Banguelinha.

– Papai, Deus é doido mesmo, viu?

Pego de surpresa, assim do nada por aquele conceito inédito da divina providência, o pai parou de mastigar e ficou olhando-a. A metade da folha de alface para fora da boca pedia explicação à pequena.

Não se fez de desintendida, se o que queria realmente era mostrar o que pensava. Para isso, exibiu os dentes alinhados em um riso aprontado. Em lugar dos dois de cima, apenas a gengiva vazia, o vão por onde também se despedia a primeira infância da menina.

Desfez o riso, mudou para uma cara solene. Afinal, era o que merecia opinião tão polêmica.

– Ora, para que tirar os nossos dentes e colocar outros no lugar? Por que não faz a gente logo com os dentes que vão ficar para sempre?     

O pai, que de dentes só entendia de escovar, e mesmo assim com ressalvas, baixou os olhos até o prato. Sumiu na boca a outra metade da alface. Calou-se frente à lógica daquela fervilhante cabecinha de seis anos.

Pratos e talheres tocavam-se alegres, disputavam o volume com as conversas no domingo ensolarado da cantina.

Ela deu uma volta na mesa, cutucou uma das irmãs, fez uma bola com miolo de pão. Quando chegou-se de novo, o pai já estava esperando o café. Pôs o dedinho no relógio dele.

– Pai, pra que é esse ponteiro fininho?

Agradeceu com o gesto ao garçom a xícara e olhou o que a mãozinha apontava.

– Ele marca os segundos.

Mas era muito pouco para tanta curiosidade sobre tudo. Na escola, só fora até as horas e os minutos.

– Os segundos são maiores que os minutos?

– Não, são menores.

– E o que é maior dos que os minutos?

– As horas, ora!

– E o que é maior do que as horas?

E como já conhecesse os encadeamentos da filha, foi logo emendando.

– Os dias são maiores do que as horas; as semanas são maiores do que os dias; os meses são maiores do que as semanas; os anos são maiores do que os meses e os séculos são maiores do que os anos.

Mas ela não estava satisfeita.

– E o que é maior do que os séculos?     

O pai, num último fôlego:

– Os milênios.

Calou-se. Desses, ainda não ouvira falar. Mas pensou bem, e arriscou.

– E tem maior que os milênios?

O pai, já meio orgulhoso daquela persistência, disse que havia.

– O quê é? E ela arregalou imensos olhos que aguardavam revelação.

– O meu amor por você!

Ela, então, mostrou sua janelinha no riso espontâneo, de onde vinha toda a luz da tarde.

5 comentários em “Banguelinha.”

  1. Raquel Madeira

    Você nos deixou registrado para sempre um momento tão lindo da nossa querida curiosa, mas principalmente da nossa convivência em família.

  2. Meu filho em noite enluarada grita aflito: Avião, avião, não bate na lua não!!!

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