Me perdoa, Celso Blues Boy!

Na Folha de São Paulo de hoje, André Barcinski escreve que “Muita gente, especialmente no Rio de Janeiro, começou a ouvir rock e blues vendo Celso Blues Boy no Circo Voador”.

Certamente é meu caso, mesmo que Celso não tenha sido a única fonte a me apresentar os dois gêneros que, quanto mais passa o tempo, mais ocupam meus ouvidos.

Posso dizer que Celso Blues Boy solidificou meu gosto pelo irresistível “esporro” das guitarras. Ele é uma das lembranças que tenho dos primeiros tempos de ouvinte da Fluminense FM (Maldita!), outro manancial de conhecimentos sobre Rock’n Roll e Blues.

Aos 17 anos cometi, quem sabe, meu maior pecado discográfico. Troquei meu vinil ‘Som na Guitarra’, o primeiro disco do garoto ‘brazilian blues’ por outro vinil…do Kid Abelha. A irracionalidade tem explicação, mas não justificativa. Eu estava apaixonado por uma normalista com que dancei numa festa, embalado pela voz sempre duvidosa de Paula Toller. Se homens apaixonados são naturalmente afeitos a asneiras, que dirá com 17 anos.

A garota, esqueci pouco mais de uma semana depois. O vinil do Kid Abelha entreguei num sebo logo no início da invasão dos CD’s, nos anos 90. E o disco de Celso Blues Boy ficou apenas na lembrança.

Ontem, tocado pela morte do guitarrista, procurei o disco na Istore, mas os súditos de Steve Jobs ainda não se deram conta da importância de Celso Blues Boy para o gênero no país. No site das Lojas Americanas, o único disco dele é um gravado ao vivo, e está esgotado.

Celso, onde você estiver agora, me perdoa!

E que a vida me traga de novo o teu disco!

Pela primeira vez na vida eu quis ser um pitiboy

Os servidores federais permanecem de braços cruzados, no justo e constitucional direito de greve, de lutar por melhores salários e condições de trabalho.

Mas se a greve faz parte da democracia – e realmente faz – as práticas da greve também devem observar o respeito ao semelhante. Da mesma forma, isso é democrático.

Hoje pela manhã, dois integrantes do comando de greve, em Brasília, tocavam, sem trégua, na porta de um dos ministérios, aquelas cornetas que ganharam o mundo na copa da África do Sul. Era como se dois caminhões estivessem estacionados na portaria e buzinando sem parar.

Meus tímpanos quase não suportaram as cornetadas nos breves quarenta segundo que precisei para atravessar a barulheira ensurdecedora.

Dessa forma, não há como se considerar a justiça do movimento. Com essas impiedosas buzinas, o que nos vem à cabeça é a falta de respeito, e mesmo misericórdia, dos líderes do movimento para com as pessoas que trabalham na portaria dos ministérios, e que são muitas. Observei que uma delas estava quase chorando de dor nos ouvidos, completamente atordoada, sem qualquer concentração no que acontecia a sua volta, principalmente no seu trabalho.

Desejei, sinceramente, no fundo de meus instintos mais humanamente enviesados, ser um daqueles grotescos pitiboys que arrebentam metade do mundo com uma das mãos. A outra metade desaparece com o golpe da outra mão. Pelo tempo em que fiquei exposto àquele desvario, quis, de todo o coração, fazer os “companheiros” engolirem aquelas buzinas. De preferência, com elas tocando.

A raiva já passou, embora persista o zumbido em meus ouvidos. Se desejo que a categoria consiga, ao menos em parte, o que está reivindicando, confesso que, do fundo de meus sentimentos inferiores, não há como não querer que os corneteiros estejam surdos depois que a greve acabar.

A recompensa

Há três meses, desde a Bienal do Livro de Brasília, venho “esquecendo” exemplares de meus livros em locais públicos.

Largo exemplares em cafés, bares, pontos de ônibus, aeroporto, shopping-center. Qualquer um que passe em local de movimento é leitor em potencial de um livro meu abandonado.

Na contracapa, colo uma etiqueta avisando que quem encontrar deverá fazer o mesmo depois de ler. A brincadeira, que não é minha nem é nova, é uma forma de fazer o livro circular em um país que certamente possui mais agências de automóveis do que livrarias.

Isso tem me feito viver experiências interessantes.

Hoje um exemplar foi resgatado por um sujeito calçando chinelo de dedo, bermuda e camisa de um time de futebol. Ele pegou o livro e começou a folhear. Para isso, colocou debaixo do braço o jornal popular que trazia (sim, colegas autores, há muitos leitores além dos que viajam de avião e assinam a Folha de São Paulo).

Foi do início ao final do livro e voltou. Deteve-se no início e começou a leitura. Embarcamos juntos no mesmo ônibus, eu tendo o cuidado de sentar dois bancos atrás para poder observá-lo. Meu trajeto de casa ao trabalho dura quinze minutos, e foram quinze minutos em que pude atestar a fidelidade de um leitor. Ele não desgrudou os olhos de meu livro, nem os solavancos do ônibus foram capazes de lhe roubar a atenção. Se continuou naquele ritmo, a essa altura já deve estar próximo das últimas páginas.

Desci do ônibus com a vontade recompensadora de persistir e continuar escrevendo para todos, sejam os que vão de ônibus, carro, a pé, avião ou bicicleta, mas que em comum têm o livro a mover pensamento e imaginação.

Hífen, esse imbecil

A língua pode ser espelho de um país. Acho que é o nosso caso. Linda. Rica em absurdos. E burocrática. Muito burocrática.

Entre as imbecilidades cometidas pela última reforma ortográfica, sem dúvida é destaque o que fizeram – e deixaram de fazer – com a imbecilidade-mor da língua portuguesa: o hífen. Formas absurdas, mas ao menos consagradas, de usá-lo desapareceram sem explicação. Outras ainda mais sem sentido brotaram da cabeça sabe-se lá de que gênio linguístico para perpetrar o inferno que é a vida de quem escreve em português.

Se o hífen fosse uma pessoa, seria o burocrata que, trancado e embolorado em seu gabinete em Brasília, se recusa a liberar dinheiro para quem morre numa catástrofe natural, por exemplo, tão somente porque o carimbinho que deveria constar às folhas tais do requerimento não tem o tamanho estipulado no parágrafo tal da portaria tal.

Antigamente, ainda enxergava alguma razão de ser nesse maldito tracinho. Era o caso de palavras com sentido próprio, que juntas formavam uma terceira. Hoje, o exemplo também me parece mais uma imbecilidade. Alguém deixará de entender que uma camisa é azul-escuro se não houver o infeliz do risquinho?

Por isso desisti de usar hífen, ou melhor, de me descabelar em dicionários e no google toda vez que deparo com a obrigação tortuosa de enfiá-lo no meu texto. Mas não vou fugir dele, esse bostinha empertigado. Usarei nos casos em que tenho certeza (ou acho que tenho). Nos que não tenho, deixarei pra lá. As duas palavras que se entendam sozinhas.

Quem achar por bem me corrigir, que o faça. Se eu tiver saco pra mudar, eu mudo.

Eu, minhas filhas e o direito das mulheres

Homem branco, de classe média, criado sob os ditames machistas, nunca me preocupei com os direitos das mulheres.

Até ser pai de três meninas.

Não me agrada pagar a educação delas e saber que no futuro elas poderão ganhar menos do que os colegas homens por causa de uma estupidez cultural que é quase uma cláusula trabalhista.

A tal meritocracia, defendida por quem é contra as cotas raciais nas universidades, deveria ser instrumento para igualar os sexos no mercado de trabalho. Pena que os homens que a defendem no primeiro caso se omitem no segundo.

Mas minha preocupação de pai com a questão dos direitos das mulheres não fica, claro, restrito ao campo do trabalho. Porque temo que uma delas seja vítima de violência de marido ou namorado, preparo-as para entender que a dignidade é a mãe do direito.

Desde já cultivo naquelas cabecinhas que não aceitem, de forma alguma, gritos e xingamentos de algum homem, seja ele quem for, tenham por ele amor, paixão ou qualquer outra espécie de atração ou sentimento. A mulher que admite isso abre a porta para a violência física, e será, possivelmente, presa fácil do cínico arrependimento do homem.

A dignidade da mulher no casamento, namoro, noivado e afins certamente é um de seus principais direitos, e talvez passe pelo conceito que ela terá dessa relação. Procuro ser claro com minhas filhas: a felicidade de vocês não dependerá de marido ou espécies semelhantes. A mulher que tem essa consciência fica menos vulnerável à agressão física e psicológica, e não aceitará como normal toda sorte de humilhação.

Essa coisa de se preocupar com direito das mulheres me faz prepará-las para não serem ‘mulherzinhas’. Quero minhas filhas ‘mulher-macho’, aquela que enfrenta a vida de frente sem homem de escudo, pronta a mandar às favas qualquer um que lhe ultraje a dignidade, seja nos campos material, sentimental ou psicológico.

Alguns podem chamar isso de consciência. E até é. Mas é, antes de tudo, amor de pai.

Consumidor e cidadão

A punição imposta pela Agência Nacional de Saúde aos planos de saúde tem um aspecto positivo que ficou, sem muita atenção, nas entrelinhas da notícia: a participação da sociedade na tomada da decisão pelo Estado.

Este ano, foram mais de oito mil reclamações contra os descalabros promovidos por quem, pra efeito de marketing, anuncia que presta medicina de primeiro mundo.

Com exceção das marchas da Maconha e das Vadias, qual mobilização que consegue, nos dias de hoje, colocar mais de oito mil pessoas nas ruas do país?

Há claramente uma diferença entre a mobilização do brasileiro como consumidor e como cidadão. Desde que amparado pelo Código de Defesa e por alguns institutos que mal ou bem agem a seu favor, o primeiro reclama seus direitos, até porque esses dizem respeito à parte mais sensível de todos nós: o bolso.

Já o segundo patina no eterno discurso contra ladroagem em palavras que se limitam às rodas de bar e, ultimamente, às redes sociais, como se o voto dele não possuísse parte da responsabilidade pela bandalheira.

Não deixa de ser também, numa análise um pouco menos superficial, a importância do individual e do coletivo: pelo o que é meu, eu brigo; pelo o que é nosso, eu digo que deveríamos brigar.

Sheik, pronto para a idolatria

A mídia precisa fabricar ídolos. É uma das maneiras de se cativar a audiência, elemento imprescindível para chamar anunciantes, razão maior do faturamento de emissoras, jornais e revistas.

Se o possível ídolo não tem talento, capricha-se na produção focando uma característica que possa tornar-se marcante para as grandes plateias e arrastar multidões.

Se possui algum talento, tanto melhor: mostra-se esse talento bem maior do que realmente é. Se for possível, torna-se esse ídolo uma espécie de semideus infalível.

Parece-me, no entanto, que às vezes o departamento de seleção de ídolos dos meios de comunicação é acometido por certa miopia.

Há cerca de dois anos, e com maior intensidade de um ano para cá, somos massacrados com a obrigação de acharmos que Neymar é – ou será – o maior jogador do mundo. O problema é que a enfraquecer o bombardeio midiático liderado pela TV Globo estão os próprios fatos. Anulado ou anulando-se na hora em que precisou justificar todo o alarde em torno do seu nome, no conceito da audiência, Neymar só consolida mesmo a teima pelo penteado exótico.

Ao passo que o jovem santista não foi este ano para o Santos e muito menos para a Seleção o que a mídia assegurava que ele seria, outro jogador, que  a mesma mídia não cogita como ídolo, mostra-se o herói que o futebol fabrica naturalmente, sem produção ou marketing.

Emerson, o Sheik, apareceu quando seu time precisou dele, uma delas, inclusive, contra o Santos de Neymar. Aliás, ontem, Emerson fez o que havia feito pelo Fluminense em 2010: colocou a bola nas redes e deu o título ao time.

Pode ser que até a Copa Neymar acabe se tornando o que a TV Globo precisa que ele seja, trazendo a reboque Paulo Henrique Ganso, candidato a coadjuvante nessa pretensa dupla de super-heróis, mas que, da mesma forma, até aqui não passou de expectativa.

Porque hoje o produto acabado e pronto para a idolatria chama-se Emerson.

Aborto: lei ou consciência?

Vários grupos religiosos estão neste momento fazendo uma passeata na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, contra a legalização do aborto.

Interromper uma gravidez talvez seja assunto muito mais passível de ser regido pela consciência do que pela lei.

Quem é contra o aborto continuará sendo, seja ele descriminalizado ou não, e não o fará – ao menos em tese – mesmo que não haja punição.

Da mesma forma, quem é a favor manterá a postura, mesmo que a lei continue proibindo a prática fora dos casos que ela mesmo permite.

Em que pese o direito de manifestação, penso que os religiosos gastam muita energia com algo que transcende o mundo jurídico, que passa bem mais pelo foro íntimo, por uma decisão que deve ser cruel de ser tomada.

Que tal se os religiosos ocupassem ruas e avenidas do país gritando contra práticas que realmente precisam da mão dura da lei, tais como a corrupção, o racismo, a discriminação ou a pedofilia e a prostituição infantil?

Em tempo: sou contra o aborto.

Direito à greve e ao respeito

A greve dos servidores públicos federais de alguns ministérios confirma o talento do sindicalismo brasileiro para angariar a antipatia da sociedade.

A greve não conta com adesão de todo e qualquer servidor público, muito menos dos chamados funcionários terceirizados dos ministérios, que não possuem a benemerência da estabilidade. Como não conseguem convencer com argumentos quem não quer ou não pode cruzar os braços, os sindicalistas apelam para táticas que ultrapassaram a fronteira do antidemocrático: chegaram ao campo do desrespeito.

Perfilados na porta dos ministérios, buzinam nos ouvidos de quem entra as irritantes vuvuzelas que sobraram da última copa. Como intimidação, em nome da mobilização da categoria, valem os xingamentos de qualquer nível, não importando se quem vai na direção das portarias é, por exemplo, uma mulher grávida prestes a dar a luz, e quer exercer o direito de ir e vir, tão constitucional como o direito de fazer greve.

Seria mais digno e admirável se optassem pelo enfrentamento e partissem para os piquetes, que foram impedidos pela Polícia logo no segundo dia de greve. Mas parece que falta aos sindicalistas de hoje não apenas a dignidade, mas a coragem, por exemplo, de professoras estaduais que, em 1988, enfrentaram os cassetetes e bombas de gás da tropa de choque da PM num protesto em frente ao Palácio Guanabara, ocupado, na ocasião, por Moreira Franco, um dos piores síndicos a passar pelo Governo do Rio de Janeiro.

Com buzinas e xingamentos, a única adesão que conseguem é a uma corrente que começa a desejar que nenhuma das reivindicações – que até devem ser justas – seja atendida.

Transgredir é verbo jovem

Existem vários papéis que os jovens podem e devem desempenhar. Um dos mais interessantes é o de transgredir, porque está exatamente de acordo com a juventude mandar às favas regras e conceitos, padrões e condutas estabelecidas que ninguém sabe exatamente porque, quando e, muito menos, para quê.

Há jovens bem afetos à transgressão.

Outros, no entanto, perdem essa oportunidade que a pouca idade permite e preferem a cacetice da padronização, do óbvio, do aborrecido mundo dos já estabelecidos, dos bem sucedidos.

Veja o exemplo dos convites para dois casamentos.

Um convite é feito em papel de luxo, com a letra dourada, desenhada por um calígrafo. Dentro, pais e mães convidam para o enlace de seus filhos, que será seguido pela recepção numa bela casa de festas, onde os convidados farão imensa fila com pratos na mão e estômago nas costas. Um bandejão de luxo, do qual muitos, inclusive, sairão falando mal. Traje passeio completo, claro.

O outro convite imita um ingresso para um show de Rock. Os noivos dirão o sim num pub, ao som da banda dos amigos. Os convidados terão direito a uma dose de bebida. Além dela, de graça serão a diversão, a dança, a música e a amizade dos noivos. O traje? Quem for que vá com a roupa que achar melhor.

No estilo do primeiro casamento, vi noivo sendo impedido de beijar a noiva na boca. Motivo? A mulher do cerimonial mandou beijar na testa. E não pega bem contrariar o cerimonial, mesmo que se pegue bem caro por ele.

O ineditismo do segundo casamento parece vir justamente de seu caráter transgressor, e é bem provável que os noivos se beijem a qualquer hora da cerimônia – se é que o formalismo do termo cabe aqui -, dependendo apenas da vontade de cada um, e que os convidados saiam bêbados e felizes, porque, afinal, a banda dos amigos dos noivos toca tão bem que todos foram ficando, ficando e bebendo.

É claro que a felicidade no casamento não depende desse ou daquele tipo de celebração ou comemoração. O que constrói a felicidade (e também o que a pode destruir) é o dia a dia ao longo dos anos.

A diferença é que o segundo casal talvez, daqui a algum tempo, tenha uma espécie de consciência tranquila em relação a essa inquietação que a juventude deveria carregar sempre, que é a indisposição quanto ao normal, ao que todo mundo faz.

Já os outros noivos, caso despertem e se arrependam mais tarde de terem copiado exatamente seus pais e avós, sem nunca, em momento algum os terem escandalizado ao menos um pouco, vão descobrir que, depois de um tempo e uma idade, dá muito mais trabalho e exige muito mais força nadar contra a correnteza.

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