Lobo e loba embebedados, escorados no carro, de vez em quando um no outro, pois nos conhecemos há tanto tempo que isso nos é permitido sem pedir permissão. O bar faz as primeiras ameaças de fechar. Três e alguma coisa da manhã. Daríamos tudo para que ainda não houvesse passado das nove do dia que já acabou, para que a noite estivesse ainda naquela eufórica promessa do começo.
Coloco uma fita, um esporro do cão. Tem gente que olha, tem gente que gosta, comenta com outros “Ih! Se lembra? Isso é velho!”. Eu quero cantar, esqueço a letra, eu tento dizer “É do Kiss, Rock’n Roll All Nite. Eles vieram ao Rio, eu vi, foi em 83, você lembra?” Do Kiss, é claro, do show, talvez, e até mesmo do perdido ano no calendário você poderá lembrar, para sempre, inclusive. Mas amanhã tenho lá homéricas dúvidas se, nessa memória encharcada de álcool e devaneios, haverá muita coisa que reste dessa noite. Encostamos a terceira tulipa de cada um junto ao pneu. Nos olhamos fundo, nos olhos, não precisa dizer mais nada. Vamos roubar as tulipas.
Mas isso fica para depois. Antes, passemos à vida alheia, que ninguém é santo. Fulano de tal, aquele falso, caso daquela vaca que roubou o marido da amiga, que por sinal, noite passada, beijou a boca da mulher que um dia deu prum terceiro que todo mundo só foi conhecer ontem, na festa da sicrana, que coitada, de tão boba nem merece ser sacaneada. Tira ela disso. O veneno nos escorre das risadas cúmplices, mais altas que guitarra do Judas Priest. Aliás, parados na calçada, na porta do bar, em atitude suspeita, traficamos risos frouxos, soltos, largos, demasiados, e que se dane quem olha da mesa querendo ir embora, incomodado. Quem pede a conta a essa hora, no limiar de tudo, tem mais é que ir pra casa catar traça no travesseiro. Há pouco, eu disse que ninguém era santo. Apaga. Somos santos debochados no altar dessa calçada e a indulgência da nossa euforia há de redimir as almas viciadas em tédio, inferiores a nós.
Desvairado um carro dobra a esquina. Os pneus cantam no asfalto, mas não nos abalamos. É apenas mais um dos sons que embalam os lobos e nossos comparsas morcegos. São os nossos sons, estamos acostumados, estamos em casa. Por alguns segundos, os faróis alimentam seu rosto de luz e afugentam a penumbra. Nada demais. Estas são as nossas luzes. O carro dobra a outra esquina e vai cortar a cidade, essa imensa solidão.
Nossas línguas estão grudadas no céu da boca, das bocas do lobo e da loba embriagados. São os sinais de que não estamos bem, ou seja, estamos ótimos. O ato de falar carece de esforço e pecamos pela falta de concisão, pela ausência de lógica. Primamos pela sinceridade, como se, em vez do diálogo, conversássemos por meio de um blues pegajoso, daqueles bem rascantes, anos 30, banjo, gaita e conhaque de alcatrão. Ensaio três acordes básicos para lhe contar, pela trigésima segunda vez em duas semanas, a história do meu coração em caquinhos de bijuteria barata. E o que é pior: você quer ouvir tudo de novo e chega mais perto, se interessa pelos mesmos detalhes da saga do amor que perdi nas lonjuras dessa pátria amada, Brasil! Quando encerro minha ladainha de beata, você desfia armadilhas para a reconquista, esfaqueia meus brios, me desafia a tomar de volta a paixão que me fez errante no tempo e no destino, tenta me explicar truques que cativam mulheres. Só que há muito perdi o saco para amor de distâncias. Vou ser prático: farei com que ele se finja de morto, morto de uma doença que me mata e faço de conta que não tenho. E aí não lhe encho mais a sacolinha.
Querida amiga loba, tonta, tontinha, que se escora em mim, pior do que tudo que você já viu. Também sei de seu coração papel picado. Também sei que fizeram estrogonofe do seu sentimento valioso. Quebraram-lhe também, eu sei, em pedaços, e o que sobrou, recolocado, ainda cheira a cola DUREFLEX INSTANTÂNEA, prazo de validade não fornecido pelo fabricante. Eu sei que você escapa em beijos furtivos que preenchem as horas vagas, sem qualquer sedução que mereça a dignidade das cartas e da saudade. Eu sei dos homens pelos quais você não morre, nem de amor, nem de prazer, nem de nada. Eu sei daquele pelo qual você daria a vida.
Saideira!, já grita o garçom há uma hora. Só que agora não tem choro, não tem prorrogação, “Vão pra casa, que eu vou ver meu filho em Del Castilho!” e ele decreta o fim de nossa sobrevida nessas paragens sem qualquer resto de piedade. Baita frieza a da sociedade de hoje. Agora somos só nós dois, um só tem o outro, nossos amores não, outros amigos longe, nossos flertes por aí, eu lhe resto, você me resta e de sacanagem roubamos as tulipas.
Mas nos recusamos a voltar. É preciso resistir. A noite ainda é longa como os seus cabelos de sereno. É preciso resistir, até a última estrela. É preciso resistir, até o falecer da lua. É preciso resistir, porque a casa é fria e a cama vazia feito o mar dos náufragos. E, além do mais, somos descolados, sarados, 15 anos de gíria nos ensinaram a não dar mole para a caretice.
Nos abrigamos aqui mesmo nessa praça, nessa tenda dos milagres, essa velha kombi com fogão e freezer dentro, economia superinformal e descontraída no país da globalização. Limão, cachaça, churrasco de gato e uma cerveja qualquer, pois os lobos permanecem com sede. Um cobrador de ônibus mija no poste, um taxista arrota do lado e até o garçom, aquele mesmo que ia ver o filho em Del Castilho, pede uma e põe na conta. Todos notam você, visão de paz no meio do caos, e a devoram com os olhos, com os pensamentos mais imundos que a frigideira da kombi. Era o que me faltava, ter que tomar uma atitude. Me levanto. Vou fazer xixi no poste.
Um resto de néon, outro de nossos brilhos, vaza das sombras e lhe cai maravilhosamente bem, mas tão bem, amiga loba, que esqueço da amiga. Desfocado e sonolento, observo a loba, melhor que as gatas, mais útil que as cachorras.
A mais distante das estrelas começa a embranquecer. Cabeças empapuçadas sentem a rotação do planeta. As trevas cedem, lá vem a luz, está chegando o nosso aviso, vamos fugir antes que o sol nos pegue em flagrante. Tentaremos em outra noite a felicidade, agora não há mais tempo. Voltaremos pelos mesmos caminhos de ontem, de anteontem, do ano passado, de anos atrás, até que não precisemos nunca mais voltar, porque não haverá necessidade de estarmos aqui. Por hora go back. O cheiro de urina é insuportável. Um gato angorá assa na brasa da churrasqueira.
O cigarro queima na minha mão do lado de fora e eu dirijo mais com o instinto do que com a certeza. Terceira, quarta, quinta, na entrada da curva procuro a tangência, terceira direto, a traseira empina, o pneu grita, acelero, o motor responde mal educado, o ronco do motor é uma canção antiga que me embala. Quarta, quinta em menos de cinco segundos. Outras curvas se contorcem no retrovisor, bairros ficam para trás, recendendo a jasmim, pão, perfumes do dia. O vento desvairado pela janela faz rebelião nos seus cabelos. Você ressuscita do sono, acende nos olhos um brilho esmaecido, discursa sobre a aurora, sobre os pássaros, a vida é linda, é o que você diz, eu vou amar de novo e demais, você promete, diminui a velocidade, você pede, sente o cheiro da manhã, você me avisa, a gente é muito feliz, entendeu? A gente é feliz pacas e nem se toca, você me garante. Pena que, quando você acordar, não poderá lembrar desse comício relâmpago sobre o sentido simples das coisas. Pena que você nunca vai saber das suas palavras mais lindas, loba querida. Que bom que eu vou guardá-las para sempre.
Cai o pano. O pisca alerta reluz na lataria de um outro carro. A vizinha abre a janela e confere a hora em que você chegou. Como será a despedida dos lobos? Tchau, depois eu ligo, é isso? Não, vem cá, não é assim. Os lobos são mais carinhosos, inflamados. Faces deslizam uma na outra, ponta da língua no pé da orelha, você respira nervosa e cada vez mais perto, já perdi minhas mãos na ventania dos seus cabelos. Os amigos não se despedem assim. Claro que não. Só os lobos são capazes de arder, quando até mesmo as estrelas já estão apagadas. As línguas se tocam, são espadas que não se agridem, mas se permeiam. Um freio de mão ainda nos separa e derrubo a última barreira. Me absorva, amiga loba! O carro tá descendo! Mas não escuto enrolado em seu pescoço. O carro tá descendo, vai bater no tempra do vizinho. Nada me importa, é ótimo estar aqui. Eu também acho, mas engrena esse carro. Estico a perna, piso a embreagem, engato a marcha, tudo sem desgrudar da minha a sua boca, sem perder um movimento sequer da sua língua. Vamos fazer desses minutos os mais longos, é o que peço. Olha, eu nunca pensei, nós dois, há tanto tempo, nunca rolou, e você tenta uma explicação, fingindo um falso embaraço. Pois é, mas eu achava que ia, algum dia, os dois longe da matilha. É estranho, diferente, mas é bom. Amigo e amiga às vezes é normal, ainda mais sendo lobos. Não explica, não aceito teses, só beijos. Eu avisei que a essa altura só nós nos restávamos. Eu não te amo, mas me sinto em casa. Então vem, nós merecemos esse abrigo provisório de colchão macio e água quente.
É estranho, diferente, não dá pra entender direito, você repete já do lado de fora, com a cara na minha janela, o sol nascido, uma hora depois. Não dá pra entender direito, você insiste doida feito pisca alerta, disco velho com defeito. É como arte, eu argumento. Não é para entender, é para gostar. Valeu, Monet! Tô te devendo.
Você vira as costas, vai embora, mas volta numa fração de segundos com as mãos estendidas. Oba!, arregalo os olhos, vai acontecer o quê agora? As tulipas, eu quero a minha parte no roubo. Toma, pega com cuidado, você tá tonta, não se machuque, a vida é linda, eu e você vamos amar de novo e demais. O último beijo, teu lábio molhado, a claridade inteira em cima de nós. Os lobos se despedem assim. Bom dia, durma bem.