O Brasil de Edmo Zarife

É impossível dissociar um jogo da Seleção Brasileira da vinheta que ecoa logo após um gol ser marcado. Foi na Copa de 78 que ouvimos pela primeira vez o Brasil!!!! seguindo o grito do narrador depois que a bola beija a rede adversária e faz a alegria nacional. Começou no futebol, mas derrubou os muros dos estádios e avisa dos triunfos brasileiros não apenas nos campos, mas também nas quadras, mares e piscinas. Ouve-se também em alguma reportagem que glorifique o país, assim como em quadros humorísticos que satirizem as mazelas nacionais. Enfim, o Brasiii! (e não Brasil-sil-sil-sil, como às vezes a vinheta é imitada de forma caricata) há muitos anos é uma espécie de carimbo verde e amarelo, só que sonoro.

O dono da voz impostada, que com jeito de trovão na verdade grita sem gritar, foi uma pessoa bem menos famosa do que a vinheta. É provável que o número de pessoas que saibam de quem se trata seja nem menor que o talento da seleção do Dunga.

Trata-se de Edmo Zarife, um homem que foi não apenas a cara – ou a voz – da Rádio Globo do Rio de Janeiro, mas do próprio rádio carioca. Era do tamanho de sua voz. Quase não ria, mas era extremamente brincalhão. Quem com ele cruzasse nos corredores, ouviria um Ê, papai! Creditava-se a brincadeira a um cacoete de outro apresentador da Rádio Globo, Luiz de França. Mesmo que fosse mania do outro, virou bordão de Edmo Zarife. Já cedo se ouvia à saída dos estúdios o Ê, papai!,  e ainda à noite Zarife estava por lá, um exemplo de dedicação, de amor ao trabalho.

Como em muitos outros casos, Zarife não levou para a outra vida o reconhecimento material compatível com seu trabalho. Descontando a força da expressão, se houvesse recebido apenas um centavo por cada vez que Brasiiiil! foi ao ar na TV e no rádio, teria mais dinheiro que a família Marinho. Mas lembro-me dele saindo na escuridão da noite dentro de um fusquinha antigo, que assim como o reconhecimento também era incompatível, só que com seu tamanho, com as injustiças dos veículos de comunicação, do futebol e da vida.

Há erro de projeto na bola da Copa.

Quando vários jogadores começaram a reclamar da Jabulani, a Adidas, fabricante da pelota, explicou que a redonda havia sido concebida para facilitar a vida dos atacantes e privilegiar aquilo que realmente faz sentido no futebol: o gol, embora nem todos os técnicos enxerguem isso. O conceito “industrial-ofensivo” da esfera não está no peso, segundo a Adidas, mas na mistura do material utilizado na confecção.

A julgar pelos resultados dessa primeira rodada, deve ter havido erro de projeto na Jabulani. Ela, coitada, tem encontrado pouco sua alma gêmea, a rede.

Acho difícil que essa não vá ficar conhecida como a Copa do empate, do 1X0 quando muito. Para maior desânimo, nem se pode dizer que os placares magros são por causa de esquemas defensivos ou excesso de volantes. Pelo que vi até agora, constato algo pior, a escassez de talentos. Com exceção até agora da Alemanha e um pouco da Argentina e da Holanda, os times são ruins mesmo, sem criatividade, com atacantes que perderam ou nunca tiveram o faro do gol. Os cruzamentos estão passando na janela do 30º andar e as cabeçadas praticamente vão na direção oposta à meta. Quando se chuta, a simpática Jabulani ou toma a direção do goleiro ou vai parar lá no Egito.

Parece que há mesmo uma decadência no futebol mundial, uma extinção de craques dentro das quatro linhas. Há muita badalação em cima de alguns, que somem na mediocridade quando são apresentados à vida real de uma Copa do Mundo (Nessa primeira rodada, Messi foi o único dos bam-bam-bans que justificou o que dele se fala).

A cada quatro anos, os europeus se mostram mais duros do que eram. Os sul americanos resolveram mesmo que querem jogar feito europeus, abrindo mão do espetáculo. E os africanos, de quem nos anos 90 se esperou a oxigenação da arte da bola, parece que também perderam o interesse por essa coisa de formarem seleções que de fato enfrentem as tradicionais de igual para igual. Há os asiáticos. Bem, estes são ótimos velocistas.

A continuar assim, a FIFA terá que abolir o impedimento para 2014 e pensar seriamente em extinguir os goleiros, porque não vai dar mais para culpar a Jabulani. Aliás, a Copa sendo no Brasil, a bola poderia se chamar Jurema. O que acham?

Essa seleção do Dunga é um mistério.

Todos os 23 convocados da Seleção da Inglaterra jogam no futebol inglês, nenhum em outro país. Esse é o reflexo de um futebol rico financeiramente, cujos clubes conseguem segurar seus melhores jogadores.

Dessa forma, a grande diferença entre Brasil e Inglaterra no que diz respeito à relação da torcida com o time, é que os ingleses conhecem os jogadores que estão defendendo as cores da bandeira deles na África do Sul. Conhecem porque eles estão lá, em campo, a cada rodada do campeonato inglês, bem junto aos torcedores, diariamente nas seções de esporte dos jornais.

Era assim no Brasil até os anos 80. Vestidos com a amarelinha, estavam jogadores do meu time e dos times rivais aos quais eu assistia aos domingos no Maracanã. Portanto, eu sabia o que esperar de um time formado por Zico, Júnior, Leandro e meus tradicionais adversários Roberto Dinamite, Rivelino, Reinado, Cerezzo, Sócrates, etc.

Nem de longe isso ocorre isso com a estrangeira seleção do Dunga, essa desconhecida pela qual nosso patriotismo quadrienal se vê obrigado a torcer na Copa da África. Não é desconhecida apenas porque muitos treinos são secretos, ou porque nesse ordeiro esquema de coletiva os dois jogadores que são escalados pouco dizem de aproveitável. É desconhecida porque o elenco praticamente todo joga nos mais diversos cantos do planeta, e quem não acompanha os campeonatos europeus não sabe exatamente de quem se trata aqueles rapazinhos suando a camisa mais temida do futebol mundial. Fora Kaká, Júlio César, Lúcio e Robinho, você se arriscaria a escrever duas linhas sobre o Daniel Alves, o Ramirez ou o Josué? É tarefa inglória até para quem acompanha o futebol com proximidade razoável.

O desconhecimento rouba parte da identificação da torcida com o time, consequentemente esfria o ímpeto dessa mesma torcida na hora dos jogos. Parece um pouco a história do sujeito que de repente fica sabendo que tem um irmão, é apresentado a esse irmão e alguém diz que ele precisa amar o outro como fazemos com os irmãos. Mas para mim ele não é meu irmão! Argumentaria o sujeito. Pois é, essa também não é a minha seleção, mesmo que esteja com a camisa do meu país.

Por tanto desconhecimento e mistério, é difícil dizer o que podemos esperar dessa seleção do Dunga. Das seleções de outras épocas, podíamos esperar espetáculo ou catástrofe. Algumas vezes a expectativa se confirmou. Em outras, o resultado foi o oposto do que se previa. No caso dessa seleção, ela pode ser desclassificada na primeira fase por causa do talento, que nem mesmo o mistério consegue ocultar a ausência. Ou até ser campeã, a se concretizar a impressão que temos de que é um grupo quase que militarmente treinado, pactuado internamente a trazer o caneco pela sexta vez para esses mares do sul.

Hoje o enigma começa a ser revelado, o que já aconteceu com Alemanha, Argentina e até mesmo Holanda.

Felicidade.

Eu inventei um trem pra vir pra cá.

Eu venho de um lugar

onde os vizinhos dão bom dia

as mães vigiam os filhos nas calçadas

entremeando conversas no portão de casa

e os chamam para dentro

quando a noite cai.

Eu sou de um lugar

onde ninguém fala

inglês francês alemão

e a maioria só conhece

aeroportos e monumentos

das novelas da noite

dos filmes dublados.

Cabeças pequenas

corações grandes e férteis

sem pretender tanto

sem se afligir quase.

Eu inventei um trem pra vir pra cá.

Um trem que sai de longe,

de onde a cidade acaba.

Vim trazendo o assobio triste

dos em paz com a vida

e essa feia e verdadeira

flor de subúrbio

pra te entregar.

1994.

Um livro aclamado e cercado de polêmica.

Por Alexandre Pilati*

 

2666 é o nome do romance póstumo do escritor chileno Roberto Bolaño, que acaba de ser lançado no Brasil pela editora Companhia das Letras, depois de ter sido aclamado por críticos literários de várias partes do mundo. Basta dizer que o New York Times o considerou o livro mais importante do ano, quando apareceu em inglês, logo após a morte de Bolaño, ocorrida em 2003. Com mais de mil páginas, 2666, é um romance caótico, que, na verdade, reúne cinco narrativas bem diferentes entre si e que deveriam ser lançados, segundo o testamento deixado pelo seu autor, em cinco volumes diferentes, com espaço mínimo de um ano entre cada um deles. O objetivo de Bolaño, ao fazer essa recomendação aos seus editores, era garantir o sustento dos seus filhos, que ainda eram crianças na época em que ele morreu em decorrência de problemas no fígado com apenas 50 anos de idade. Os responsáveis pela edição de 2666, Jorge Herralde e Ignacio Echevarría, argumentaram que o livro fazia sentido apenas com as histórias reunidas em um só volume, embora não haja nenhum elemento narrativo ou de estilo que ligue cada uma das partes às outras. Em nome da qualidade literária, então, o livro ganhou o mundo como um calhamaço de ritmo alucinante.

Cinco narrativas em uma

As mais de mil páginas de 2666 revelam um autor com pleno domínio da arte de contar histórias e retirar delas o máximo de expressividade capaz de deixar o leitor inquieto e absorto. A primeira história narra a saga de quatro críticos europeus em busca de Benno von Archimboldi, um escritor alemão recluso do qual não se conhecem fotos. Na segunda, há a agonia de um professor mexicano às voltas com seus problemas existenciais. O terceiro romance conta a história de um jornalista esportivo que acaba se envolvendo com crimes cometidos contra mulheres da cidade de Santa Teresa, no México. Na quarta e mais extensa das partes do livro, os crimes de Santa Teresa são narrados com a frieza e o distanciamento próprios da linguagem jornalística das páginas policiais. E finalmente, na quinta história o leitor é conduzido de volta à Segunda Guerra, tornando-se testemunha do passado misterioso de Benno von Archimboldi. De alguma forma, todas essas narrativas têm entre si uma certa ligação com as perguntas: onde está Archimboldi e quem matou as mulheres de Santa Tereza. As respostas ficam no ar, mas isso não quer dizer que o romance não deixe a sua mensagem sobre o sentido ou a falta de sentido da vida e da própria arte literária.

O maior autor latinoamaericano de sua geração

 

A crítica norteamericana Susan Sontag disse certa vez que Roberto Bolaño era “o mais influente e admirado romancista de língua espanhola da sua geração”. De fato, se não quisermos exagerar na avaliação, Bolaño é, pelo menos, um dos escritores que com mais coragem enfrentou os dilemas históricos da América Latina na segunda metade do século XX. Na sua relativamente curta carreira literária, ele deixou isso bem claro. No Brasil, o leitor encontra diversos livros de Bolaño publicados, além de 2666. E para quem não quiser enfrentar de cara as mais de mil páginas do livro final, pode começar a conhecer Bolaño por dois de seus mais lidos romances. Um deles é Os Detetives selvagens, que é uma narrativa policial em que dois poetas marginais buscam por uma poeta vanguardista misteriosamente desaparecida. O outro é Noturno do Chile, que é um denso monólogo, do qual protagonista é o padre Sebastián Lacroix, que repassa de uma forma delirante a sua vida de poeta e crítico literário.

Quem quiser conhecer um pouco mais sobre livro 2666, pode acessar www.alexandrepilati.com para encontrar alguns trechos do romance que estão disponibilizados no blog.

*Alexandre Pilati participa comigo às segundas-feiras do bate-papo literário na BandNews FM 90,5 Brasília às 16h51, com reprise na terça às 11h31.

O Patriota

Quando a filha fez três anos, matriculou-a logo no curso de inglês. Uma vez um consultor de RH disse na rádio de notícias que, hoje em dia, quanto mais cedo o ser humano se preparar para o mercado, melhor. E o inglês é a chave-mestra desse proceso. Aliás, por ele, a filha teria sido alfabetizada em inglês.

Tem uma pequena empresa de informática, a Star Ship, e o nome reluz em letras vermelhas e azuis com o fundo branco do letreiro. Ele sempre starta e stopa os processos, não deixa o cliente sem feed-back.

Adora essa época de festas juninas, todo mundo vestido de cowboy, as mulheres com longas botas de camurça e saias compridas, lá nas canelas, que elas giram ao som do country. Todos os anos, na festa junina da escola da filha, ele é o xerife, já virou tradição. Melhor mesmo só o halloween, ele, a mulher e a filha se vestem de vampiro e de bruxas. Os vizinhos também, e todos saem pelo Beverly, o condomínio em que moram. O que querem mesmo é passar o halloween em Nova York. Já foram duas vezes a Miami, fizeram ótimas compras, agora querem variar. Europa? Não, aqueles museus, muita estátua, tudo muito antigo, eles não têm vontade. Amazônia , nordeste? Talvez um dia, não sabem. Ele não gosta de índio; ela, de miséria.

Patriota? Sim, ele diz que é. Não vê agora mesmo com a Copa? Comprou a camisa oficial da seleção e amarrou a bandeira no capô do carro. Faz questão de passar assim quando o vizinho argentino está no jardim, tudo para mostrar que o Brasil é um país bem melhor que o dele, que só ganhou duas vezes.

Torcer contra. Às vezes dá vontade.

Dizem que na Copa de 70 o pessoal que peitava a ditadura torceu contra a seleção para que o caneco não servisse à propaganda do regime da tirania. Sobre isso, há uma cena que é uma das mais hilárias do cinema nacional. O excelente Caio Blat interpreta um integrante dos movimentos de esquerda em O ano em que meus pais saíram de férias. Em dado momento do filme, ele assiste a um jogo do Brasil bancando sua ideoologia no meio de um grupo ensandecido pela seleção. Mas toda convicção política vai por água abaixo quando Pelé guarda um nas redes dos gringos, e o “comuna” vai à loucura com os bailes de bola daquele time.

Hoje em dia não há qualquer razão política para se torcer contra o Brasil numa Copa do Mundo. É grande balela dizer que o evento interfere nas eleições. Ora, nossa democracia pode não ter ainda a maturidade das européias, mas já não é nem um bebê que se deixe seduzir pela paixão de um evento que ocorre quatro meses antes. Se ainda não aprendemos a votar, certamente não é por causa da Copa do Mundo.

Confesso que a seleção não me empolga tanto mais. Fui testemunha da tragédia do Sarriá, em 82, quando a Itália nos despachou e fez daquele jogo o maracanazzo de minha geração, essa mesma nascida quando os milicos botavam pra quebrar. Doze anos depois me vinguei da mesma Itália. Tudo bem que foi nos pênaltis, mas os filhos da revolução jamais haviam visto o Brasil ser campeão do mundo. Então, me desculpem, mas a Copa do time do Parreira, que tinha o Dunga de chicote em campo pondo todo mundo pra jogar e show da dupla Bebeto-Romário, valeu demais para nós. Em 2002, consolidei minha carreira de torcedor canarinho. Não sei se me aposentei desse papel, mas me confesso satisfeito com o que já vi do nosso escrete.

Também por isso, mas muito pela seleção insossa que está na África do Sul, e mais ainda pela histeria sem qualquer senso do ridículo de alguns (ou será apenas um?) narradores da TV Brasileira, me dá uma vontade doida de torcer contra, de ver tudo se acabar ainda na primeira fase, levando um deprimente chocolate com gosto de bacalhoada à Cristiano Ronaldo.

Os gritos desprovidos de qualquer racionalidade no primeiro gol do Brasil contra o inexistente time da Tanzânia nos dão a dimensão do que nossos ouvidos precisarão aturar se o adversário for uma seleção de porte, algum de nossos adversários tradicionais.

A cada Copa, a cada campeonato de Fórmula 1, mais se acura a receita de transformar qualquer evento em megaespetáculo, qualquer time em aglomerado de astros e, mais do que tudo, qualquer um que seja mais ou menos em ser humano com poderes especiais. Foi assim com Ronaldo na Copa de 98, com Daiane dos Santos nas Olimpíadas de 2004, foi assim a vida toda com Ayrton Senna, alçado do posto de piloto excepcional à categoria de divindade, de ser humano perfeito.

É claro que na hora H não vou torcer contra, mas para que a vontade não ameace, será necessário assistir aos jogos em outro canal (Na Band, não há tantos exageros, mas sim o pecado do bairrismo), ou ainda melhor: deixar a TV sem som e ficar ouvindo o rádio (A BandNews FM promete belas transmissões e a CBN também cumpre bem o seu papel). Até porque, se a seleção voltar com o rabo entre as pernas, teremos que ouvir o discurso do eu sabia que isso iria acontecer, bem típico dos que fazem a comunicação servir sempre ao interesse da ocasião.

Dois pesos.

Nesta quarta-feira entram em vigor as novas regras para se transportar crianças no banco de trás dos carros. Na verdade, a legislação que já existe ficará mais rigorosa. Dependendo da idade, o seu tesouro terá que ir naquela cadeirinha bojuda, acolchoada e com cinto de segurança que passa entre as perninhas dos pequenos passageiros. Os menores continuarão viajando naquela espécie de cestinha em que a criança vai com a cabeça no sentido contrário à direção do carro, e que atende pelo simpático nome de bebê-conforto. Aliás, experimente carregar aquilo pelo shopping ou pelo parque com a criança dentro. Certamente você irá rebatizar o objeto e passar a chamá-lo de papai-desconforto.

As crianças maiores serão, a partir de agora, obrigadas a estar no assento que as deixa mais altas, para que possam usar o cinto de segurança do próprio veículo. Esse assento serve especialmente para as que viajam no meio do banco traseiro, onde o cinto de apenas duas pontas não dá firmeza nem à cadeirinha acolchoada nem ao bebê-conforto. A obrigatoriedade desse assento é a grande novidade de toda essa história, e sobre ela recairá o olho atento da fiscalização e a fome insaciável do estado em punir não necessariamente para educar e preservar vidas, mas essencialmente para arrecadar com o dinheiro das infrações.

Não desmereço a necessidade de segurança dos nossos filhos, mas confesso que sempre desconfio quando, de uma hora para a outra, algum equipamento passar a ser obrigatório pela lei. Minha mente fértil de filho de um país dado a negociatas me cutuca desconfiada de que alguém mudou a lei para que a indústria do tal produto aumente as vendas. Isso, é claro, que em troca de uma boa comissão para o autor da mudança na lei, especialmente se estivermos em época de campanha política, esse monstro que se alimenta de dinheiro de origens pouco conhecidas. Sem falar que o tal do assento está em falta do mercado, não se acha em lugar nenhum. Corre a boca miúda que a indústria está segurando o estoque para vender mais caro quando a fiscalização começar para valer. Minha mente fértil, essa criatura maldosa e descrente do ser humano, me cutuca de novo: tá vendo? Eu não tô dizendo?

Mas há um aspecto maior, e esse realmente concreto, quando o assunto é alteração de lei que torna obrigatório um equipamento ou uma conduta por parte da sociedade. Se o alvo da mudança é o cidadão comum, o contribuinte frágil e acuado pelas decisões do estado, a fiscalização começa inclemente, sem discussão, sem tempo a perder com alegações ou defesa em caso de descumprimento da lei. É preto no branco: se não está andando na linha, fazendo o que o governo determina, o pau quebra, o sujeito é enquadrado e leva logo multa para regularizar a situação. Contra nós o estado é forte, atuante, duro. Mas digamos que a alteração na lei determinasse a obrigatoriedade, por exemplo, do cinto de segurança de três pontas no meio do banco traseiro, item que deveria equipar há muito tempo todos os carros brasileiros. É pouco provável que houvesse uma lei obrigando as montadoras a defender a segurança dos consumidores. E se houvesse, o prazo para a entrada em vigor seria como os fixados para acordos internacionais na área ambiental, tão longos que permitem antes a morte do planeta. E, é claro, a tal fome fiscalizadora do estado seria substituída por uma falta de apetite anoréxica.

As mesmas noites felizes.

Quando a noite de sábado caía por completo, e a escuridão tornava-se finalmente irreversível, ele punha seus CDs de jazz ou blues e começava a arrumar toalha, pratos e talheres para o lanche. Devido à ocasião do dia, a mesa ganhava um pouco mais em variedade. No lugar do pão integral e do queijo branco dos dias úteis, havia salame ou presunto e muçarela, juntados na baguete com gergelim da padaria de sempre.

– Quando eu era pequeno, a gente chamava de bengala esse pão magro e comprido. – e ele puxava pela infância nos subúrbios do Rio, repetindo a cantilhena da história do pão. E insistia com a mulher, mais uma vez. –  Agora é essa frecura de se chamar de baguete. E ele torcia o nariz, espezinhado pelos modismos da modernidade.

Abria também o vinho italiano, o mesmo. Sacava a rolha e esperava que o cheiro viesse ao encontro das narinas. Imaginava-o tomando a sala, escapando pela janela e passando a ser mais um dos perfumes do jardim do prédio. Colocava a taça cheia entre os olhos e o lustre que pendia acima da pequena estante de livros. Talvez mais do que o sabor e o cheiro do vinho, gostava de ver atravessando a taça bem desenhada e ordinária de supermercado a luz fraca que era seu conforto e seu remanso da semana sempre difícil.

– Meu sangue tem a cor desse vinho contra a luz, italianos os dois… e ele repetia, já tendo deixado para trás o porto do estado normal, mas ainda bem distante da outra margem, a da embriaguez. Navegava já nas águas da sonolência, e invariavelmente nelas naufragava embalado por Miles Davis ou John Lee Hooker, quando não este, aquele.

Aos domingos, o costume era outro e, em igual tempo, o mesmo. A mesma pizzaria com seus bancos extensos de madeira.

– Melhor do que essa gente em casa morrendo de depressão no sofá, de frente para o programa semanal de variedades. E assim justifcava o que, divertido, reconhecia como falta de originalidade.

Mandava que descesse uma taça de vinho chileno, e sempre lamentava que os italianos só fossem servidos em garrafas.   

– Garrafa é cara em restaurante. Não pago. – e repetia o que dissera uma semana antes, na retrasada, e de tanto dizer, já se tinha a impressão de que nascera com opinião formada sobre o assunto. E sustentando, ainda por cima.

Quando a margherita chegava e seus tomates e majericão inebriavam o ar, o garçom quase nem esperava, pois já era certo o pedido.

– Outra. – e apontava a taça.

Depois que comia, e novamente no mar sonolento do vinho, pegava sorrindo a mão da mulher, e após três suaves pancadinhas, observava.

– Que marido mais sem criatividade você foi arrumar, hein?

Pedia a conta e olhando feliz a noite, a caminho do estacionamento, dava por encerrado o fim-de-semana, torcendo para que os dias passassem rápido e que logo fosse outra vez sábado.

Novo romance de João Almino focaliza a construção de Brasília

Por Alexandre Pilati.*

 

Foi lançado no último dia 14 de maio o mais novo livro do romancista brasileiro João Almino intitulado Cidade livre. Trata-se de uma interessante narrativa sobre os anos de fundação de Brasília que mostra a vida dos operários que construíram a capital entre 1956 e 1960.

Com este título, João Almino chega ao quinto livro da sua série de romances sobre Brasília. Os anteriores, todos muito bem recebidos e premiados, são: Samba-enredo, As cinco estações do amor, O livro das emoções e Ideias para onde passar o fim do mundo. A chegada de Cidade livre consolida o nome de João Almino, ainda que meio a contragosto, como o grande romancista de Brasília.

Uma narrativa sobre sonhos e desencantos

Cidade livre é um romance que já nasce com um respaldo crítico e acadêmico poucas vezes visto na literatura contemporânea. Dois dos maiores estudiosos da literatura brasileira em atividade apresentam, em textos críticos, o romance. O prefácio é de Benjamim Abdala Jr. e o texto de apresentação é da Prof. Walnice Nogueira Galvão.

A história oficial de criação de Brasília é contada por um narrador não oficial, em Cidade livre. Ele é um médico psiquiatra que abandona a profissão para relatar aquilo que vê. Mais tarde, essa narrativa é retomada por seu filho jornalista por meio de um blog de raros leitores. Essa talvez seja a grande inovação formal do livro, que acaba imitando o formato de um blog, incluindo até mesmo os comentários dos poucos leitores. Um desses poucos leitores que deixam recados no blog tem, inclusive, o nome João Almino.

A partir desse verdadeiro mosaico ficcional, diversas histórias vão se cruzando. No cenário do gigante canteiro de obras, os personagens do romance misturam-se a figuras históricas, como Juscelino Kubistchek e Bernardo Sayão, respectivamente idealizador e empreendedor da capital. Além desses, aparecem também visitantes ilustres de Brasília, tais como Aldous Huxley, Elizabeth Bishop e Fidel Castro. As aparições dessas personagens vão se costurando à pluralidade social da chamada farândola social que ajudou a pôr em prática o sonho de uma cidade criada a partir do nada. São candagos, empreiteiros, aproveitadores de negociatas, idealistas, políticos, místicos de seitas salvacionistas entre outros.

São eles que habitarão a “cidade livre” do título, que, como sabemos, foi o primeiro nome do atual Núcleo Bandeirante, e que estava fadada ao desaparecimento quando fossem terminadas as obras de Brasília. A cidade não desapareceu e as suas histórias permaeceram. O título do romance, assim, acaba sendo uma metáfora da mistura de sonho realizado e utopia ainda não alcançada que estava na cabeça de muita gente que veio construir a cidade na segunda metade dos anos 50.

Um autor consagrado

João Almino é um escritor consagrado. Já venceu diversos prêmios importantes com seus romances sobre Brasília, entre eles o Jabuti e o Prêmio Casa de Las Américas. Nascido em Mossoró, em 1950, Almino é escritor e diplomata. Além disso, ele tem publicado diversos textos sobre história, filosofia política, bem como ensaios literários sobre diversos autores. João Almino também é professor e deu aula na UNAM (Universidade Autônoma do México), na UnB e nas universidades de Berkeley e Stanford. Com toda essa experiência, ele se diz um apaixonado por Brasília, e toma-a como um dos seus principais objetos ficcionais. Para ele, “Brasília representa o moderno sobre o qual já se pode olhar como se fosse o passado”.

João Almino mantém uma página na internet com muitas informações sobre a sua obra e diversos textos de sua autoria. O endereço é www.joaoalmino.com.

Alexandre Pilati participa comigo na BandNews FM do bate-papo literário. Às 2ªs vai ao ar às 16h51. Nas terças, você confere às 11h31. BandNews FM 90,5 – Brasília.

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