Sem poesia, por favor

Deixo a TV ligada na cozinha e fico do quarto, no computador, ouvindo o Jornal Nacional e esperando a cobertura de Holanda e Uruguai. Acompanhei o jogo até os 30 minutos. Portanto, perdi o segundo gol Uruguaio, quando a Celeste ameaçou um milagre.

Ouço a chamada da reportagem, calço os chinelos rapidamente e corro até a cozinha. Paro em frente ao televisor, quero conferir o que perdi. Mas o que vejo é uma espécie de “crônica bonitinha” sobre a partida, aquele jogo meloso de palavras que tem a obrigação de casar com as imagens captadas pelas câmeras colocadas até nas privadas do estádio se duvidarmos.

Permaneço em frente à TV na teimosa esperança de que a reportagem cumprirá seu papel clássico e fundamental, que é o de informar. Quero ver de novo o golaço da Holanda que abriu o placar, o empate do Uruguai e, como já disse, o restante que um compromisso no final da partida me fez perder.

Mas toma-lhe de literatice, de texto piegas com locução pretensamente emocionada nos ouvidos do telespectador. O texto faz mais curvas que a Jabulani, sendo que esta, ao menos, de vez em quando chega ao seu objetivo, que é a rede. E a seu modo as imagens acompanham a pieguice, exibidas em uma velocidade na qual mais parece que o jogo foi disputado em solo lunar, na ausência da gravidade.

Mas e o gol que eu perdi? Os outros que quero rever? Pergunto sabendo que o tempo da reportagem já está se esgotando. Não adianta, o repórter insiste em poesia de banco de escola em vez de informação, e no lugar dos lances inteiros dos gols, as imagens se sucedem mostrando apenas a bola já beijando no barbante, tudo naquele ritmo de pluma caindo do alto de um prédio numa tarde sem vento.

Volto ao quarto pensando que jornalismo é esse, pretensioso na sua ambição de informar levando ao público um espetáculo emocionado em cada reportagem, angariando fãs entre os iludidos estudantes de comunicação e alguns jornalistas ainda deslumbrados, que se esmeram em copiar esse modelo todos os dias. Provavelmente o errado sou eu, rabugento com mais de 20 anos de imprensa, procurando na internet um link em que eu possa encontrar a informação que o telejornal não me deu.

De volta à Copa do Mundo

Do que se chegou a imaginar como Copa América em plena África do Sul, sobrou apenas o Uruguai, e mesmo assim para disputar o tanto faz tanto fez do terceiro lugar, uma briga mais sem graça que dançar com irmã. Dos cinco sul-americanos, três caíram diante de adversários visivelmente mais fortes, o Chile contra nós – jogo que iludiu os que se enganam pela cegueira do ufanismo -, a Argentina e o próprio Uruguai. O Paraguai  deixou a Copa talvez pela falta de sorte, o que nem sempre significa exatamente azar. O Brasil rodou por uma série de fatores, entre os quais a falta de time.

A possibilidade da Holanda ser, enfim, campeã do mundo chega a ser um deboche social-histórico. Com tanta copa para vencer, é irônico que o país encontre a glória exatamente onde ajudou a implementar um regime odioso de segregação racial.

Mas a presença da seleção laranja na final reserva duas possibilidades interessantes. A primeira é o duelo entre dois países que jamais foram campeões do mundo, caso a Espanha se classifique. A última vez que dois sem título disputaram uma final foi em 78, a copa do Peru comprado. A Argentina levou a melhor sobre a própria Holanda, que 32 anos depois permanece sem o caneco.

A segunda possibilidade é a reedição da final de 74, e aí faço um lembrete aos alemães, sensação da Copa das vuvuzelas. Não foram raras as vezes em que o melhor time ficou chupando dedo. A Hungria em 54, a mesma Holanda 20 anos depois e o Brasil de 82 deram show, mas saíram do picadeiro com as luzes apagadas.

Portanto, Alemanha, cuidado! Pois assim como o apartheid, o futebol também sabe ser injusto e cruel.

A ilusão do brahmeiro

Cerca de dois anos atrás eu estava no caixa de um supermercado no Lago Sul, bairro chique de Brasília, e a minha frente três moças de no máximo 20 anos. Cada uma levava duas pequenas garrafas de vodka mais quatro latinhas de cerveja. Outros 20 anos separavam aquela cena dos meus tempos de ir ao supermercado comprar uma garrafa de run para misturar com coca-cola em alguma festa. Mas a diferença não era somente de época. Até passar no caixa, eu procurava esconder a bebida e depois ia embora, tudo para não topar com algum vizinho ou conhecido. Naquelas três não havia qualquer pudor em ao menos disfarçar as garrafas e as latas, mas ao contrário, empenho em agir com naturalidade, como se a intenção fosse demonstrar que eram vivas e alegres porque bebiam ou vice-versa.

Lembro desta cena porque saiu nos jornais pesquisa do Ministério da Saúde mostrando os números do consumo de bebida no país. No Distrito Federal, entre as mulheres, o número mais do que dobou em relação à última pesquisa, em 2008. Fora as baianas, aqui estão as mulheres que mais entornam no Brasil.

O exemplo das mulheres do DF talvez sirva para refletir se não há atualmente em torno da bebida alguma coisa que possui tanto apelo quanto o glamour que acompanhava o cigarro nas propagandas até os anos 80.  Diferentemente do que fazia com o fumo, a propaganda não diz que seremos belos e bem sucedidos se bebermos, mas dá a entender que seremos mais felizes socialmente e arrumaremos mais amigos. Existe até mesmo algo que disfarça uma tentativa de associar o hábito a uma qualidade de caráter, a uma forma elogiável de conduta. Se prestarmos atenção no texto e na forma como ele é lido no comercial da Brahma, por exemplo, é de se supor que ser brahmeiro é o mesmo que enfrentar com coragem os percalços da vida, ser persistente, não se abater com as derrotas. Substituíram a exploração erótica da imagem das louras por uma imagem forjada de pessoas conscientes da vida. 

Terreno fértil para o plantio da propaganda, o jovem vai bebendo mais e mais a cada ano, e não apenas para descontrair – o que é normal e saudável – mas para cair, passar mal, não lembrar de nada no dia seguinte e ainda pôr, em muitos casos, em risco a vida dos outros.

Se hoje em dia fumar é brega, de quanto tempo precisaremos para descobrir que ficar bêbado não faz de ninguém belo, charmoso e muito menos capaz de fazer bons amigos ou resolver seus problemas?

Brasil X Holanda, 2010*

Não é nenhuma novidade que faltava talento à essa Seleção Brasileira. O que não sabíamos é que também não havia controle emocional. 

A Seleção me lembrou aquele suspeito que confessa a autoria de um crime logo que começa a ser pressionado no primeiro interrogatório na delegacia. E a expulsão de Felipe Melo foi uma confissão de que nosso time estava com os nervos em frangalhos, estranhamente quando ainda ganhava o jogo, quando poderia ter decidido o embate ainda no primeiro tempo, pois, ironicamente, fazia sua melhor apresentação em gramados sulafricanos.

Escrevo essas linhas triste, mas não desiludido. Esse time fez o que se esperava dele: fracassou, comprovou que perdeu tempo o torcedor que alimentou sonhos com uma seleção mal convocada e que ludibriou os mais ufanistas na vitória sem brilho diante do Chile.

Sabe-se lá, mas é de se desconfiar, que interesses pautaram a convocação quando assistimos aos comerciais da Gillete, da Brahma e alguns dos “milhares” dos quais o Robinho participou. Nem falo de Felipe Melo e companhia, para quem a camisa do Bonsucesso já seria pesada demais. Para uma Copa do Mundo, o jogador precisa estar, como se diz na gíria do futebol, na ponta dos cascos. Kaká e Luiz Fabiano estavam longe disso, e deram razão à desconfiança geral da crônica esportiva séria.

É informação errada dizer que a Seleção volta para a casa, porque simplesmente o Brasil não é a casa dela. Entre outros problemas – e isso não é um particular apenas da seleção desta Copa – está a falta de identificação do time com o torcedor, um torcedor que não vê nos estádios brasileiros praticamente nenhum dos jogadores que vestiram a camisa amarela, orgulho nacional.

Essa seleção volta para a casa dela – a Europa – para continuar jogando bem apenas no mundo encantado dos comerciais de TV.

*Na sábado que vem, volta ao blog a coluna literária de Alexandre Pilati

Brasil X Holanda, 1994.

Cada geração de torcedores tem seu jogo inesquecível da Seleção Brasileira. O de meu pai foi Brasil e França, semi final da Copa de 58. Ganhamos de 5 x 2 e entramos na reta final para conquistar nosso primeiro caneco. Meu irmão sempre cita Brasil e Inglaterra, na Copa de 70, o da memorável defesa do Banks na cabeçada do Pelé.

Minha geração não lembra da Copa de 70, portanto até 94 jamais havíamos visto um brasileiro levantar a taça. Da mesma forma que aquele Brasil e França resgatou um pouco o orgulho de quem viu o Uruguai vencer em 50 nas nossas barbas, o Brasil e Holanda de 94 redimiu em parte a derrota para a Itália na Copa da Espanha, em 82, o maracanazzo dos filhos da revolução. Naquele sábado, o show da maior dupla de ataque que vi na Seleção – Romário e Bebeto – levou o Brasil à semi final, mas a verdade é que ali embalamos de vez e metemos a mão na taça. Ficamos esperando apenas a hora de poder levar para casa. Houve ainda, é claro, a bomba santa do Branco, com direito a tiradinha de bunda do Romário, exatamente na hora em que o Brasil dormia em campo e a Holanda era melhor, após ter conseguido o empate.

Assisti ao jogo na redação da TV Bandeirantes, no Rio. À época eu apresentava o telejornal local da emissora, que entraria no ar 40 minutos após o termino da peleja que testou enfartados. Entrei no ar rouco, pedindo desculpas, alegando que milhões em todo o país estavam do mesmo jeito que eu àquela altura. Mas o que eu queria mesmo era dizer que a minha geração estava resgatando a si mesma como torcedora da Seleção.

 

 

Judite

Ela não nos esperava chegar em casa, seu limite não alcançava a alta madrugada, quando não o próprio amanhecer. Mas quando acordávamos, vinha com uma chícara de café preto fumegante, muito embora já fosse quase hora do almoço. Ficava da mesa da sala espiando divertida nossas caras amassadas de ressaca, sentados no sofá, acordados sem termos extamente despertado, tentando entender o que se passava já no meio do dia. E aí, quando afinal engrenávamos nossas histórias de sucessos e fracassos pelos bares da cidade, ela pousava em nós olhos risonhos e fazia um jeito de quem sabia de algumas coisas e desconfiava de outras.

Sempre que eu ia visitá-los, recebia dela um abraço tão apertado que tornava a viagem bem menos longa. Então, o cansaço da estrada, feito lagarta feia e amarronzada, se transformava em borboleta feliz e eufórica despejando novidades e notícias de todos. Logo em seguida, ela me mostrava meu lugar na casa e a cama em harmonia com lençóis esticados, obra perfeita de seu carinho de mãe emprestada.

No jantar, antes de buscarmos outra vez aventuras na noite gelada de Curitiba, ela contava casos da vizinhança de tantos anos da Tijuca, desencavava outros ainda mais antigos da infância em Minas. E ríamos tanto, que se não fosse nossa busca desenfreada pelas ilusões dos vinte e poucos anos, ficaríamos ali em meio a tigelas vazias de sopa e farelos de pão na toalha.

Os anos passaram e guardei essas lembranças em enormes caixas de gratidão. Agora, lendo na tela fria do computador o e-mail curto que não comporta a extensão da tristeza do aviso que me traz, eu choro lágrimas sinceras do filho que dela fui em algum momento da vida.

Sotaques

Brasília não é uma cidade que possua uma cultura própria. Tão nova, está ainda longe de ter. Sua cultura talvez seja justamente ser multicultural, zona de convergência de costumes e tradições dos 27 estados. Também não possui culinária própria. 50 anos é pouco tempo para se criar uma receita própria, e a mesa da cidade é outro ponto de confluência, só que agora dos sabores, do sul ao norte.

Acredito, entretanto, que no meio de misturas, de algo já se possa falar que tem a marca de Brasília: o sotaque, muito embora ele também seja um arranjado entre o modo de falar de goianos e mineiros, com marcante acentuação nordestina. É difícil explicar que algo que não seja originalmente particular da cidade, me pareça tão próprio da gente que nasceu aqui. Em resumo, doze anos depois de ter chegado à capital do país, reconheço em qualquer canto do Brasil quando é um brasiliense que está falando, da mesma forma que identifico sem erros os gaúchos ou meus conterrâneos cariocas.

Falo disso porque me incomoda um comercial que está sendo veiculado nas rádios e TVs da cidade. O texto lido por três ou quatro pessoas com um fortíssimo sotaque paulistano, anuncia as vendas de terrenos de um condomínio chamado AlphaVille, efatizando que ele fica a 20 quilômetros da Ponte JK, uma das três que ligam a cidade atravessando o Lago Paranoá (Quem mora aqui sabe que qualquer lugar a 20 quilômetros da Ponte JK é bem próximo ao fim do mundo, algo bem complicado em uma cidade em que o litro da gasolina custa R$ 2,67). Bem à maneira dos empreendimentos imobiliários, promete o mundo perfeito e a felicidade eterna, tudo com o R bem marcado no final e o destaque anasalado nas sílabas com en, típico do paulistano (enteeeendo, viveeeeendo). Quem ouve corre o risco de pensar que o condomínio fica em São Paulo, não em Brasília.

Nada contra o sotaque do paulistano, mas me parece que a concentração de agências publicitárias lá, está provocando quase uma “colonização” comercial no resto do país, bem parecido com o efeito do sotaque carioca das novelas nos anos 70 e 80. É difícil, nos dias de hoje, ouvirmos um anúncio – principalmente nas rádios – que não possua o sotaque paulistano. É claro que não vamos pretender que um comercial de sabão em pó, um produto nacional, seja gravado em cada estado, de acordo com o sotaque local. Mas um lugar onde as pessoas irão morar, é algo que já nasce íntimo da cidade, é algo extremamente regional, e um comercial com sotaque forasteiro não consegue passar isso ao público. É como se uma pessoa que nunca foi na nossa casa, saísse falando da arrumação dos móveis ou dos problemas da nossa família.

Formas simplistas

Minha mulher me mostra a notícia de que o atacante argentino Messi gastou US$ 3 milhões para dar um helicóptero de presente ao técnico Maradona. Indignada, questiona se ele não poderia investir o mesmo dinheiro em uma instituição de pesquisa que procurasse, por exemplo, a cura da Aids.

Enquanto ela apresenta seus argumentos, para mim mesmo vou lembrando do combate à fome, de programas que poderiam, com esse dinheiro, livrar jovens carentes das chamadas situações de risco. Lembro também da miséria na África, de outras mazelas das nossas Américas pobres, entre elas a do próprio Messi.

Recordamos os médicos que, hospitais públicos do terceiro mundo afora, abrem cabeças e delas retiram coágulos mortais, recebendo salários indignos para tamanha responsabilidade, mas que são o retrato, em cifras, das condições de trabalho. Isso sem falar nos muitos professores que formaram aquele cidadão para que ele pudesse abrir cabeças.

As colocações de minha mulher podem ser simplórias, simplistas, mas tornam-se irrefutáveis porque estão sustentadas pelo pilar do bom senso. Haverá os que dirão que o dinheiro é dele, ele gasta como quiser, e assim farão com quem se confunda simplismo com o conformismo de que o mundo é assim mesmo e não vale se preocupar se as coisas não são justas como deveriam ser. Pretensamente mais embasados, os lógicos não irão muito além de explicar que o milionário mercado da bola concede licença às extravagâncias.

A mim, a todos, cabe escolher a forma simplista como quer ver o mundo de hoje. Se a romântica e até ingênua de minha mulher, ou as que, anestesiadas, aceitam como normal a inversão de valores que coroa a injustiça.

Falemos, então, de futebol

A Copa do Mundo chega à metade, ou algum ponto próximo, produzindo ícones que não estão necessariamente dentro das quatro linhas. O primeiro deles certamente é a vuvuzela, que aliás se tornou famosa bem antes da Copa começar, pois não é de agora que atazana os ouvidos na África ou em qualquer lugar do planeta sintonizado nos jogos. Fica a torcida para que essa corneta – embora simpática – irritante, seja como uma espécie de pássaro que tenha medo de mar e não atravesse o oceano em 2014.

Outro ícone da Copa da África está o tempo inteiro dentro de campo, nos 90 minutos e, agora nestas oitavas de final, na prorrogação e pênaltis. Mas da Jabulani se fala menos como boneca da festa do que como produto industrial. Suas curvas e traições viraram debate com direito a recapitulação das aulas de física, das quais eu, pelo menos, não tenho a mais vaga lembrança.

Outro símbolo da África do Sul 2010 diz respeito mais a nós brasileiros do que propriamente ao universo geral da competição. Falo da carranca antipática do Dunga e sua cruzada contra o direito que a TV Globo acha que possui de ter acesso diferenciado à informação, usando todo o tipo de instrumento, menos o único legítimo, o jornalístico. Se o Brasil for campeão, será a glória de um técnico que por convocar mal e não escalar muito melhor, não merece o mérito como tal. Mas penso que ele é digno de ao menos um caneco, mesmo que não seja o da FIFA, o que o premie pela coragem e pela decência. Vai ser engraçado se formos campeões e no domingo da final a equipe do Fantástico tiver que se embolar com o resto da imprensa se quiser uma declaração de alguém da seleção.

Escrevo antes de jogarem Argentina e México, mas depois de ter visto o xucrutis que a Alemanha enfiou na burocrática e insossa seleção da Inglaterra. Antes, já de certa forma me encantara a vitória do Uruguai em cima da correria da Coréia do Sul. Estamos vendo a volta, na África do Sul, de um Uruguai que um dia existiu, valente e talentoso, orgulhoso da camisa azul celeste que há mais de duas décadas vinha desbotando um pouco mais a cada Copa por causa da crise em que se enfronhou o futebol que há 60 anos fez o Maracanã chorar. Quanto à Alemanha, está parecendo que esse time aprendeu a jogar no lado de baixo da Linha do Equador.

Então, que os outros times façam o que fizeram Alemanha e Uruguai, para que nessa Copa mudemos definitivamente de assunto e passemos finalmente a falar de futebol e não do que acontece fora dos gramados.

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