Saudades de 1982

No verão de 1982 eu tinha 14 anos. Ou melhor, 13. Faço aniversário em maio, mas já me anunciava com a nova idade, mesmo que ainda faltassem cinco meses.

Choveu também naquele verão, mas nada que engolisse casas, ruas, desfigurasse cidades, roubasse vidas, despedaçasse famílias. Lembro-me bem mais dos dias de sol, sinal de que foram a maioria, o ônibus cruzando a cidade, atravessando o túnel Rebouças ou Santa Bárbara, dependendo do itinerário, deixando em Ipanema aqueles adolescentes iniciantes que desaguavam no mar os olhos secos pelo subúrbio sem graça.

Chegávamos sem chinelo, de camiseta no ombro, bermudas de fecho magnético batendo nos joelhos. Na impossibilidade de pranchas – imagine aqueles trambolhos dentro de um buzum da finada CTC! –, descíamos a onda no braço, no peito e nas pernas, ou seja, no “populacho” jacaré. Se o povo da ZS (zona sul, é claro) nos olhava de lado, eu não sei. Eu não sabia o que era preconceito. Eu sabia o que era viver feliz e ter sede de aventura.

Foi o verão em que morreu Elis Regina. Lembro bem dos mais velhos chorando. Eu não chorei, pra falar a verdade eu nem me toquei tanto. Estava cada vez mais às voltas com as descobertas sobre o estilo de música que embalou desde cedo a minha existência: esse tal de Rock’n Roll.

O Brasil vivia a expectativa de a seleção dar um baile de bola na Copa da Espanha. Expectativa, não! Uma quase total certeza de que o caneco ‘tava no papo, era só esperar junho e irmos lá pegar.

Lembro também do filme que marcou aqueles meses de céu azul e mar aberto, e de quebra toda uma geração de pirralhos: Menino do Rio, com André de Biase, Sérgio Malandro(acreditem!), Evandro Mesquita e Cláudia Magno, todos em atuações desastrosas, que na época deliciaram nossas almas desertas de qualquer referência cinematográfica.

Eu também fui apaixonado pela Cláudia Magno, musa daquele verão, morta 12 anos depois em decorrência da AIDS. E era da trilha sonora do filme o hit que embalava nossos ‘jacarés’ do Posto 6 ao final do Leblon: De repente, Califórnia, do Lulu Santos e do Nelson Mota. A versão que estourou nas rádios era do Ricardo Graça Melo, diferente (e bem melhor) da versão do Lulu. Até o advento do youtube eu nunca mais havia ouvido a música nessa versão.

Este ano completo 44 anos e sei que até a véspera direi que tenho 43. Moro num país que receio ir à bancarrota por causa de uma Copa do Mundo sem qualquer planejamento e não sei se o verão agora tem musa. Se tiver, certamente está apavorada com as denúncias sobre as próteses de silicone.

Chove quase sem parar há dois meses em Brasília, e a filha do vizinho ouve Michel Teló a cada vez que respira.

Saudades de 1982.

Brasília rural

Há uma ‘ruralidade’ em Brasília antecedente à construção da capital e que ainda não se dobrou aos esforços bem sucedidos de mandar às favas a ideia inicial de cidade humanizada, onde os grandes espaços, as árvores e os gramados poderiam conviver em paz com o ser humano.

Chegue à janela no fim da noite e fique em silêncio. Dependendo da quadra, em pleno Plano Piloto você ouvirá grilos cantando harmonicamente em sintonia com as estrelas, conforme escreveu certa vez o mais poeta dos poetas brasileiros, Mário Quintana.

Pela janela entrará, também em outras horas do dia, o cheiro agreste da natureza lavada pela chuva desta época, ou mesmo ressequida pelos castigos que o clima nos aplica em agosto e setembro. Aceitem isso, brasilienses: o cheiro é agreste porque estamos no interior, no meio do Brasil, no mais autêntico e genuíno sertão goiano, embora rechacem o fato algumas cabeças idiotizadas por Miami e Cancun.

Situações corriqueiras comprovam e revelam o espírito de fazenda que habita oculto – mas latente em certas horas – as primeiras superquadras, verdadeiros parques onde burocratas cansados da lentidão do estado criam filhos e observam a vida dar seu expediente.

Falo de uma dessas que me fez seu personagem por esses dias. Esvaziando a sacola com doações para a biblioteca pública, ouvi a chegada da chuva grossa esposada pelo vento forte. Quase imediatamente, ouço seis ou sete pancadas secas no telhado da pequena sala. São as mangas, explica o atendente, embora meus treze anos de Brasília dispensassem a explicação.

Agradeço o atendimento e mal saio à rua já estou molhado, pois, é claro, esqueci o guarda-chuva em algum canto do mundo. Já nos primeiros passos, desisto de atravessar depressa o gramado. Não porque a camiseta já estivesse ensopada, mas porque contrastando com a relva, espalhavam-se no verde mangas amarelas, maduras, convidativas.

Sem pedir licença à natureza, chafurdo o velho tênis nas poças que se formam nos desníveis do gramado. Em poucos golpes, recolho o quanto posso do que o vento conseguiu derrubar. A sacola que chegara abarrotada de livros, sai dali transbordando mangas, e eu, homem que trago a palidez cinza da urbanidade, volto pra casa molhado, feliz, tomando emprestado a paz que imagino sentir as gentes do sertão.

Batata frita

Quase arrumou confusão na fila do mercado quando a mulher que estava na frente cutucou o marido e, apontando uma revista com a Cristiane Torloni na capa, disse quando eu ficar coroa vou ficar igual a ela.

Sacando as formas redondas traseiras, laterais e frontais que saltavam da bermuda jeans da mulher, e checando também o carrinho que o casal abarrotara de caixas de hambúrguer, pacotes de salsichas e vidros de maionese, acabou pensando alto é ruim hein?

E no que o marido virou perguntando é ruim o quê mer’mão? Ele apontou na hora uns pacotes de batata frita, vaticinando essa marca é muito ruim, nunca levem.

Ficou um clima pesado, ele branco, o sujeito pouco convencido daquilo e a mulher olhando pra si mesma e pra capa da revista.

Mas a fila acabou andando, o sujeito empurrou o carrinho depois de ter dado uma sacada na mulher e pensando lá com consigo se o mané não tinha mesmo razão se falou mesmo o que tentou disfarçar com aquela história de batata frita.

Tanto faz

A essa hora do dia

a essa altura da vida

nada me entusiasma

nem me desilude.

‘Brasilha’ da fantasia

Ninguém acorda com culpa na Ilha da fantasia,

ninguém se sente culpado na ilha da fantasia

e não ser de todo inocente

é sempre muito normal na ilha da fantasia.

Na ilha da fantasia não interessam

os olhos inocentes dos filhos antes de dormir

os filhos apontados na rua

o que dirão os colegas na escola

e as crianças dos vizinhos.

Não fere arde envergonha

o olhar confuso das crianças

ao ler o que sai nos jornais.

Vamos ao que importa na ilha da fantasia:

a gratificação a estabilidade

a comissão as garantias

o adicional os benefícios

os 18% que me cabem

se não vou aos jornais

e conto da parte que não te cabia mas você levou

na ilha da fantasia.

Eu te filmei eu te gravei

eu sei de tudo da tua

deliciosa doce vida,

portanto, morreremos de mãos dadas

abraçados

atirando uns nos outros

até que nos esqueça a fugacidade da imprensa

e nos confortem as mãos amigas da Justiça

o entendimento do digníssimo desembargador

a interpretação da lei no tribunal superior.

Venha a meu gabinete

passe em meu escritório

vá com sua mulher lá em casa

daremos uma festa

faremos um jantar

quem sabe outros agitos até de manhã.

Ninguém é culpado na ilha da fantasia

ninguém deve nada

à mulher que espera o ônibus

e não combina bolsa e sapato,

à outra que atravessa a BR

longe da passarela,

nenhuma explicação merece o homem cansado

que sai tão cedo e volta tão tarde

levando no rosto

o resto de sonho desfeito.

Todos deitam sem culpa na ilha da fantasia

depois que se apagam as luzes lilases das festas

que se esvaziam as travessas

sossegam-se as bebedeiras

calam-se os vômitos

encerra-se o pó

e a paz reina envergonhada.

Quinze anos de prosa

 

Neste mês de outubro, completa 15 anos do lançamento de meu primeiro livro de contos, Voando pela noite (Até de manhã). Ele traz dez histórias escritas na primeira metade da década 90, que foram minhas primeiras incursões no mundo da prosa, após anos de uma longa “oficina literária” com a prática da poesia.

Nesse sentido, o livro é como uma represa que arrebentou, pois deu vazão àquela ânsia de autor inédito, tendo pela primeira vez a medição pública de seu trabalho, mesmo que a edição seja pequena e a venda menor ainda.

Voando pela noite (Até de manhã) foi escrito numa moderníssima (para época) olivetti praxis 20 – quem se lembra? –, cuja tecnologia oferecia no máximo o corretor ‘liquid paper’ embutido nas engrenagens e acionado por meio de uma tecla à esquerda.

Mas o livro, posso dizer, viveu na “pele” a revolução da informática. No início de 1996, foi digitado num PC 486 que rodava o “assombroso” windows 95. Salvo em disquete, lá se foi meu primeiro rebento impresso numa barulhenta matricial emprestada por meu amigo, vizinho e poeta Henrique Miranda para os braços do Jorge Viveiros de Castro. Entrincheirado entre centenas de livros no girau da editora 7Letras (que à época chamava-se Sette Letras), ele próprio fez a edição e escaneou a capa. Esta, aliás, foi concebida por mim mesmo e materializada pelo fotógrafo Lafayette Máximo. Além do casal se agarrando em cima de um dodge charger 73, eu também apareço ali, de forma “hitchcockiana” no alto à esquerda, encostado na parede de um bar que existia na rua Borda do Mato, no Grajaú que tanta inspiração me deu para escrever.

Há muitos anos não leio os contos de Voando pela noite (Até de manhã). Da última vez que o fiz, identifiquei, além das literatices de um escritor iniciante, minha evolução não apenas como autor, mas também como pessoa, e fiquei em paz com isso.

Lançado em 1996, ele foi finalista do Prêmio Jabuti no ano seguinte. Meus dois outros livros pela editora (A solidão do livro emprestado e A liberdade é amarela e conversível) passaram batidos pelos olhos dos jurados do mesmo prêmio, apesar de serem infinitamente melhores. Arrisco dizer que os dois não lograram êxito nesse sentido porque não trazem cenas de sexo, violência gratuita e personagens doentios, ao contrário do irmão mais velho. Desse palpite em relação ao gosto dos jurados dos prêmios literários, nasceu-me uma certa desilusão com a literatura.

De uma forma ou de outra, parece-me que os mil exemplares de Voando pela noite (Até de manhã) esgotaram-se. Há certo interesse da editora em lançá-lo no formato e-book, mas confesso que a temática e as infatilidades de autor inciante tiram-me parte do entusiasmo para isso. De qualquer maneira, ele está inteiramente disponível em www.andregiusti.com.br , com exceção do conto Ângela Sauer, disponível apenas na versão impressa.

E como já preveni o leitor dos defeitos técnicos cometidos em um livro de estreia, agora estou à vontade para convidar todos a conhecerem o debutante.

A banalização da recompensa

Escolas de classe média de Brasília darão carros 0km e ‘tablets’ aos alunos que alcançarem os primeiros lugares no Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem. Levam, dessa forma, para dentro da sala de aula, prática consagrada há algumas gerações em diversas famílias abastadas.

A promoção, por mais que diretores insistam em dizer que tem o objetivo de incentivar o aluno a se esforçar em obter boa colocação no exame, vestiu roupa de estratégia de marketing. O objetivo nítido é fazer com que o colégio abocanhe as primeiras posições, apareça bem no ranking a ser publicado nos jornais e atraia mais e mais alunos. Afinal, qual adolescente às portas de completar 18 anos não vai querer estudar no colégio que dá um carro?

Em um mundo cada vez mais acostumado a enxergar a vida pela ótica do mercado, a ideia é boa e deverá atingir seu propósito. Como não tenho formação acadêmica que me credencie analisá-la pelo prisma pedagógico, tento enxergá-la – ela e seus efeitos – pela lente das agruras que a vida impõe a todo ser humano em trânsito nesse planeta.

Nos últimos anos, trabalhei com diversas pessoas na faixa dos 20 aos 30 anos, e diariamente constatava a dificuldade que essa geração tem para ouvir um não. A qualquer de seus pedidos negados, segue-se sempre a cara amarrada de quem – para quem vê de longe – sofreu a maior e mais cruel das injustiças. Não pensam que aquele seu pedido, se atendido, muitas vezes poderá prejudicar, e muito, o andamento do trabalho ou sobrecarregar os colegas. E com a mesma dificuldade que possuem para enxergar os limites de seus direitos, sentem-se igualmente desmerecidos, desprestigiados quando executaram a contento a tarefa, mas não receberam elogios do chefe.

Imagino que para eles, elogios – e outras recompensas – deveriam estar vinculados ao cumprimento obrigatório dos deveres que a cada um compete dentro de um ambiente de trabalho. E é bom frisar que em boa parte dos casos o trabalho é feito apenas dentro dos limites estritos do satisfatório, sem brilho, sem diferencial.

Boa parte do tempo a que me referi acima, passei tentando compreender porque procedia assim a tal da geração X, Y, Z, ou sei lá que outra letra a determine. Adquirida a dádiva da paternidade, percebi que os “injustiçados” vieram de uma criação que banalizou a recompensa, que aceitou como quotidiano a paga com doce à criança que comeu tudo no almoço; o tênis novo pelas notas boas no bimestre; o carro zero pela aprovação no vestibular.

E como me parece que as escolas estão institucionalizando essa prática, é de se esperar para os próximos anos ainda mais choro, lamúria e beicinho quando não apenas o chefe, mas a própria vida pegar e disser “você não fez mais do que a sua obrigação”.

Pipa

Encontrei-os na porta do restaurante esperando alguém ou algo feito um táxi. Eu vinha do mercado, carregava pequenos pacotes no início de noite.

Reconheci-os de pronto, e eles se espantaram por isso. É que as lembranças mais antigas são as mais bem guardadas, eu brinquei, se nos conhecêssemos ontem perigava eu me confundir. E continuei simpático.

Por falar nisso, faz uns vinte anos a última vez? Arrisquei moderado, querendo ser gentil, pois eu mesmo sabia que fazia mais, muito mais.

Trinta daqui a quatro meses, eles corrigiram, foi no nosso casamento, logo depois nos mudamos para Brasília. E contaram ainda das idas e vindas até a vida chegar na normalidade da estabilização.

Falaram dos netos. Meus Deus! Como podem aqueles dois jovens naquela festa de casamento numa noite de verão serem avós?

E eu, que na mesma festa era só um adolescente de cabeça virada por uma garota um tanto mais velha que conheci num feriado de janeiro na praia e que jamais se deu conta de minha passagem pela terra?

Como pode aquele frangote insignificante que segurava o copo de coca-cola tentando imitar homem feito ter se transformado nesse sujeito subindo a rua carregado de pacotes, dúvidas e ansiedades?

E quando nos despedimos, pensei que o tempo é mesmo pipa que a linha ‘rebentou’ da mão da gente e que vai cair sabe-se lá em que terreno baldio, telhado de casa velha ou até mesmo mar desconhecido.

Camila tão sozinha

Camila tem TV moderna no quarto que é só dela.

Tem computador que fala desenha canta faz o trabalho de casa por ela.

Tem saia blusa calça pra escola curso festa e qualquer ocasião.

E com as roupas combinam sempre seus sapatos tênis sandálias chinelinhos coloridos.

Camila tem boneca que dança penteia namora e faz cocô.

Mas Camila não tem uma coisa que ela queria muito e a mãe ocupada e o pai no trabalho já disseram que não não e não não adianta insistir.

Ela queria tanto uma irmã pra ajudar a segurar a barra da vida, que Camila nem sabe ainda que às vezes pesa tanto.

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