Pequenas mudanças repentinas 2

Nunca havia reparado em Luíza.

Até que ela se espreguiçou na fila do café,

Esticou os braços para cima,

E por longos três segundos deixou à mostra

Um palmo de abdômen.

Quanto voltou ao normal,

Já era a mulher da vida dele.

Ai de ti, Brasília!

Na coletânea Brasília – 50 anos em seis, prosa e poesia, lançada em maio e da qual faço parte ao lado de, entre outros, Nicolas Bher e de um dos Jabutis deste ano, José Rezende Jr, um de meus contos fala de um desembargador de um alto tribunal do país que humilha um simples faxineiro que se esmera como pode para lustrar o chão da corte. O conto é uma ficção que se apóia em uma situação para lá de possível, embora os personagens, e a própria história, não tenham sido criados a partir de ninguém específico nem de determinada situação.

Mas poderia ter sido. Caso eu ainda não houvesse escrito, bem poderia buscar matéria prima na notícia publicada no blog do jornalista Ricardo Noblat (http://oglobo.globo.com/pais/noblat/ ). Ele conta sobre um estagiário demitido sem qualquer motivo, e por isso mesmo de maneira absurda, pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ari Pergendler. O rapaz perdeu o estágio apenas porque estava na fila do caixa eletrônico atrás do ministro justamente no dia em que vossa excelência deve ter acordado mal do fígado, achando que a vida é mesmo uma porcaria, pois nem o mundo nem ninguém está a altura de um homem tão importante para a humanidade quanto ele.

Além da Brasília da corrupção e da bandalheira, existe uma outra cidade calada, que não aparece nos jornais, mas que é bem conhecida de quem mora aqui. É a Brasília da posição social, do status, a Brasília que te classifica de acordo com o endereço, marca e ano do carro, colégio dos filhos, que acha pequeno um salário de R$ 5 mil e barato um par de sapatos de R$ 300. É uma Brasília – que não é a cidade toda – que estranha e se incomoda com o bom dia no elevador, que não dá passagem no trânsito, onde o motorista de táxi não conversa com o passageiro e o vizinho se empenha em ignorar o da frente.

Uma das crônicas mais famosas de Rubem Braga é Ai de ti, Copacabana!, uma visão do apocalipse no bairro, com o lugar engolido por seus próprios vícios e vaidades. A partir do texto do velho Braga, é fácil viajar do litoral ao cerrado. Fechada em si mesmo, essa Brasília vai construindo mansões e comprando carrões e barcos, e sem se dar conta vai definhando milionária e entediada, procurando a cada dia ser mais arrogante do que ela própria.

Dobradinha

 O jornalista Rodrigo Leitão postou em seu blog (www.gourmetbrasilia.blogspot.com) várias informações sobre a tripa à moda do Porto, comida portuguesa naturalizada brasileira com o nome de dobradinha. No texto, temperado com “suculentas” fotos, você fica sabendo a história, o modo de preparo, os vinhos que caem bem com o prato e os restaurantes aqui em Brasília que servem a iguaria, para a qual, aliás, muita gente vira a cara e o estômago.

O post, na verdade, é o texto que foi ao ar no quadro Giro Gastronômico da BandNews FM – 90,5, e que o Rodrigo apresenta todas às quartas e sextas às 12h45. Nele, meu amigo e companheiro de redação diz que é uma homenagem a mim. Tudo porque outro dia, numa daquelas conversas que entremeiam a loucura dos noticiários, eu disse que gostava de dobradinha, ou melhor, que um dia gostei de dobradinha. Após anos de exageros gastronômicos, minha filosofia alimentar agora passa um tanto longe da carne vermelha, mais ainda das vísceras do boi.

Mas dela, da dobradinha ou da tripa, continuo guardando deliciosa memória afetiva. Era um dos pratos que minha mãe cozinhava aos domingos, e que em torno dele se juntava a família na casa em que morávamos, no bairro do Grajaú, nos distantes anos 70. Dentro de um panelão, hoje sexagenário, iam a dobradinha, o feijão branco e generosos pedaços de paio e cenoura. Hoje sabemos que entrava também um ingrediente que não aparecia na cor ou no gosto da comida, mas que atravessou o tempo: o amor da cozinheira pelos comensais.

Ao longo dos anos, nos empanturramos não apenas de dobradinha, mas de rabada com agrião, cozido, macarrão, risoto, bacalhoada e galinha, pratos que ganhavam vida dentro daquele caldeirão, devorados em meio à algazarra de família grande. Hoje, a velha panela está longe do fogão, esquecida no fundo do armário da casa de minha irmã. Tornou-se ainda maior do que era, pois agora somos menos e mais distantes, comemos fora ou então, práticos e modernos, pedimos delivery. Nada mais se cozinha no caldeirão, além, é claro, de uma imensa saudade em fogo brando.

Criança como se era

Cerca de um mês atrás, ganhei da própria Ana Cristina Melo seu livro infanto-juvenil Caixa de Desejos. Aberto o envelope, ele ficou na mesa do computador, engrossando a pilha dos livros a serem lidos, e que se forma pelo nosso desleixo. Aguardou humilde e pacientemente sua hora de ser lido, não usou seu pistolão – minha amizade virtual com a autora – para obter qualquer preferência na fila.

Até que, já de bagagem nas mãos rumo ao aeroporto – a porta do apartamento aberta, o táxi esperando – “convidei-o” para ir ao Rio no último feriado. Afinal, carregar um tijolaço como Os miseráveis – que estou relendo – não é lá muito cômodo quando se “pica a mula” com três crianças pequenas e mais sei lá quantas malas. Esbelto, o livro de minha amiga embarcou comigo.   

Caixa de Desejos é aquele tipo de livro que encurta uma viagem de avião, e não nos deixa lembrar da revista de bordo da Gol. De forma ágil, Ana Cristina Melo conta a história de Marília, uma pré-adolescente que cultua a memória da avó e é apaixonada pelos livros – lê e escreve compulsivamente, como fazemos nos verdes anos. De quebra, ganha logo no início da história uma meia-irmã que ela não conhecia.

O acerto do texto é não descambar para um vocabulário que compusesse não um personagem, mas sim um estereótipo. Marília – nome histórico em nossa literatura – não fala “caraca véi” em momento algum. O texto é simples e acessível à faixa etária a que o livro se destina, sem que com isso precise “desensinar” os leitores a falar e a escrever.

Mas o grande mérito de Caixa de Desejos está na própria personagem. Marília conquista muito mais pelo que não é, do que propriamente pelo que é. É bem saudável haver na literatura infanto-juvenil uma menina que vive a sua própria idade, sem a obrigação necessária de se tornar adulta e mulher fatal antes da hora. Marília não pinta a cara, não usa batom, não se equilibra em sapatos de saltos altos. Os cabelos de Marília são os cabelos de uma menina de seus onze, doze anos: neles, a sociedade doente não a obrigou a chapinha, alisamento ou escova definitiva. Marília não envelheceu antes da hora, sua sexualidade virá de acordo com a natureza, e não imposta pela mídia. Marília também não bate pernas em shopping, não é viciada no MaCdonald’s. Alegre, espera o bolo de laranja da mãe no final da tarde, coisa de um tempo em que ser criança, era apenas ser criança.

De volta a Brasília, Caixa de Desejos foi para a estante, em lugar honroso, esperar, com a altivez dos bons livros, que minha filha mais velha tenha a idade de lê-lo. Enquanto isso, vou me esforçando, nadando contra a corrente para que minha pequena tenha muito de Marília.

O teria e o suposto

A pressa com que o jornalismo é feito serve de desculpa para muitos erros que nem sempre – ou quase nunca – são corrigidos, ou corrigidos de forma que os prejuízos provocados pela gafe sejam recuperados.

Mas desconfio que não se possa pôr apenas na conta da pressa a opção pelo “jornalismo do teria e do suposto”. As duas palavras empesteiam os textos jornalísticos há alguns bons anos sem preferência por veículos. Invadem as páginas, as ondas do rádio e as telas, tanto de nossas TVs quanto de nossos computadores. E também não credito isso tão somente à pobreza vocabular de profissionais que não sabem escrever sem usar outras palavras sobre uma falcatrua não confirmada ou um fato ainda incerto.

Hoje em dia, se Antônio liga para uma redação dizendo que tem uma denúncia “cabeluda” contra Armando, se dá a ele ouvidos e crédito, mesmo que em momento algum Antônio apresente nada de concreto ou documentado provando o que diz saber sobre o outro. Quanto a este, consegue apresentar sua defesa muitas vezes – e às vezes não – na correria de um fechamento ou na histeria de um noticiário prestes a entrar no ar. Mas nada que receba acuidade no tratamento, rigor e cuidado na verificação dos fatos, levantamento de informações que comprovem ou desmintam aquilo que pode jogar na lama a reputação de uma pessoa.

Em tempos normais, isso ocorre pelo afã de dar a notícia em primeira mão, sair na frente do concorrente, correria típica da profissão, cujo combustível na atualidade é muitas vezes a falta de experiência dos jornalistas, inclusive nos cargos de chefia.

Isso em tempos normais.

Em época de eleição, parece que outros fatores andam a alimentar o “jornalismo do teria e do suposto”.

No Rio de Janeiro

Para Clarice.

 

Nos olhos espanto-extasiados

da menina de Brasília,

coube o mar inteiro

de Ipanema ao Leblon.

Cinema Real

Assisti à Tropa de Elite 1, três anos atrás, muito mais por obrigação do que por vontade própria. Existem certas coisas que precisamos fazer – no caso ver – para não ficarmos por fora do debate, mais ainda quando a matéria prima de nosso trabalho é a atualidade.

Poucas vezes saí de um filme me sentindo tão “pesado” quanto daquela vez. Trago na memória a cena em que o casal é executado no alto da favela como uma de minhas mais horripilantes lembranças cinematográficas. Naquela noite dormi mal, acossado pelo medo de um monstro criado pelo Estado e pela sociedade.

O filme, entretanto, foi importante à época porque expôs o interior de uma Polícia esfacelada pela corrupção, Polícia paga com nosso dinheiro para nos proteger, mas que na verdade nos ameaça. Fundamental também foi a luz que lançou sobre a obviedade: quem usa drogas é responsável pela violência do tráfico. Ora, é uma lei de mercado: se há venda, é porque há gente interessada em comprar. Ou será que o Bill Gates ficou rico por outro motivo que não a venda dos produtos que sua empresa criou? Tropa de Elite incomodou outra elite, a das coberturas da zona sul do Rio e de outras cidades brasileiras, que continua querendo não correr riscos enquanto puxa seu fumo e cheira seu pozinho.

Mas passado esse debate necessário, a volta do Capitão Nascimento, ao contrário, me parecer agora desnecessária. Embora já tenham me dito que o segundo filme é melhor do que o primeiro, sendo menos violento e mais “político” no sentido de denunciar o Estado podre que nos administra, acho que a continuação de Tropa de Elite soa a sensacionalismo, enxergar na violência o caminho das cifras. E pelo jeito estão certos, pois nesse feriado mais de dois milhões e meio de pessoas assistiram ao filme.

Não critico quem foi e quem irá assistir, talvez Tropa de Elite 2 traga novas reflexões sobre esse universo aterrorizante da venda, do consumo, do combate e das vítimas do tráfico de drogas. Mas agora eu passo, já me basta o peso de ser acuado pela violência do cinema real de nossas cidades.

Café Literário

Nesta terça-feira, dia 12, estarei no Café Literário da Feira do Livro de Brasília falando sobre duas coisas que me acompanham há muitos anos: jornalismo e literatura.

O encontro será às 19h lá no Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade, onde a feira ocorre este ano.

A idéia do encontro – que reunirá outros escritores / jornalistas – é falar sobre aspectos positivos e negativos da interferência de um ofício no outro.  Dou aqui, uma idéia do que vou falar. No meu caso, o jornalismo fornece idéias à literatura, mas ao mesmo tempo rouba o tempo de ela ser feita. É meu eterno drama, desde que pisei em um redação pela primeira vez, em 1987.

Vejo vocês lá.

No fim da fila

Não passava em concursos públicos

Nunca recebeu prêmio literários.

Seu máximo foi a reclassificação

No vestibular da faculdade paga.

Pelo crivo dos homens,

Era um descolocado.

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