Navio

No geral a vida se parece mesmo com uma viagem de navio. Agora já estava em alto mar, embora as luzes do último porto pudessem ainda ser vistas. Imensidão maior que a das águas, só a da certeza de que embarcar era mesmo necessário. Saudade era coisa como alguma daquelas constelações infinitamente acima: estavam lá, mas eram intangíveis. Imaginar quanto tempo de calmarias ou tempestades, dias impiedosos de sol e noites inquietas de solidão, só resultava no cálculo impreciso da ansiedade. Inclusive o destino, a chegada, era bom que reconhecesse, por via das dúvidas: não era inteiramente seguro que alcançasse. Só os portos que deixamos existem de fato, só eles são verdadeiramente seguros, daí tornarem-se esgotados de emoções e vida. Dele – do destino –  trazia imagens formadas na mente a partir do que escutara de alguém em uma ou outra ocasião. Por isso essa sensação de imigrante faminto, esperançoso e incerto que saiu da Europa e veio para o Brasil no século 19.

Domingo

A música do vizinho

No outro lado da rua

Arranha de leve

A paz da manhã.

Hortifruti eterno

Ela escutava Jonas Brothers no Ipod, e aflita esperava que o Guto ligasse de volta pro celular. Pouco caso fazia da mãe que lhe explicava o jeito de escolher melancia, o ponto que é bom de se levar o mamão.

Ela não imagina, mas dessa tarde a única coisa que realmente ficará para sempre será justamente a maneira besta de escolher as frutas.

Almoço de domingo

Pai, quem inventou o feriado?

Só deu atenção na terceira vez

Que ela perguntou.

Escapando da boca fechada,

O macarrão avermelhado de molho

Admitia a ignorância.

Pipoca comparativa

A pipoca gordurosa

com cheiro de óleo de soja

feita na carrocinha de alumínio amassada

pelo homem que há três dias não se barbeia

e cuja barriga esgarça

o jaleco encardido,

que é viúvo precoce

com fillho entrevado

e filha perdida

e há trinta anos

faz ponto na praça nostálgica,

é muito mais gostosa

que o super combo do Cinemax.

Por que votei na Dilma

Na metade dos anos 90, eu trabalhava no Sistema Globo de Rádio quando a empresa passou pelo chamado “choque de gestão”, expressão em voga à época. Não os detalhes, mas a filososofia do que estava por vir, foi comunicada através de um vídeo exibido na festa de fim de ano dos funcionários. Nele, o novo diretor-geral comunicava a todos que “cabeças iriam rolar” no ano que começaria. É claro que usou a linguagem polida e moderna das contemporâneas técnicas de recursos humanos, a mesma que trasnformou vendedor em executivo de vendas e mensalidade em investimento, uma espécie de tática cínica que inventa valor irreal para coisas que já possuem há tempos um valor consagrado na vida diária.

Nos primeiro meses do ano que entrou, dezenas de pessoas foram demitidas na empresa, ou melhor, “foram procurar novos desafios”, de acordo com a mesma linguagem hipócrita. Onde trabalhavam cinco, passaram a trabalhar apenas dois, sendo que destes se passou a exigir a produção de sete, afinal o “acionista precisa ter retorno”. Esse é o pensamento vigente na maioria das empresas privadas que conheço, em especial as de comunicação, onde se amontoam pessoas vencidas pelo estesse, pela depressão, pela distância que são obrigadas a ter dos filhos, pois o mais importante é que o acionista tenha retorno.

Era, aquela época, o governo Fernando Henrique, o governo que com a desculpa do “estado enxuto” consagrou a terceirização do serviço público, porta escancarada para a roubalheira que se observou, entre outros lugares, no Senado Federal.

Desde lá, passei a identificar essa postura como um dos paradigmas da filosofia tucana: existem cinco trabalhando? Então vamos demitir três, e contratarmos um com a metade do salário daquele que ganhava menos. Sempre reconheci nela, na filosofia que prega a tal “liberdade de mercado”, total desprezo pelo elemento humano feliz e tendo seu trabalho reconhecido e valorizado. Isso, é claro, quando falamos da base, do funcionário médio que compõe a maioria de uma empresa, pois quando a tal filosofia chega aos andares da diretoria, ela se desfaz em altos salários e privilégios contraditários ao discurso que prega a satisfação do acionista.

Poderia enumerar, ao longo da história, diversos fatos que formaram minha convicção política – a mesma que tem noção de que Lula e Dilma estão bem longe da perfeição, e de que foi bem saudável para democracia que a tucanada tenha vencido em São Paulo e Minas, por exemplo – , mas ficaria um texto muito longo para a internet.

Portanto, essa visão, adquirida a patir do que vivi (e vivo) na carne, fica como minha declaração de voto.

PS: Apenas para não deixar passar em branco essa história da Dilma Guerrilheira. Do jeito que condenam essa parte do passado dela, é de se entender, então, que corretos estavam os que torturavam, inclusive, mulheres grávidas, não é mesmo? Por favor, vamos ter um pouco de noção, ao menos, de nossa história recente.

A vida começa agora

 

O último café 

O último copo d’água

Até mesmo a derradeira ida ao banheiro.

E finalmente – e bem devagar –

O último olhar sobre tudo o que

a partir dali se trancaria para sempre  

no quarto silencioso e escuro do passado.

A contralongevidade

A escola em que minhas filhas estudam permite que a comemoração dos aniversários seja feita no intervalo das aulas. Não há como negar o lado econômico e prático dessa história. Poupa-se o dinheiro com o aluguel do espaço e do investimento nas pequenas mega produções que se tornaram as festas infantis. Sem falar que a presença de convidados é garantida, pois da outra forma chama-se 20 para que cinco compareçam, entre outros motivos pela dificuldade que as pessoas têm de conviver e se “freqüentarem” nos dias de hoje.

O problema é que a gurizada sai da escola pelo menos uma vez por semana entupida de balas, chicletes e empanzinada de docinhos e salgadinhos, na maioria das vezes do tipo que faz cem metros rasos numa piscina de óleo fervente. Então, em casa, são duas óperas: a primeira é fazer com que as pequenas comam o que realmente interessa para o crescimento, e a segunda é dispensar no lixo ao menos a metade de toda aquela porcariada colorida, para que eu não gaste no dentista com elas o que a mãe do coleguinha economizou na festa.

Já que a indústria decidiu que não é suficiente sair da festinha apenas com um chapeuzinho e uma língua de sogra, como era na minha infância, que tal apenas um pouco de criatividade das mães que organizam as tais lembrancinhas da festa? Um brinquedo bem besta ou um livrinho bem simples podem substituir essa montanha de açúcar e esse mar de química que as crianças invariavelmente levam para a casa após cantar parabéns para os amiguinhos.

Nos últimos anos, os avanços da ciência e da medicina elevam cada vez mais nossa estimativa de vida. Já é cada vez mais possível – e até provável, dependendo do caso – morrer com 80 ou até 90 anos. O problema é que cultuando o açúcar e submissos ao ataque da indústria do colesterol – Mac’s e etc – talvez estejamos na contramão da longevidade, jogando pela janela o árduo trabalho de médicos e cientistas.

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