As mesmas noites felizes.

Quando a noite de sábado caía por completo, e a escuridão tornava-se finalmente irreversível, ele punha seus CDs de jazz ou blues e começava a arrumar toalha, pratos e talheres para o lanche. Devido à ocasião do dia, a mesa ganhava um pouco mais em variedade. No lugar do pão integral e do queijo branco dos dias úteis, havia salame ou presunto e muçarela, juntados na baguete com gergelim da padaria de sempre.

– Quando eu era pequeno, a gente chamava de bengala esse pão magro e comprido. – e ele puxava pela infância nos subúrbios do Rio, repetindo a cantilhena da história do pão. E insistia com a mulher, mais uma vez. –  Agora é essa frecura de se chamar de baguete. E ele torcia o nariz, espezinhado pelos modismos da modernidade.

Abria também o vinho italiano, o mesmo. Sacava a rolha e esperava que o cheiro viesse ao encontro das narinas. Imaginava-o tomando a sala, escapando pela janela e passando a ser mais um dos perfumes do jardim do prédio. Colocava a taça cheia entre os olhos e o lustre que pendia acima da pequena estante de livros. Talvez mais do que o sabor e o cheiro do vinho, gostava de ver atravessando a taça bem desenhada e ordinária de supermercado a luz fraca que era seu conforto e seu remanso da semana sempre difícil.

– Meu sangue tem a cor desse vinho contra a luz, italianos os dois… e ele repetia, já tendo deixado para trás o porto do estado normal, mas ainda bem distante da outra margem, a da embriaguez. Navegava já nas águas da sonolência, e invariavelmente nelas naufragava embalado por Miles Davis ou John Lee Hooker, quando não este, aquele.

Aos domingos, o costume era outro e, em igual tempo, o mesmo. A mesma pizzaria com seus bancos extensos de madeira.

– Melhor do que essa gente em casa morrendo de depressão no sofá, de frente para o programa semanal de variedades. E assim justifcava o que, divertido, reconhecia como falta de originalidade.

Mandava que descesse uma taça de vinho chileno, e sempre lamentava que os italianos só fossem servidos em garrafas.   

– Garrafa é cara em restaurante. Não pago. – e repetia o que dissera uma semana antes, na retrasada, e de tanto dizer, já se tinha a impressão de que nascera com opinião formada sobre o assunto. E sustentando, ainda por cima.

Quando a margherita chegava e seus tomates e majericão inebriavam o ar, o garçom quase nem esperava, pois já era certo o pedido.

– Outra. – e apontava a taça.

Depois que comia, e novamente no mar sonolento do vinho, pegava sorrindo a mão da mulher, e após três suaves pancadinhas, observava.

– Que marido mais sem criatividade você foi arrumar, hein?

Pedia a conta e olhando feliz a noite, a caminho do estacionamento, dava por encerrado o fim-de-semana, torcendo para que os dias passassem rápido e que logo fosse outra vez sábado.

2 comentários em “As mesmas noites felizes.”

  1. Raquel Madeira

    Rotina faz parte da vida. Não dizem que criança gosta (precisa) de rotina. O que somos senão crianças crescidas. O melhor de tudo é ter um marido “sem criatividade” cheio de poesia.

  2. Denise Giusti

    Bela crônica, que saudade que dá destas noites de domingo com vocês!!!! Arrivederci!!

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