Poemas paras Brasília

Brasília está fazendo aniversário e trago em meu blog poemas que escrevi para a cidade em que moro há 26 anos.

Não são poemas deslumbrados pela capital do país; ao contrário, trazem minha visão crítica e até mesmo ácida sobre a cidade, sua gente e seu modo de vida, o que não significa que eu não goste daqui.

Boa leitura!
*
Eu sempre vou morar na 405 norte *

Dona vizinha me para e conta
de quando chegou aqui em 1980,
dos filhos formados, que cresceram
brincando na portaria.
As sombras verticais da tarde
também seguirão minhas filhas até o infinito, eu comento,
e dona vizinha ainda me conta que os dela
nunca deixaram de correr na portaria da memória,
que até hoje brincam na portaria da lembrança
(dona vizinha tem nos olhos uma saudade
que vai do primeiro ao último dos pilotis do bloco.)

Eu gosto da dona-de-casa
que passa com hora marcada
para fazer a unha,
da estudante que some no arvoredo
a caminho da universidade,
de quem veio do Maranhão
do Piauí
e nunca mais voltou.

Há sempre lua alta que a madrugada derrama
nos azulejos da cozinha
quando bebo água no meio da noite.
Há sempre uns pingos da última chuva
pesando nas folhas,
virando breves cristais de sol
nas manhãs afobadas da minha pressa.
Há sempre o vento dando no alto das árvores,
e o barulho das árvores conta de um tempo que não volta,
mas que também não vai embora.
(Por falar em tempo, dona vizinha,
vamos conversando no caminho,
se não perderemos
o baile de inauguração da cidade)

‘Brasilha’ da fantasia*

Ninguém acorda com culpa na Ilha da fantasia,
ninguém se sente culpado na ilha da fantasia
e não ser de todo inocente
é sempre muito normal na ilha da fantasia.
Na ilha da fantasia não interessam
os olhos inocentes dos filhos antes de dormir
os filhos apontados na rua
o que dirão os colegas na escola
e as crianças dos vizinhos.
Não fere arde envergonha
o olhar confuso das crianças
ao ler o que sai nos jornais.

Vamos ao que importa na ilha da fantasia:
a gratificação a estabilidade
a comissão as garantias
o adicional os benefícios
os 18% que me cabem
se não vou aos jornais
e conto da parte que não te cabia mas você levou
na ilha da fantasia.
Eu te filmei eu te gravei
eu sei de tudo da tua
deliciosa doce vida,
portanto, morreremos de mãos dadas
abraçados
atirando uns nos outros
até que nos esqueça a fugacidade da imprensa
e nos confortem as mãos amigas da Justiça
o entendimento do digníssimo desembargador
a interpretação da lei no tribunal superior.

Venha a meu gabinete
passe em meu escritório
vá com sua mulher lá em casa
daremos uma festa
faremos um jantar
quem sabe outros agitos até de manhã.
Ninguém é culpado na ilha da fantasia
ninguém deve nada
à mulher que espera o ônibus
e não combina bolsa e sapato,
à outra que atravessa a BR
longe da passarela,
nenhuma explicação merece o homem cansado
que sai tão cedo e volta tão tarde
levando no rosto
o resto de sonho desfeito.
Todos deitam sem culpa na ilha da fantasia
depois que se apagam as luzes lilases das festas
que se esvaziam as travessas
sossegam as bebedeiras
calam-se os vômitos
encerra-se o pó
e a paz reina envergonhada.

Cidadão comum

Brasília é uma festa,
Eu posso ver daqui de fora
Olhando lá para dentro
As pessoas dançando
Ouvir as músicas
As conversas
Risadas
Dá para sentir
O cheiro da comida
E dos perfumes.
Brasília é uma festa
Sempre vejo daqui de fora
Olhando pela janela
Sem nunca ser convidado.

Brasília como pano de fundo

Em um lobby de hotel
N’algum restaurante caro
Em um meio de semana
No almoço jantar happy hour
(Claro, fora da agenda oficial).
Olhe discretamente
Esses homens de terno, em volta.
Todos são suspeitos
Até que se prove o contrário.

Os pobres que só têm dinheiro

A mendiga alcoólatra
que perambula pela quadra 213 norte de Brasília
dança alegre sua valsa imaginária
enquanto passam taciturnos
carrancudos
empedernidos
cara de quem cultiva ódio feito planta
cria raiva feito bicho
os pós-graduados com mestrado
doutorado na França
a caminho de suas 4 suítes
três vagas
lazer completo.

A mendiga alcoólatra vagante errante
da quadra nobre de Brasília
sorri dá bom dia boa tarde boa noite
estando limpa ou bêbada
enquanto passam olhando
pro chão pra frente nunca para os lados
nunca para ninguém
cara de quem esse mundo não está à sua altura
de quem a humanidade não os merece
os superintendentes
os assessores especiais dos juízes federais
os capachos dos ministros dos tribunais
voltando da rotisserie
do footing
da adega
a caminho de seus 354 m² de área privativa
alto padrão com vista livre para o parque.

Entre um lado e outro
lá passo eu em meu neutro estar
sem muita alegria nem tanta tristeza
pedindo a Deus que tenha piedade
dos pobres e miseráveis.

E dos verdadeiramente pobres e miseráveis.

Os Brasis de Brasília

“Alguém me dá uma ajuda
Pra mim comprar uma cesta básica?”,
grita lá embaixo o Brasil
com fome e sem emprego
na tarde de sábado
entre os vãos dos prédios
com vidro fumê espelhado
mármore e granito
de Brasília
(a capital de todos os brasileiros,
dependendo, é claro, de quem
são esses brasileiros).

Lá em cima, nos quatro quartos com suítes,
nas coberturas com área privativa,
o Brasil com salário em dia
e quinquênio
não ouve:
cochila no sofá depois do almoço,
vendo seriado na Netflix.

Moro em Brasília

sinto
falta
de
andar
com
os
pés
e
descobrir
livrarias
e
cafés.

Correio Braziliense, janeiro de 2024

Brasília em janeiro*

Árvores tortas
decalcam o maior céu do mundo:
Penso nelas como gestos
de quem se afoga,
de quem dá adeus da plataforma.

O sol prateia nuvens musculosas.
Atravessando o Lago,
a vela persegue
lembrança de baía.

Em algum lugar
bem próximo
do horizonte
a tempestade
espreita o fim do dia.

Brasília*

Nos palácios e tribunais
homens de carne e osso
(apenas de carne e osso)
passam falam
nos olham por cima
(como se fossem imortais).

Calçadão Conic – Conjunto Nacional*

O homem na cadeira de rodas segura o saco de mijo com uma das mãos,
com a outra
ergue a receita amarela de sempre
repete a cantilena pesada
feito o dia nublado e quente.
Dó piedade tédio asco indiferença:
é a praxe da maioria,
mas até mesmo “foda-se o homem com saco de mijo
na cadeira de rodas”
poderá ser dito ou pensado,
a depender do dia
e de quem passa.

Logo ali, sentado no chão,
o velho engraçado sem pernas
conta alto piadas indecentes.
Horrorizada,
a beata ao lado sobe a voz estridente
que inferniza em nome de Deus.
Pouco à frente, os trigêmeos cegos
cantam e tocam baião parecendo Rock.
E duas vezes ao dia passo eu,
com o coração a pedir esmolas.

Brasília em agosto

Céu azul
Sem acontecimento de nuvens,
Estático oceano invertido
Inerte na sonolência
Feito quadro
Empoeirado de brechó.
Céu azul de tédio
Onde o tempo não passa
A vida não age
E as árvores marrons
Paradas sem vento
São papéis amarelos
Que aguardam carimbo e despacho
na cidade-repartição autarquia ao ar livre
(ar morno e pesado de mata enfumaçada)

Sinalização*

Sr. visitante,
nesta cidade evitamos buzinar.
E cumprimentar o vizinho.
E dar bom dia no consultório.
E puxar papo na fila.
E tamborilar no elevador.
E cantar na condução.
E abraçar e beijar
quem acabamos de conhecer.

Denuncie,
se vir alguém
com alegria de viver.

Brasília em setembro

No fim da tarde
no cruzamento de avenidas aflitas
além da fumaça do diesel
acima da acidez do chorume
resistia o cheiro novo
da primavera anunciada.

Setembro em Brasília

O vento arrasta as últimas folhas secas e avisa que a chuva não tardará tanto mais, embora não venha amanhã nem depois, ou no final da outra semana.

Avisa que ela está em casa, preparando-se para sair, feito mulher com seus longos banhos, colônias e cremes.

Antes de vir – lembra o vento – a chuva passará na casa da primavera, e juntas buscarão a esperança, trazendo-a criança para todos nós.

*Poemas do livro De Tanto Bater com o Osso, a Dor Vira Anestesia

Entrevista

O portal Livros Para Sempre , uma página dedicada não apenas à literatura de uma forma geral, mas principalmente à divulgação de concursos literários, também faz entrevistas no Instagram, as famosas lives, com escritores.

Um deles, fui eu, que bati um papo bem bacana com o Rafael Moraes, fundador do site.

Espia só.

Decoração (poema inédito)

Milho Verde (Serro), MG

Meu coração
É uma parede
infiltrada
Descascada
Em que um teimoso
Quadro desbotado
Resiste pendurado
Com sua paisagem
de casinha no campo
Jardim
Quintal
Flor
Pomar
passarinho
riacho correndo em frente.
E o sonho bonito
de uma vida feliz
que se perdeu.
*
André Giusti, abril, 2024

Poema finalista

Meu poema Agosto, da Série Calendário, é finalista do Prêmio Off Flip 2024.

Nesse print da relação de finalistas, ele aparece ao lado de meu pseudônimo, Etta James, homenagem a uma das divas do Blues.

Agosto ganhou uma versão belíssima em vídeo feita pelo poeta Rogério Bernardes.

O resultado final do concurso é esperado para os próximos dias, mas estar entre os finalistas, para mim, já é prêmio. O que vier é lucro.

Agosto

Folhas duras caem ao modo
De uma lisérgica
Chuva bíblica ressecada.
A depender do ângulo
O tímido sol do inverno cínico
Lhes emprestará
Fantasia de leves
Pepitas de ouro.
Um morno vento breve
As envolve em ciranda
De redemoinho
E quase involuntariamente
pedimos que vá embora
O que é velho
O que acabou
E precisamos aceitar.
Repentinamente otimistas
Enxergamos
Nesse movimento
Incentivo a revoluções
Que comecem
Por nossas próprias vidas.
Colegiais blasfemam
Contra o fim das férias
um cansado herói da segunda guerra
ergue um dedo para
lembrar aos que não viveram seu tempo:
mês de presidentes mortos!,
e os ipês amarelos
berram entre buzinas e motores
da ardida tarde de fumaça no horizonte
e desespero de pássaros
tatus e cobras na reserva em chamas.
Mês do desgosto…
Quanta injúria
Na pobre rima cretina
E no posto de ser apenas
O consolo de que setembro não tarda.

Com a palavra, a ciência

Estudos médicos recentes revelam que não foram encontrados quaisquer benefícios físicos, entre os quais os cardíacos, que pudessem ser atribuídos ao consumo de vinho.

Em compensação, na alma de que bebe vinho, foram detectados elevadíssimos níveis de poesia, sonhos e vontade de viver.

Dica – Desforra, de Stella Maris Rezende

Stella Maris Rezende é uma das grandes vencedoras do Prêmio Jabuti, essa espécie de Taça Libertadores da literatura brasileira.

Em 2012, ela conseguiu a proeza de faturar três canecos em uma única edição do prêmio.

Apenas A Mocinha do Mercado Central levou dois: o de melhor livro juvenil e o Livro de Ficção do Ano.

Aliás, A Mocinha do Mercado Central é um livro juvenil que pega de jeito qualquer adulto.

E numa época em que o Jabuti premiava os três primeiros colocados, outro livro da autora, A Guardiã dos Segredos de Família, ficou em segundo lugar.

Ou seja, Stella ganhou dela mesma.

Agora, a escritora dá um tempo na literatura infantil (repito: os livros juvenis de Stella Maris seguram qualquer leitor adulto) e entra no mundo dos livros adultos.

Stella Maris Rezende – Três Jabutis em uma única edição (Foto arquivo pessoal)

Desforra é a história de uma preparadora de originais de uma editora que pega um livro cuja autora desistiu de publicar.

Nas mãos dessa mulher, os personagens abandonados ganham vida nova, colocando em cima da mesa temas como desigualdade social, racismo, machismo e violência contra a mulher.

A narrativa é ágil, criativa e original, para a qual o leitor precisa ficar atento, pois o ir e vir das situações acontece de maneira rápida, sem dar chance à monotonia.

Eu não sou crítico literário que tenha um mapeamento completo do que irá concorrer aos prêmios; sou no máximo um “fazedor” de humildes resenhas com a pretensão de ajudar autores dos quais gosto e também indicar aos leitores coisas que considero de qualidade.

E dentro desse espectro, me arrisco a dizer que com Desforra, Stella Maris Rezende é candidata a levar mais um troféu para decorar a estante.

O dia em que tomei um esporro do Ziraldo

Em minha vida de repórter, entrevistei muita figura ilustre, que de uns anos para cá se convencionou chamar de celebridades

Um desses figurões foi Ziraldo.

Em 2002, houve o centenário de nascimento de Carlos Drummond de Andrade, e eu propus à direção da Rádio CBN, onde eu trabalhava na época, fazer um programa especial de uma hora de duração.

Aceitaram e , claro, a batata quente caiu no meu colo. Eu já tinha trabalho de sobra e ainda inventava mais.

Pois bem, na lista de entrevistados estava o criador do Menino Maluquinho.

No dia da entrevista, havia alguma confusão no estúdio marcado para a gravação. Não me lembro mais qual era o problema, mas sei que entrei desconcentrado para perguntar ao Ziraldo o que eu queria saber e, por infelicidade, perguntei se ele conhecia o Drummond.

Tomei uma espinafrada que quase perdi o rumo.

“Porra! Claro que eu conhecia o Drummond. Substituí ele no Jornal do Brasil. Vai se informar antes de perguntar as coisas”, e ele justificou a fama de ranzinza e grosso que ouvi de algumas pessoas que com ele trabalharam.

Dizer a um jornalista que ele está desinformado é uma das maiores ofensas que se pode fazer a um profissional de imprensa, mas eu precisava da entrevista, Ziraldo era peça fundamental para o programa.

Pus a bola no chão e consegui tocar o assunto. Conversei com Ziraldo por quase uma hora, tempo em que ele imitou o poeta atendendo ao telefone (hilário) e disse que Drummond adorava falar, às gargalhadas, obscenidades e devassidões.

Contou ainda que numa roda de conversa entre poetas já de certa idade, um deles (pela minha memória era Otto Maria Carpeux) começou a destilar maravilhas sobre a velhice, tais como a experiência e a sabedoria, as quais Drummond retrucou: “Você tá maluco. Velhice é uma merda“, arrancando risadas de todos na roda.

O depoimento de Ziraldo foi extremamente rico e, obviamente, bem trabalhoso para editar, mas saí de alma lavada do estúdio, porque, depois da patada que levei, tomei coragem e perguntei o que ele havia achado da entrevista.

“Foi boa, foi boa. Gostei das perguntas”, e, com a mesma sinceridade com que me esculachou, o pai do Menino Maluquinho encheu a minha bola.

Poema de Natal, Páscoa e domingos de missa e culto

Se eu tivesse que jogar fora todos os poemas que escrevi, podendo guardar apenas um, certamente seria este. Disponível também em vídeo em meu canal no Youtube . Ele está em meu livro De Tanto Bater com o Osso, a Dor Vira Anestesia
*
jesus hoje não conseguiu engraxar todos os sapatos que precisava
não vendeu pano de prato o bastante nem pra voltar pra casa

jesus perdeu a perna na linha do trem
tá pelo INSS mas o dinheiro não dá
pro gás prum quilo de arroz
lata de óleo pacote de macarrão

jesus nasceu com um caroço horrível
no pescoço que não o deixa mamar
mas fazer o que se a rede pública
não opera ou só tem vaga pro ano que vem

hoje jesus pediu um sanduíche na porta do
truck’s mas todo mundo disse que não tinha
e disseram que a prefeitura tem que dar
jeito em jesus assim pedindo na porta dos lugares com as pessoas querendo passar

há anos jesus ficou louco toma cachaça na rua desde que a mulher a filha morreram ninguém sabe como nem ninguém quer saber porque jesus toma tanta pinga o que importa só é que não pode dar dinheiro se não jesus vai beber mais e mais e aí mesmo é que não sai daqui da vizinhança

jesus mete a cara no crack no beco do rato do setor comercial sul porque desde que tem memória apanhou com barra de ferro do pai e a mãe também o queimava com garfo esquentado no fogão

mil homens já desfrutaram da carne de sífilis de jesus desde os 13 anos quando ele meteu a faca na costela do padrasto abusador e família pra ele virou puta cafetina travesti rufião

hoje jesus dormiu sozinho de novo na enfermaria para doentes terminais de cirrose hepática
a única parente viva é a tia da catarata que pega três ônibus e há dias não aparece pra visitar

jesus nunca recebeu visita no asilo em dia das mães

jesus veio da roda dos enjeitados pro orfanato misericórdia do senhor
é preto nasceu sem braço olho torto demais pra fora já tem 15 anos ninguém vai adotar

esperavam ver jesus no templo iluminado
de mármore cara pastor de anel de pedra
na igreja cheia de santo branco e louro
no palavrório da palestra no centro espírita

mas Jesus não esteve lá

jesus andou a tarde inteira pelo calçadão de madureira debaixo do sol carregando a bolsa de colostomia com a receita na mão tentando explicar pra alguém do remédio que precisa tomar

Dissolução em cartório (conto inédito)

Calculou para que não chegasse muito antes da hora, para que não ficassem muito tempo calados um ao lado do outro, já que não havia mais o que conversar. Há cinco meses não se viam, desde a noite fatídica em que foi dito muito mais do que deveria ter sido falado. Nesse tempo todo, apenas mensagens trocadas, ora desaforadas, ora carinhosas; estas, sugerindo a ele esperanças que, hoje, enxergava, não existiam mais, ou jamais existiram, foi tudo ilusão sua, e nela, residia sua mágoa caudalosa, não raro, vestida com a capa da raiva. Agora, dessa tarde em diante, não perduraria qualquer razão para que se vissem novamente. Então, de certa forma, aquele encontro trazia o consolo amargo de ver Alice pela última vez e aplacar, mesmo que apenas por breves minutos, a saudade que a ele parecia que seria eterna.

Faltavam dois minutos para o horário marcado, quando ele começou a atravessar o corredor dividido em baias enfileiradas. Falatório, barulho de carimbos que validavam assinaturas, sinais sonoros chamando senhas. Na última das baias, havia uma mulher que, olhando sem os óculos para longe, ele chegou a pensar, por um momento, que fosse Alice. Será que cinco meses distante são capazes de fazer mistura e confusão? Logo em seguida, quando suas vistas alcançaram o hall dos elevadores, não teve sequer um segundo de dúvida: era Alice quem esperava para subir. “Uai, eu passei agorinha mesmo pelo corredor e não te vi”, e quando ela falou, ele imaginou seus pequenos olhos de sempre, vivazes, por trás dos óculos escuros. “Cheguei agora, Alice. Boa tarde”. Ela esboçou um passo à frente para beijá-lo no rosto, mas ficou como estava ao perceber que ele não se aproximaria. Também chegou a esboçar um leve sorriso, mas o recolheu, e não mais o exibiu, nem discreto, nem muito menos claro e luminoso como era seu feitio, posto que, naturalmente, seria impróprio para a ocasião.

Entraram no elevador. Ele mantinha os olhos no chão. Estava também de óculos escuros, que optou em detrimento dos óculos para longe. Era para se proteger de seus olhos confirmarem vazio e tristeza. Alice tentava puxar conversa, disse que o advogado já estava a caminho. “Ok”, ele se limitava. Só tirou o olhar do chão quando a porta do elevador se abriu.

Sentaram-se em um sofá para aguardar o advogado. Alice não desistia, queria conversa, mesmo que não houvesse motivos. “Você cortou o cabelo. Fica melhor de cabelo curto”. Ele riu, com uma espécie de desdém machucado. “Há um ano eu estou de cabelo curto, Alice”, e finalmente soltou uma frase de tamanho razoável. Tirando os cinco meses de separação, até ali extraoficial, foram, então, sete meses anteriores em que ela não o notava mais, em que, pelo visto, pouco ou quase nada olhou em sua cara, em que ele vagou em segundo plano na vida a dois. Ocorreram-lhe as brigas, as discussões, as crises, a união tornada burocrática à mesa, na cama, aonde iam, onde estavam. Mas havia um extenso histórico felicíssimo de viagens, passeios, filmes, pizzas, vinhos, lençóis desarrumados, corpos suados e relaxados. Houve a cumplicidade, o companheirismo, e a favor disso o placar era elástico, maior do que tudo que os levou a esperar naquele sofá. E era isso o que mais doía nele, pois aquela união era uma parede cheia de infiltrações em que, achava, uma boa demão de tinta deixaria nova em folha, a ser, inclusive, decorada com um belo quadro colorido. O que havia entre os dois, pensava, era um carro bastante amassado por manobras desastrosas, mas que ficaria novo se os dois se dispusessem a ser dedicados funileiros. Mas no fundo ele acabou se cansando de dizer e pedir por isso, e então, seu amor-próprio, seu orgulho optaram pelo silêncio e pelos óculos escuros que ocultavam os olhos sustentáculos do discurso de reatarem.

O advogado, enfim, chegou. Era um rapaz novo, com idade para ser filho deles, se houvessem tido um. Prometeu que tudo ali seria rápido. Ao escutar, ele remeteu ao quão rápida foi a briga naquela noite do rompimento de fato. O rompimento ali, agora, o de direito, seria igualmente rápido, a julgar pelo que assegurava o rapaz. Bem diferente da lentidão com que tudo foi se acabando nos últimos dois anos.

A oficial de registros entregou aos dois uma cópia do termo de dissolução. Pediu que conferissem os dados. Passando os olhos no documento sem nada enxergar no emaranhado juridiquês, ele não se atinha ao que havia de ser checado, e sim a que nada daquilo escrito fazia sentido para seu coração. Mas mantinha-se firme: jamais cogitou em fazer cena naquele ambiente autárquico; havia de manter hombridade, decência, dignidade ou o que fosse. No entanto, quando a moça concluiu “Então, podem assinar”, uma última recaída esperançosa soprou-lhe feito vento rápido que bate porta com força, trazendo-lhe a expectativa vã de que Alice, do nada, virasse para a moça e para o advogado e dissesse que os dois precisavam conversar um pouco mais, devolvendo, em seguida, o documento sem assinatura. Só que antes mesmo que ele terminasse de se iludir, Alice chancelava o que na folha estava escrito, e em seguida lhe entregava a caneta.

Fora realmente tudo rápido, como garantira o advogado. Quase nove anos oficialmente encerrados em menos de dois minutos.

Desceram. Alice conversava trivialidades com o advogado; ele, mantinha-se calado e escondido nos óculos escuros. O rapaz saiu por outra porta. Sobraram ele e ela, descendo uma escada curta, de no máximo quatro degraus, até a calçada. Era tamanho o silêncio entre os dois que poderia abafar as buzinas e motores do trânsito das quatro e pouco. Talvez convencida de que nem banalidades havia para serem ditas, Alice desistira de puxar conversa. Então, ele virou-se para ela. Deu com aquela mulher a quem tanto se entregou em milhares de noites. Aquela mulher de vestidos invariavelmente belos, que jamais ficaram sem um elogio seu. Aquela mulher que, agora sem os óculos escuros, deixava à mostra os olhos, o espelho mais perfeito da alegria que tinha em viver e que o conquistara.

Um vento morno revirou os cabelos arruivados de Alice, cuja cor, pela idade, era imitação da original e, ainda assim, os preservava luminosos. Pela última vez, a acharia linda, altiva, pura, sempre dona daquela luz que iluminou seus dias. Bobamente, tentou calcular quantos dias mais ou menos cabem em quase nove anos. Novamente ela intentou dizer algo, certamente para se despedir, mas ele foi mais rápido. Após cinco meses em que, mesmo à distância do aplicativo de mensagens, dissera, inclusive, “Por favor, me perdoa, Alice”, saiu-se com a única coisa que lhe pareceu própria para aquela hora, a única coisa que restou dizer: “Acabou, Alice. É o fim. Fica com Deus”. Apertou suas mãos e lhe deu as costas.

Imprimiu passos decididos na direção do estacionamento. Deu a volta com o carro e, quando pegou a rua, viu que ela descia a alameda arborizada. Quis parar para acompanhá-la com os olhos até que desaparecesse para sempre, no fundo da tarde. Dentro da cabeça, ouviu a própria voz gritar “Alice! Alice”. Colado a sua traseira, um caminhão feroz acelerava impaciente, um caminhão enorme, do tamanho da distância que a partir de agora se abriria entre eles. Acelerou enquanto as lágrimas passaram a verter volumosas, distorcendo totalmente sua visão do tráfego, como se caísse um temporal no para-brisas e o limpador estivesse quebrado. Escolheu no Spotify uma música bem triste, que o fazia lembrar de todos aqueles anos e que o ajudasse a desabar por completo. Cerca de duzentos metros depois, encostou o carro, para poder chorar com segurança a certeza do nunca mais.

Rolar para cima