, mastigando a comida, a ressaca, os pensamentos. Mas antes que o silêncio pudesse ser tomado por concordância completa com o que a mulher dissera, falou com a bochecha gorda de comida no canto da boca:

– É, mas que dá vontade, dá.

E engoliu.

3 comentários em “Almoço de 1º de janeiro.”

  1. Mesmo a base de coca-cola, este é um desejo oculto de todo ser humano consciente. Dá muita vontade!

  2. Muito bom! Adorei quando você escreve: em pegar um deles pintar de verde e pendurar na árvore… , concordo: “que dá vontade dá”.

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