Quando a propaganda é espelho da desigualdade

Desde que alguém percebeu que os veículos de comunicação, além de levarem informação e entretenimento, poderiam se tornar ótimos vendedores, não é exagero imaginar a propaganda como espelho do pensamento e dos anseios de uma sociedade.

Creio que tardiamente tomo conhecimento do site publistorm.com e tenho acesso a uma postagem de quase três anos (http://migre.me/fXKUs). Quem acessar, verá peças publicitárias que, se veiculadas hoje em dia, seriam objeto não apenas de denúncia aos conselhos de publicidade, mas às próprias barras da Justiça criminal.

Em um deles, um homem dá palmadas no traseiro da esposa, como se fosse ela uma criança. No outro, outro homem pisa um tapete que tem na borda a cabeça de uma mulher, uma imitação grotesca daqueles tapetes bem cafonas feitos com pele de urso ou tigre, e que em alguma vez já vimos em filmes antigos ou quiçá mesmo em cores vivas.
Homem batendo

Homem pisando
Os anúncios foram feitos para ser engraçados à época, calculo eu que por volta dos anos 1950, e, se hoje causam indignação, traduzem a visão ocidental e oriental – que, ao que me consta, em nada é superior à primeira quando o assunto é relação homem/mulher – que se possuía dos papeis masculino e feminino nesse planeta de desigualdades.

O ponto positivo é a certeza de que houve progresso na percepção sobre esses papeis, e também sobre a de outros que, ao longo da história da propaganda, devem ter servido de piada infeliz dos publicitários.

Mas o progresso não é ainda satisfatório.

Talvez se aproxime disso quando finalmente nos insurgirmos contra o tratamento de mulher objeto dado principalmente às louras nos comerciais de cerveja, ou quando não aceitarmos que, em um país predominantemente mestiço, os anúncios ainda pareçam ter sido gravados na Suécia.

A voz

Justamente aquele pedaço tolo de papel, que jamais poderia sumir, foi o que você perdeu.

Notas antigas de mercado, tanto número de telefone pro qual você não liga, recados que pelo tempo perderam o sentido, e aquele monte de outros papeis que já deveriam estar no lixo desde o século 18.

Mas você foi perder logo a mísera metade do guardanapo onde anotou às pressas, com letra corrida e pior do que costuma fazer, aquele endereço, o valor a ser pago, o nome de quem procurar quando chegasse onde ainda precisa ir, o assunto a ser tratado.

E o papelzinho ficou ali, rolando pela estante, quatro, cinco dias, sujeito a ser engolido pelo mistério das coisas que desaparecem dentro de casa sem explicação. Parece até que ele avisou: eu vou sumir e você vai me dar valor.

Junto, quase na borda, estava o número do celular de quem te passou todas as informações. É claro, você não tem de cabeça o número da pessoa. Aliás, na metade da manhã, já não cabe mais nada em sua cabeça.

Derrotado pela fatalidade imbecil, você olha em volta: não despejou o lixo, o detergente acabou e você nunca que compra, o vazamento da pia só aumenta. A vida besta também está te vencendo, em silêncio e cínica, como o mais perverso dos inimigos. Você pega o carro com vontade de sumiços.

Pode parecer inconcebível que um pedaço de papel idiota possa fazer tanto estrago, mas quando você se dá conta, ele o levou ao balanço da contabilidade de sua vida amorosa, profissional, financeira e qualquer outra vertente que a vida de uma pessoa possa ter. Desanimado, você puxa o extrato. Não parece haver saldo, só déficit.

À noite, na cama, lugar onde você queria ter passado todo o dia, você pede que o sono seja pesado e o amanhã seja mais leve. E realmente você acorda melhor, embora não possa garantir a si mesmo que esteja bem. O lixo e o vazamento ainda estão por ali. O papel não apareceu.

Esperando o diabo do pão pular da torradeira, você meio que ouve uma voz raspar em seus ouvidos: cara, você não é tão mau assim nem culpado de tudo.

A voz parece convencida do que diz.

Só falta agora você se convencer.
cochicoho

Carvalhido, o bem resolvido

Carvalhido tem 50 anos. Ficou cego aos 20. Tomou um tombo besta, bateu de leve a cabeça. Foi cegando ao longo do tempo, cada dia enxergando menos, até que um dia não viu mais nada.

Ninguém sabia que era possível cegar assim. Pensavam que se nasce com a escuridão das vistas, ou nela se entra de uma hora para a outra. Carvalhido foi aos poucos, como quem entra em água fria.

Cego

Mas os olhos é que ficaram cegos, não a memória.

Carvalhido guardou na lembrança as flores, o voo dos pássaros e o tamanho do mar.

Assim, decidiu ver o mundo pelo lado bonito que conheceu enxergando.

Quando encontra um conhecido, não deixa passar:

-É um prazer revê-lo! – e dá uma risada deliciosamente sacana.

E se você disser que ele é exemplo, lição de vida, vai ouvir de pronto:

-Sou porra nenhuma! – ele desdenha rindo, e tenta lhe acertar carinhosamente as pernas com a bengala.

Pelé: rei de boca fechada

Pelé foi um dos homens públicos mais simples e acessíveis que entrevistei em meus tempos de repórter.

Em uma das vezes, fui andando a seu lado pelos corredores do Copacabana Palace, no Rio, gravando suas declarações até que ele chegasse no carro, já na calçada do hotel, e de despedisse com um aperto de mão.

Na outra, ele era ministro do governo Fernando Henrique e participava, também no Rio, de algum evento ligado às paraolimpíadas. Estava sentado na tribuna e cercado por seguranças. Chamei-o pelo nome e mostrei o gravador com o timbre da emissora para a qual eu trabalhava. Na hora mandou que os seguranças deixassem eu me aproximar.

Trabalhei com um produtor de vídeo que fez trabalhos com o rei da pelota. Me contou que, certa vez, foram gravar na casa do Pelé, e, terminado o trabalho, começaram a sentir cheiro de churrasco. Para surpresa geral, aparece o próprio Pelé servindo picanha, coração e linguiça a toda equipe de filmagem, inclusive ao pessoal que carrega equipamento pesado.

Por isso tudo, Pelé talvez seja minha experiência comprovada de que nem sempre as atitudes das pessoas se coadunam com certas coisas que dizem.

Ainda outro dia ele pregava que era melhor a população esquecer as manifestações, a indignação com a patifaria histórica desse país e tratar apenas de apoiar a seleção.

Há duas semanas, a Folha de São Paulo trouxe pequena reportagem sobre a escuta gravada de um diálogo dele com o ex-presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, na Casa Branca, em 1973 (http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2013/08/1330156-nixon-e-pele-discutem-futebol-em-audios-divulgados-pelos-eua.shtml). Nixon pergunta a Pelé se no Brasil falamos espanhol. Pelé responde português e acrescenta: é tudo a mesma coisa. Ficou a sensação, ou quase uma certeza, de que se Nixon perguntasse se nossa capital era Buenos Aires ou se andávamos de tanga e arco e flecha pelo meio das ruas, Pelé responderia “sim, quase isso”.

Se ainda estivesse jogando, poderíamos dizer: atenha-se às quatro linhas, esse é o território que você domina como ninguém. Evite sair dele.

Me veio à cabeça outro homem público, Romário – este, dos mais sisudos e arredios que entrevistei – dizendo: o Pelé de boca fechada é um poeta.

PeléRomário

 

Café passando, cabeça pensando

CaféVocê acorda e quando se dá conta do dia e de você mesmo, repara que, paulatinamente e enfim, está tendo a bendita complacência com as pessoas, perdendo a mania de querer que elas sejam o que você mesmo não consegue ser.

O que pode ter acontecido durante o sono pesado e bem dormido? Você se pergunta enquanto despeja café no coador de pano. Procura na memória da noite se sonhou com algo ou alguém, porque, além de tudo, acordou convicto de que se as pessoas não são o que você sonhava, isso não vai fazer a mínima diferença na tua vida.

É quando passa pela cabeça a imagem de um ou outro alguém. A água ferve e você reconhece que é tempo de dar valor aos que decididamente se importam com você. Aqueles que, por exemplo, podem reaparecer, sem avisar, do fundo do passado feliz, para abraçá-lo somente pelo que você é; não vieram com moedas de troca nos bolsos, não fizeram arquitetura da utilidade que você possa ter para eles.

Você também está aprendendo – ora, mas não era sem tempo! – que se as coisas não saíram do jeito que você esperava, em vez de pisar no lodo da decepção, deve desembrulhar o pacote do jeito que mandaram, sem reclamar da qualidade do papel do embrulho nem dos nós que deram no barbante.

É que finalmente, depois de uma vida inteira permitindo que tempestades inúteis matassem as flores do jardim, você chegou à conclusão de que é melhor mesmo aceitar as coisas como elas são, e melhor ainda fica porque não se trata de conformismo resignado com as injustiças do mundo que você sempre quis mudar.

E quando você se toca do que está pensando, o café já desceu inteiro pelo coador de pano, e com mais vontade que o costume, seu aroma tomou conta da casa inteira, como as vozes das crianças nas horas em que elas chegam correndo e felizes.

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A Bienal do B e o habitat natural da poesia

A Bienal do B do Açougue T-Bone prossegue hoje, 29, com a leitura dos poemas de mais cinquentas autores. Ontem e terça-feira 50 poetas se apresentaram. Tive o privilégio de ser um deles.

Democracia cultural é a marca principal do T-Bone, que funciona como açougue durante o dia e centro cultural à noite. Pode parecer estranho, e é. Estranhamente maravilhoso e democrático, em um país e em uma cidade que, na maioria dos casos, trancafiam a cultura em locais a preços inacessíveis. No T-Bone, a cultura é de graça, é só passar por lá.

Mas a leitura de poemas é só o principal pretexto do evento que democratiza o acesso ao mais recluso dos gêneros literários, que é a poesia.

Além do recital, há a bienalzinha, comandada pelo poeta Vicente Sá (foto) e música de qualidade. Hoje, quem se apresenta é Afonso Gadelha.

E os debates, mediados por mim, que trazem como tema a produção cultural no Distrito Federal. Por meio deles, podemos conhecer o que de relevante tem sido feito, por exemplo, na periferia da capital do país. Destaco Markão Aborígine, com quem conversei ontem sobre produção poética e que leva poesia às áreas carentes – de tudo, e não só de cultura –, mostrando que aqui pelo centro oeste não se faz apenas música para quem pegou a mulher com outro na cama.

E no meio disso tudo, a vida da cidade acontecendo normalmente ao redor, enquanto os poetas declamam no palco montado na calçada. Ontem, no fundo do recital, ouviam-se os gritos das torcidas do Flamengo e do Corinthians torcendo nos bares em volta.

Portanto, é bem possível que um verso seja momentaneamente engolido pela buzina de um carro ou por um bêbado que grita impropérios na outra calçada. Ruim? Não, o habitat natural da poesia é esse mesmo: tudo o que a toda hora nos cerca em todos os lugares e momentos.
*
E por falar em Bienal do B, hoje prossigo com os lançamentos de Histórias de Pai, memórias de filho e Voando pela Noite (Até de manhã) – 2ª edição. A partir das 19h.

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Quando usávamos ficha de orelhão

Voando pela noite (até de manhã) é o meu primeiro livro. Foi lançado em 1996 e chega à sua segunda edição com a emblemática capa em preto e branco reestilizada. O automóvel é um dodge charger RT 1973, de um conhecido meu à época. O cenário é o antigo Bar da Borda, no Grajaú, no Rio, que até onde eu sei virou uma oficina mecânica. Os modelos e figurantes são todos meus conhecidos, que aceitaram participar em troca da camaradagem e de uma noite de segunda-feira fria e bem divertida, eu me lembro. Eu apareço no canto da foto, para compor o quadro, um Hithcock suburbano vagando pelos bares. A foto é de Lafayte Máximo, cujo cachê foi um abraço sincero e fraterno.

O texto original foi mantido, recebeu apenas as normas do estúpido novo acordo ortográfico. Eu e a Editora 7Letras achamos melhor não reescrever nenhum trecho, pois não haveria muito sentido reescrever. Seria como se uma banda famosa resolvesse regravar seu primeiro disco. O livro vale também pelo vigor dos meus primeiros contos, eu penso.

Aliás, a comparação com bandas de Rock é cabível, pois é o que embala as histórias passadas na virada dos anos 80 para os anos 90, em um Rio de Janeiro noturno e enfumaçado de festas e bares, e foi escrito ao som de U2, Nirvana, Legião, Barão e afins.

Nessas histórias, meus personagens masculinos procuram amor, prazer e sexo, mas sem encontrar o que verdadeiramente buscam (e sem saber que buscam): o sentido de existir para uma geração que não entendeu seu papel no mundo e em um país recém-democratizado.

Dezessete anos depois de ter sido publicado, o livro é também uma viagem no tempo devido à tecnologia da época, hoje totalmente ultrapassada. Seus personagens telefonam de orelhões com ficha e deixam recado em secretárias eletrônicas de fita K7. Me diverti muito com isso, lendo os contos outra vez após mais de dez anos sem nem pegar no livro.

Voando pela Noite (Até de manhã) foi finalista do Prêmio Jabuti na categoria contos no ano seguinte (1997). Não foi nada mau para um livro de estreia, não é mesmo?
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