Carvalhido tem 50 anos. Ficou cego aos 20. Tomou um tombo besta, bateu de leve a cabeça. Foi cegando ao longo do tempo, cada dia enxergando menos, até que um dia não viu mais nada.
Ninguém sabia que era possível cegar assim. Pensavam que se nasce com a escuridão das vistas, ou nela se entra de uma hora para a outra. Carvalhido foi aos poucos, como quem entra em água fria.
Mas os olhos é que ficaram cegos, não a memória.
Carvalhido guardou na lembrança as flores, o voo dos pássaros e o tamanho do mar.
Assim, decidiu ver o mundo pelo lado bonito que conheceu enxergando.
Quando encontra um conhecido, não deixa passar:
-É um prazer revê-lo! – e dá uma risada deliciosamente sacana.
E se você disser que ele é exemplo, lição de vida, vai ouvir de pronto:
-Sou porra nenhuma! – ele desdenha rindo, e tenta lhe acertar carinhosamente as pernas com a bengala.