Brasília, 52 anos e o mesmo mal estar*

Ser capital de um país impõe a uma cidade alguns ônus. O principal que Brasília carrega é a visão do restante do território nacional: é aqui que os ladrões desembarcam para diariamente assaltar o Brasil.

Cidade que não produz riquezas – ou quase nada, se comparada a outros lugares – , o morador daqui acostumou-se a escutar que vive em uma repartição onde ninguém trabalha. Aliás, rouba o erário.

Com razão, nos últimos tempos o brasiliense passou a rechaçar esse conceito no mínimo inadequado a boa parte da população do Distrito Federal.

Bordão relativamente recente pede aos eleitores de outros estados que não mandem ladrões para cá através do voto, esse instrumento transformado quase que em uma licença para corromper e ser corrompido, tal a miséria moral da política brasileira.

Faz sentido a revolta candanga. Para ficar apenas em um exemplo atual, não foi o eleitor do DF quem elegeu Demóstenes Torres.

O que enfraquece a defesa do brasiliense são fatos recentes comprovando que Brasília não apenas importa corruptos, mas também os produz em boa escala e de quilate bem superior a ladrão de galinha.

Na verdade isso não deveria surpreender, haja vista a conduta de nossa Câmara Legislativa, mistura de Assembleia Legislativa e Câmara de Vereadores não apenas na função política, mas também no vício de se locupletar às custas dos nossos bolsos.

Desde o escândalo que defenestrou José Roberto Arruda, a capital do país caminha sem encontrar a paz política e, consequentemente, a qualidade administrativa, pois a primeira rouba o foco da segunda.

Agora, mais um aniversário, mais uma festa com mal estar na hora de cantar parabéns e cortar o bolo. A pergunta que se fazia dois anos atrás, à época do cinquentenário da cidade, não se calou: quem será o governador do Distrito Federal no final do mandato?

É como se enfiassem a faca exatamente no local onde o corpo já foi esfaqueado.

E caído no chão, ensanguentado outra vez, o morador de Brasília terá que pedir: parem de mandar ladrão pra cá porque nossa produção está dando conta do recado.

*Publicado no site BRasil 247 em 20/4/2012. www.brasilia247.com.br.

A oportunidade perdida pelas religiões*

Tudo que envolveu a votação no STF da permissão para que se aborte fetos sem cérebro pode ter sido uma grande oportunidade que as religiões de uma forma geral tiveram de exercer um de seus papéis principais: consolar, compadecer-se de quem sofre.

Tiveram, e perderam.

Não me lembro de ter visto nenhuma delas, em nenhum momento da batalha no Supremo – ou mesmo em outra ocasião-, demonstrar preocupação com o estado emocional da mulher que vai à Justiça pedir para abortar a criança que, segundo a medicina, não sobreviverá à primeira hora após o nascimento.

A mesma ausência da piedade cristã sempre observei em relação à mulher que é estuprada, que renega o filho fruto desse ato abominável, a maior das covardias.

Só quem já viveu o momento mágico da descoberta de uma gravidez (mesmo sendo homem) pode imaginar a lâmina gelada que atravessa o peito da mulher (e do homem também) quando o médico, muitas vezes com inconcebível frieza, diz que aquele sonho não sobreviverá. Sabe aquele laço de fita que você pretendia fazer? Sabe o bercinho combinando com as paredes? E as primeiras roupinhas que você já comprou? Pois é, esqueça, pois a cabecinha do seu neném é uma caixa oca onde a morte espera a hora de abraçar esse pequeno corpo em formação.

A preocupação maior é, como sempre foi ao longo da história das religiões, pregar a moral sem o cuidado de livrá-la de uma ponta de condenação. Intencionalmente ou não, a mulher que carrega no ventre o chamado anencéfalo, ou até o filho gerado pela violência que ultraja a dignidade humana, passa, mesmo que de forma sutil, por criminosa na pregação “pelo direito à vida”. Nem para uma certa crueldade do slogan – no caso da anencefalia – as religiões atentaram. Como falar em “direito à vida” a uma gestante que não será mãe nem por uma hora?

Preciso dizer que sou contra o aborto, mesmo nos dois casos aqui discutidos. Minha religião, o espiritismo, condena o ato, não a pessoa, mas mesmo as entidades que representam a doutrina no Brasil não se importaram em cuidar do aspecto mais importante: o drama interior da mulher que opta por tirar o filho sem chance de sobrevivência. O que falou mais alto foi a necessidade de se propagar pontos de vista.

Na anencefalia e no estupro, o aborto é decisão de foro íntimo que dispensa sermão. Caso procure a orientação religiosa, a mulher deve ser recebida primeiramente com piedade e misericórdia, e só depois com o esclarecimento próprio de cada crença. E jamais condenada, pois nenhum padre, pastor ou presidente de centro espírita terá a dimensão da dor de uma mulher para quem a maternidade abriu um rasgo na alma.

*Originalmente publicado no site Brasil 247 em 17/4/2012http://t.co/SqNKTmTm

‘Brasilha’ da Fantasia

Ninguém acorda com culpa na Ilha da fantasia,

ninguém se sente culpado na ilha da fantasia

e não ser de todo inocente

é sempre muito normal na ilha da fantasia.

Na ilha da fantasia não interessam

os olhos inocentes dos filhos antes de dormir

os filhos apontados na rua

o que dirão os colegas na escola

e as crianças dos vizinhos.

Não fere arde envergonha

o olhar confuso das crianças

ao ler o que sai nos jornais.

Vamos ao que importa na ilha da fantasia:

a gratificação a estabilidade

a comissão as garantias

o adicional os benefícios

os 18% que me cabem

se não vou aos jornais

e conto da parte que não te cabia mas você levou

na ilha da fantasia.

Eu te filmei eu te gravei

eu sei de tudo da tua

deliciosa doce vida,

portanto, morreremos de mãos dadas

abraçados

atirando uns nos outros

até que nos esqueça a fugacidade da imprensa

e nos confortem as mãos amigas da Justiça

o entendimento do digníssimo desembargador

a interpretação da lei no tribunal superior.

Venha a meu gabinete

passe em meu escritório

vá com sua mulher lá em casa

daremos uma festa

faremos um jantar

quem sabe outros agitos até de manhã.

Ninguém é culpado na ilha da fantasia

ninguém deve nada

à mulher que espera o ônibus

e não combina bolsa e sapato,

à outra que atravessa a BR

longe da passarela,

nenhuma explicação merece o homem cansado

que sai tão cedo e volta tão tarde

levando no rosto

o resto de sonho desfeito.

Todos deitam sem culpa na ilha da fantasia

depois que se apagam as luzes lilases das festas

que se esvaziam as travessas

sossegam-se as bebedeiras

calam-se os vômitos

encerra-se o pó

e a paz reina envergonhada.

Festfud

Quando encostei

no balcão

ela olhou.

Era tão linda

que o bobo aqui

extasiado

engasgou

com a coca-cola.

Ela então sorriu

com uns olhos azuis

de abril

e o resto do dia

virou um grande

pedaço de pavê.

1993

A inversão dos limites do direito.

Tarde de um meio de semana na Esplanada Ministérios, em Brasília. Em frente ao Congresso Nacional, uma categoria profissional faz manifestação reinvindicando jornada de trabalho menor ( e quem não quer trabalhar menos, não é verdade?).

Para chamar a atenção dos deputados e senadores, nada de discursos, palavras de ordem, coros ensaiados, líderes insuflando a massa de cima de um carro de som, aquilo que ainda se tem como ideia de um protesto.

Há o carro de som sim, mas torturando a audição humana com todo esse lixo que há quase vinte anos apodrece na calçada musical do pais, tais como axé e a tal dita música sertaneja.

Um cego que passasse por ali desavisado pensaria em carnaval fora de época, jamais que centenas de trabalhadores estivessem exigindo seus direitos exercendo outro direito: o de manifestação, para o qual, aliás, o brasileiro tem um talento imenso, desde que seja para lutar pelas causas que orbitem em torno de seu próprio umbigo, e nunca em favor do coletivo, da sociedade.

O meu direito termina onde começa o do outro. Não era assim o certo? Parece que não apenas deixou de ser, como caminha na direção do conceito diametralmente oposto, ou seja, o meu direito termina onde eu quiser, seja em um protesto por melhores salários que dê um nó no trânsito de uma cidade na hora do rush, seja em um baile de fim de semana que deixa às claras a madrugada da vizinhança, pois o clube jamais pensou em gastar um centavo sequer com tratamento acústico.

O som reverbera nas paredes dos prédios e ganha o céu azul da tarde de Brasília. Em um dos ministérios, a recepcionista diz que o barulho começou as oito da manhã (já são quatro da tarde e nada de o som abaixar). As pessoas com quem me reúno contam que ninguém conseguiu trabalhar direito. Falta concentração, os vidros tremem, você não escuta o que o colega da mesa ao lado tenta falar.

Passo duas horas no prédio sem ouvir uma palavra de ordem sequer. Somente o insuportável cardápio musical que assola o Brasil desde os anos 90.

Quando desço, eles ainda estão lá. O céu do cerrado, o chão vermelho de Brasília tremem. Tentam me entregar um panfleto com as reinvidicações. Não aceito. Mesmo que sejam justas, nenhum deles ali merece conseguir.

Parada poética

Abaixo reproduzo o e-mail enviado por Marina Mara, uma das organizadoras da Parada Poética, aqui em Brasília. Leiam, tomem pé do projeto, uma espécie de veneno contra a caretice dessa cidade e de qualquer outra.

“Olha que pertinente, minha gente…

A Parada Poética foi realizada no dia 24 de março de 2012, na Praça do Índio – 703 Sul, onde Galdino foi covardemente queimado há exatos quinze anos enquanto dormia na parada de ônibus. Nesse evento, essa mesma parada foi revestida com páginas do livro de poemas Sarau Sanitário, de minha autoria. Porém, uma semana após essa intervenção humana, quase todos os poemas já haviam sido levados da parada…

Que vandalismo, né?

Néra não… era só fome de beleza do povo… pois foram retirados com cuidado quase cirúrgico e levados de lá. Pensando nisso, em realmente ressignificar a-parada-com-a-história-mais-triste-do-país, convido a quem estiver afim a entrar nessa empreitada.
Que tal, quando passarmos por ali, deixarmos um poema de vez em quando? E que tal mais e mais pessoas fazerem o que fizemos, colar páginas de seu livro de poemas favorito na parada para realmente compartilhar algo de bom com os outros?

Quem quiser participar é só chegar e colar com durex, grude, cola… pode ser escrito à mão, pode ser recorte, xerox, poesia visual – o importante é que esteja em constante mudança para que sua visitação seja sempre algo novo ao público. Convide seu amor a colar poemas com você e peça seu cangote em namoro lá mesmo. Chame os amigos para tocar uma viola enquanto rola a intervenção, filmem, fotografem, façam piquenique. Usem aquela praça linda, reformada e cheia de árvores e de espaços vazios de gente.

A intenção é essa, dar uma parada poética no dia para colocar um pouco de poesia em sua cidade. Minha intuição me sopra nesse momento que essa ação conjunta e contínua chamada Parada Poética seja a resposta dos brasilienses à barbárie que ocorreu ali quinze anos atrás e da forma como deveria ser – leve como é alma de índio.
Então, pegue um livro de poemas, tire a poeira dele e o compartilhe com a cidade. Além de ser um ato de ativismo sociopoético também é um programa massa. Há tempos não me divertia tanto quanto no feitio daquela intervenção.

Ah, e quando for mostrar os monumentos da cidade para alguém de fora, dê uma passada na parada poética e diga:
Brasília mesmo é assim, ó.

Tamo junto?”

http://www.marinamara.com.br/2012/04/10/parada-de-onibus-vira-monumento-a-poesia

Não adianta fazer yoga e não dar bom dia ao porteiro

Para Maressa Omena

Os frequentadores do restaurante natural

vestem camisetas de Marley Gandhi Luther King e Chaplin.

Usam cabelo rasta

ferrinhos no nariz no beiço acima do olho

acendem incensos

e outras coisas

que fazem fumaça também

pra libertar a essência cósmica

interior transcedente de não sei onde

(eles não explicam muito bem).

Praticam taishi

meditação

terapias do além

seguem o guru malabarashibalabadoooom

e gritam que matar boi é crueldade

animalidade bestialidade

inferioridade espiritual.

Os frequentadores do restaurante natural

vão às passeatas

pedir pelo aborto

o amor entre iguais

o fim da corrupção

e ao fórum social

pela igualdade entre os povos.

Mas se o mendigo esfarrapado

vomitado cagado

entra de mão estendida

pedindo comida,

Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!!!!!!

Aí é que eles berram mesmo:

mandam chamar o gerente

cadê o dono desse troço

tira esse sujeito daqui pô qualé!

Dá só um tempo cara

Ok muito bonita sua mensagem na rede social falando sobre a esperança renovada a cada dia e que o sol oferece um belíssimo espetáculo todas as manhãs e que ninguém nota e que se a vida te der um limão faça uma limonada e papapa papapa tralalá tralalá sabe eu também concordo e penso assim mas de vez em quando sou uma velha e enorme sucuri que comeu um boi inteiro que não caiu bem e precisa vomitar tudo a carne a pele o esqueleto do desgraçado sabe a tristeza também é degrau da escada não me leve a mal mas achar que tudo desabou e que a maior e mais dura laje do arranha-céu foi esmagar justo a bosta da tua cabeça é parte da condição humana e chorar também é fisológico como rir gritar fazer cocô e além do mais minha vó dizia que choro faz muito bem pros pulmões e como sou obediente me deixa aqui no canto sossegado me desmantelando em lágrimas soluço nariz escorrendo meleca aparecendo que eu vou recuperar de novo a porra da minha paz e vou sair por aí cantando róquenroll e você não vai nem dizer que era a mesma pessoa valeu?

Semana Santa, 1985

Quando o Marco ligou, já eram umas cinco da tarde, e ele assistia a vídeo clips no canal 9. É que na última hora apareceu uma viagem pra Rio das Ostras, na época em que a cidade era só praia e sossego e andava-se ao sabor do vento.

É naquele esquema: miojo, pão com ovo e colchonete para dormir onde der.

Tô na fita? Quis saber.

Se eu tô te ligando, animal!

Quem vai? E já procurava o pai pela casa. Precisaria negociar aquilo. Abril mal começara e as notas já estavam daquele jeito. Para ficarem ruins tinham que melhorar muito.

Ué, quem vai? Eu, Wagão, Mário, Maurão, Serjão…os mesmos otários de sempre.

Putz, só homem!

E ainda quer que a gente leve mulherzinha pra você?

Conseguiu umas pratas com o pai. Dava para ir, voltar e fazer algumas gracinhas por lá.

Lembra dos olhos do velho quando jogou a sacola de nylon nas costas antes de bater a porta. Por trás das lentes grossas, chegara definitivamente a certeza de que o filho começava a bater asas. Dali a um mês faria 17 anos.  Impossível segurar em casa, num feriado, uma fera daquela cheia de hormônios e sede de aventura. Só restava pedir juízo e rezar para que funcionasse tudo que ensinara até ali.

Na Rodoviária, entre partidas e chegadas, procurava pelo grupo. Acima do tumulto, pairava a ânsia pela farra, e amarrada a ela, feito rabiola na pipa, uma sensação de que haveria para sempre música no ar e que a vida toda seria daquele jeito, uma vontade permanente de dançar e dar risada. É claro que depois o tempo passou mostrando a verdade, e a velha chata da idade adulta desligou a música imaginária. Mas a lembrança daquela sensação nunca ninguém roubou dele.

Você tá parecendo uma hippie grávida. Um deles observou quando se encontraram. Escarnecendo, apontava a camiseta verde e branca, estilo mesmo bicho-grilo, comprada na feira da Praça Sães Peña, tão na moda naqueles anos 80. Hoje, ao olhar fotos da época,  parecia mesmo ridícula.

Gargalhada geral. When the moon is in the Seventh House, e um deles cantarolou a música de Hair.

Mandou-os para aquele lugar, eles e as mães de cada um, no linguajar próprio dos machos de 17 anos. Era a forma de dizer que se gostavam, que era muito bom estarem juntos: sacaneando e xingando uns aos outros.

Só conseguiram ônibus para depois de meia-noite, e assim mesmo para viajarem em pé. Quando entrtou, sacou que dava para viajar no banheiro, sentado na privada, com janelinha e tudo.

E assim foi bem uns 70, 80 quilômetros. Quando vinha alguém apertado usar o banheiro, ele saía, depois voltava. Até que uma hora entrou um coroa. Demorou mais de 40 minutos para sair. Aí não deu mais para ficar lá dentro, teve que ir se equilibrando no corredor.

Mesmo assim, de onde estava, conseguia um pedaço de janela para ver a estrada rompendo a madrugada. A lua cheia acompanhava o ônibus e clareava vilas pobres do estado do Rio, tornava possíveis seus sonhos de garoto, deixava em aberto hipóteses improváveis, como a de encontrar naquele feriado a menina que conhecera na última festa e de quem o telefone acabou não pegando.

Lá na frente, nas primeiras poltronas, um bêbado toda hora gritava: isso é lindo Carlos Alberto! Alguém próximo, talvez tão ou mais embriagado, arrastava um trecho de bolero ou samba-canção, e o sujeito consagrava a ébria cantoria: isso é lindo, Carlos Alberto! E quando o silêncio se prolongava, permitindo até um cochilo, o pinguço insistia: Carlos Alberto, isso é lindo!

Jamais se soube se havia mesmo um Carlos Alberto dentro do ônibus, mas durante o tempo em que a vida permitiu o convívio de todos, a beleza para eles, fosse da música, das mulheres, do dia ou da noite, possuía uma expressão que a sintetizava: isso é lindo, Carlos Alberto!

Quando chegaram, a melhor das novidades: Mário, o mais velho da tropa, espécie de gerentão sempre preocupado em dar civilidade à bagunça, esquecera a chave da casa.

Sim, havia uma cópia na casa de um conhecido, mas quem iria bater na porta do sujeito às quatro da manhã?

Seu merda! Gritaram quase em coro, no que foram seguidos por dois ou três bêbados que se arrastavam à saída dos bares fechando. Gargalhadas tomaram o céu pleno de astros e estrelas ofuscadas pela lua iluminando também a vida.

E agora, onde a gente vai dormir? Um deles ainda perguntou quando a resposta era óbvia. Mário apontou com o nariz a areia da praia: olha que cama enorme!

Fizeram de travesseiros as sacolas, e de dentro delas puxaram os lençóis que no Rio as mães haviam providenciado. Ficaram assim empilhados, sete ou oito um ao lado do outro, mal protegidos do sereno. Passasse por ali o serviço social, recolheria todos para o abrigo da prefeitura.

É claro que não dormiram, no máximo dez ou quinze minutos de cochilo revezado. Quando o dia clareou, contavam piadas indecentes e disputavam quem dava o peido ou arrôto mais alto.

Saindo do mar, o sol saudava o grupo na porta de uma padaria. Caras amassadas da noite vigilante não escondiam a felicidade dos olhos quando o rapaz do balcão entregou a cada um a respectiva média com pão e manteiga. Chegou na hora em que ele e mais uns dois cantarolavam Dire Straits, ecos do Rock in Rio três meses antes. O fato é que em tudo, na música, no pão, no café, era como se houvessem mesmo entendido o recado do sol: vivam a vida, rapazes, em seus menores e mais deliciosos momentos.

Aqueles dias entraram para a posteridade.

Ao longo deles, dois ou três pileques de caipirinha foram curados com todos de cueca na piscina, para escândalo da classe-média do condmínio.

Feito folha seca de outono, o vendaval do tempo varreu o nome da menina que conheceu no sábado numa roda de violão, mas lembra que ela – Marina ou Fabiana? –  substituiu a outra, da outra festa, pois aos 17 anos as paixões duram tanto quanto um feriado.

Voltaram no domingo carregando mochilas pela rua de terra que levava à parada do ônibus, magros e abatidos com a dieta de miojo e batida de limão. A roupa de um, o cabelo de outro, nada escapava às incansáveis piadas de todos. Dá-lhe, porco! E gritavam toda hora, porque sempre havia um arrotando alto no fim da fila, horrorizando quem passava.

Pouco antes de embarcarem, um deles reparou que a lua, já minguante, nascia rosada, pois no extremo oposto o sol se despedia daqueles felizes estropiados. Dessa vez ninguém falou nada, mas todos pensaram o mesmo e ao mesmo tempo: Isso é lindo, Carlos Alberto!

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