Três noites de lua cheia

O comissário parou ao lado de nossas poltronas e disse a meu pai que a cidade que sobrevoávamos naquele momento era Ihéus, de acordo com o comandante. Meu pai pegou-me e também minha irmã, uma de cada vez, e nos pôs na janelinha do avião, narizes achatados no vidro. Vi que as luzes da cidade eram pequenos pontos dourados espalhados no breu da madrugada, como se sobre veludo negro houvessem derramado pedrinhas de ouro. Mas do que me lembro mesmo é da lua no final do crescente, ainda cavada na borda, boiando no canto da janela. Ela prateava, um pouco abaixo do avião e bem acima de Ilhéus, nuvens acolchoadas que guardavam a paz de nosso vôo. “São os tapetes dos pés de Deus”, disse meu pai. “Neles, teus amigos anjos brincam de rolar”, completou e apagou a luz de leitura depois de correr os dedos nos meus e nos cabelos de minha irmã. Dormimos até o pouso em João Pessoa.

            Na noite daquele mesmo dia, fomos para a varanda e ali afoguei meus olhos no mar e no céu, que àquela hora formavam uma única escuridão. Tranquilas, no fundo dela, luzes de barcos de pesca representavam estrelas caídas. “Olhem!”, e meu pai chamou nossa atenção e também de minha mãe, que no quarto esticava lençóis. Sua voz entusiasmada agitou ainda mais o vento que vinha da praia e da eternidade. Era a lua o motivo da euforia. Agora, inteiramente redonda, ela deixava o fundo do oceano bem naquele ponto onde continua além de nossas vistas esse imenso mar do nordeste, que não cabe no mundo. Abriu estrada na água e vinha amarela-prateada até a areia molhada.

            Deitamos na cadeira reclinada. Meu pai colocou-me sobre seu peito, que arfava no compasso das ondas. Ele tomava chá de carqueja e alegre dizia à minha mãe que se fechasse os olhos e recuasse nos séculos a imaginação, ouviria tiros de canhão expulsando holandeses ali perto, no Recife. Seu riso foi morrendo na escuridão do vento e logo ele apontou o dedo para o alto, para imensas nuvens que chegavam engolindo e devolvendo a lua outra vez ao céu. Elas passavam em silêncio, dando a impressão de extensas tropas cansadas, mas vitoriosas e em paz. Porém, pouco antes de ser vencida pelo sono, eu já pensava naquelas formas como gigantes que nos quisessem abraçar com amor.

            Na noite seguinte e na outra, cumpri um efêmero ritual. Ficava na varanda olhando os barcos e esperando a lua, as nuvens, meu pai. Ele deitava e me punha a navegar no barco do seu peito. Minha mãe vinha com a xícara fumegante e nunca em minha memória o mar deixou de saber a carqueja. Em seguida era a vez da lua. “Oba! Estão chegando as nuvens”, e meu pai festejava quando finalmente elas surgiam, do mesmo modo que ainda me aparecem hoje trazendo consolo nas noites escuras de medo e aflição.

Voando pela Noite (até de manhã) e Eu nunca fecharei a porta da geladeira com o pé em Brasília estão no meu site 2

Quando vim morar em Brasília, quase 12 anos atrás, o computador foi a solução para segurar a barra de ter me visto, de uma hora para outra, pego pelo colarinho e jogado no meio do Planalto Central sem conhecer nada nem ninguém. A cidade me foi uma imensa dor no início, feita de céu azul, avenidas imensas e quarto de hotel. Uma dor solitária, que hora mastigava, hora era mastigada pelas saudades do meu mundo.

Nos primeiros dias, pressenti que a situação não oferecia outra alternativa para aplacar a dor de minhas tantas ausências, o vazio de tantas distâncias. Sem escapatória, decidi transformar aquele quase exílio em experiência literária. Aluguei em micro, me enfiei no hotel e disso nasceu um dos mais intensos processos que vivi como escritor.

Eu nunca fecharei a porta da geladeira com o pé em Brasília não tinha esse título. Chamava-se Essa solidão, Brasília. Mas como aconteceu comigo em outros contos ( e até em livros), uma frase pinçada do meio do texto acaba batizando a obra, porque, em um estalo, a cabeça nos convence que aquela frase resume o carretel inteiro da história.

O conto, que é chamado de novela por alguns, é uma história de forasteiro, sobre como se sentem os forasteiros em Brasília, escrita para forasteiros, mas também para os brasilenses, para que saibam do impacto que a cidade, diferente de tudo que já vimos, causa em quem no estalar dos dedos se vê tendo que decorar ( e entender ) endereços sem nomes, precisando chegar no local indicado por um código com letras e números.

O título é um rápido tratado sobre a intimidade, partindo do princípio de que o ato preguiçoso e corriqueiro de bater a porta da geladeira com o pé decorre do grau de estreiteza que possuímos com pessoas e lugares.

É dos meus livros o mais autobiográfico, mesmo não sendo inteiramente isso. Relatei parte da experiência própria, mas a ela anexei histórias que ouvi, irmanadas à minha pela solidão e pela saudade.

Para que a narrativa não virasse um diário enfadonho, fugi da estrutura clássica, calcada na cronologia, entre outros elementos. As situações não dão continuidade umas às outras necessariamente, mas estão amarradas em um fio condutor que traz a reboque também saltos no tempo e nos próprios lugares, e passagens rápidas de bastão de um personagem para outro. Em tudo, procurei dar agilidade ao texto, para que a monotonia de uma vida de hotel-trabalho-rua oferecesse algum interesse ao leitor.

Eu nunca fecharei a porta da geladeira com o pé em Brasília foi publicado em 2004 pela editora LGE. O livro traz ainda outro conto, Dóceis Beatniks, que mantém a mesma estrutura narrativa.

Voando pela Noite (até de manhã) e Eu nunca fecharei a porta da geladeira com o pé em Brasília estão no meu site.

Demorou um pouco, mas finalmente já é possível baixar meu primeiro e terceiro livros em meu site, cujo acesso pode ser feito na página desse blog.

Voando pela noite (até de manhã) foi publicado em 1996 pela mesma 7Letras que lançou A solidão do livro emprestado (2003) e A liberdade é amarela e conversível (2009). Na época, a editora ainda se chamava Sette Letras, e o Jorge Viveiros de Castro decidiu bancar a estréia de um contista de 28 anos, sem qualquer penetração no meio literário, como publicações em revistas ou suplementos.

Os dez contos que compôem o livro foram escritos entre 1991 e 1994. O mais antigo deles, A história triste de Hans & Alice, me veio à cabeça depois de uma reportagem policial em tórrido sábado de plantão no Rio. O texto foi parar na gaveta, de onde só saiu dois anos depois, quando me decidi realmente pela prosa, e mais especificamente pelo conto, deixando em segundo plano anos e anos como poeta sem tanto brilho. Ao menos nunca tive muita pretensão com a poesia.

Numa noite de sexta-feira, no fim do verão de 1993, quando um temporal deixou o Rio debaixo d’água, as primeiras situações do conto Alagados começaram a me roubar o sono. Eu já apagara a luz e tentava dormir. O problema é que aqueles personagens quase se materializaram ao lado de minha cama para me fazerem levantar. Conseguiram. Sentei à máquina (lembram que em 93 pouca gente tinha computador em casa?) e fui até às cinco da manhã. Mais dois ou três dias trabalhando no mesmo ritmo, e estava pronta a primeira história de amor que escrevi na vida, e que até hoje deixa assim assim corações enamorados.

Os meses seguintes também foram de trabalho intenso, madrugadas debruçadas sobre a velha Olivetti Praxis 20 (eletrônica) dando asas àquela experiência fascinante de conceder a vida a personagens em situações criadas a partir da imaginação ou da observação atenta do dia-a-dia. Muitas dessas situações queria eu ter vivido. Não consegui, mas escrevi.

O conto que dá título ao livro e que encerra o volume foi escrito em madrugadas afogadas em café e nubladas de fumaça de cigarro. De fundo, Acthung Baby, do U2, disco que tão bem define os anos 90. Para descansar, botava o disco (vinil, ainda), ouvia-o freneticamente, e voltava para a máquina. Quando raramente volto a ler esse conto, nos momentos de maior solidão do personagem principal, em minha cabeça volta a tocar One, a mais bela canção daquela década que já se distancia no tempo.

Voando pela noite (até de manhã) é um livro sobre solidão masculina e falta / procura de amor, tendo como cenário a noite encerrada em bares ou no carro, cortando a cidade, de volta pra casa pra fazer dormir o desespero, o vazio de às vezes ser jovem. Algumas histórias destoam desse contexto e roubam um pouco da unidade do livro. São os casos de Estressado e da própria tragédia de Hans & Alice, que entraram por causa de sentimentalismo de autor inciante, aliado a uma certa falta de critério editorial.

No site estão simplesmente a capa e os textos. Créditos, dedicatórias e epígrafes não entraram, pois o arquivo do livro, muito antigo, foi perdido na editora e esses detalhes não foram reproduzidos na nova digitação que precisou ser feita. Também não está no site o conto Ângela Sauer. É uma história de violência gratuita, sem sentido para a minha cabeça hoje, escrita na época por um autor (como tantos outros ainda atualmente) convicto de que escrever bem e causar impacto com literaturta, só imitando Rubem Fonseca.

O livro foi finalista do Prêmio Jabuti em 1997. Está esgotado, sem muita possibilidade de uma nova edição.

Amanhã escrevo sobre Eu nunca fecharei a porta da geladeria com o pé em Brasília, uma visão forasteira da capital do país.

Piada sem graça.

O terremoto no Haiti me remete automaticamente à piada gasta e já sem qualquer graça sobre o dia em que Deus criou o Brasil. Além de dar ao nosso país as mais belas praias, matas, cachoeiras e paisagens afins, ainda nos poupou dos catastróficos fenômenos da natureza.

Algum santo, ou assessor que o valha, questionou tanto privilégio. Ao que Deus virou e deu a explicação conhecida: “Ah, mas você vai ver o povinho que eu vou botar lá”.

Há uma versão mais moderna, que pretende ser engajada, politizada. É a que troca povinho por políticos, como se estes fossem postos onde estão por ação divina e não pelos votos de nós, pobres mortais.

Pense nessa piada olhando as fotos estampadas na Folha de São Paulo, em O Globo e no Estadão de hoje. Depois, ligue os noticiários de rádio e TV. Lembre outra vez da piada assistindo às imagens da desgraça, ouvindo os urros do desespero, do desatino, da completa ausência da esperança.

O povinho e os políticos.

Tudo bem, mas isso dá pra mudar.

Haiti, uma chance para o mundo.

O jornalista Cláudio Humberto, que divide comigo a bancada do jornal Gente Brasília (2ª a 6ª às 9h na BandNews 90,5 FM) observou no programa de hoje que a tragédia no Haiti oferece oportunidade ímpar e definitiva para que o chamado mundo rico ofereça uma realidade nova ao país.

Na hora sorri com desdém da idéia, não pelo seu conteúdo, mas pela impossibilidade de vê-la nascer na prática. Logo eu, que sou bem mais utópico que meu companheiro de microfone, homem sem ilusões, calejado pela cobertura jornalística do poder.

Agora, substituído o desdém pelo humanitarismo, me pergunto se não seria mesmo a hora de se resgatar de debaixo dos escombros não apenas corpos dilacerados e milagrosos sobreviventes, mas um país inteiro. Tendo na história duas ditaduras familiares e sangrentas (Papa Doc e Baby Doc), o Haiti é soterrado pela miséria extrema, 80% da população estão abaixo da linha da pobreza.

O terremoto poderia servir para que a globalização estendesse ao menos uma vez a mão para ajudar aqueles cuja vida ela própria surgiu prometendo melhorar.

Numericamente, é plenamente possível. O Goldman Sachs pagou no ano passado a título de bônus a seus executivos o equivalente a 1/3 do PIB do Haiti. Se reduzisse a fatia para 1/4 e desse uma parte aos miseráveis que vivem com menos de US$ 1 por mês, já resgataria dos escombros um pouco da dignidade no país.
Não estamos pedindo o bônus inteiro, só um pedaço pequeno. Não estamos pedindo um pedaço pequeno apenas ao Goldman Sachs, mas igualmente aos outros que se equivalem. Não estamos pedindo o dinheiro do lucro de produção, do salário de trabalhadores, mas o que entra pela janela desses bancos trazido pelos ventos generosos dos lucros.

Por falar em lucros, a tragédia no Haiti aconteceu no mesmo dia em que Barack Obama anunciou a taxação sobre o que os bancos ganharam no ano passado. Meio sem graça e com sorriso amarelo, Obama está cobrando de volta o dinheiro do contribuinte que ele emprestou para os banqueiros saírem da crise que eles mesmos fundaram. Sugiro que o presidente cobre juros sobre os juros cobrados, ou seja, que combata fogo com fogo ou a cobra com seu próprio veneno, e que mande entregar a diferença ao Haiti, para que o país comece a sair de seu permanente terremoto.

E se não for pedir demais – e não é mesmo – pensem também na África, credora secular de uma dívida moral e humana de grande parte do mundo, incluindo o Brasil.

Pequenina crônica para o menino triste.

O menino triste que mora em meu prédio está lá embaixo quase todas as vezes em que chego ou saio, sempre levando pela coleira dois ou três cachorros. Não distingo as raças, de cães entendo apenas de fazer festa nos mais dóceis e manter distância dos mais bravos. Só sei que em cada leva que vai para o passeio, são diferentes os bichos. A mãe do menino triste tem 14 cachorros dentro de um apartamento, para a revolta e incômodo dos vizinhos. É do tipo que acha que cachorro é mais importante do que gente, do que criança, que é a melhor espécie de gente. Respeito os bichos, mas ainda penso que as pessoas, apesar de todos os problemas que trazem, são mais importantes.

Morando em um “canil”, é compreensível que o menino viva lá embaixo, invariavelmente com duas ou três coleiras na mão. Passa ao largo das outras crianças do prédio, desvia das correrias. Quando está longe – e quase sempre está – arrisca olhar as brincadeiras, e em meio a cocô, xixi e latidos, parece dar como justo e normal que ser criança não é aventura que ele mereça. Atrás de bola nunca o vi, tampouco sentado no selim forçando as pernas curtas contra os pedais de uma bicicleta. Cercado de quatro, oito, doze patas, segue sua vida de menino sem meninice.

Eu não o cumprimentava. Injustamente, estendia ao garoto o silêncio dispensado à mãe, sem raciocinar que a culpa de se criar 14 cachorros em um apartamento não é da criança. Aliás, as culpas pelas imbecilidades do mundo nunca são das crianças.

Igualmente errados, os outros vizinhos dispensam ao menino nada além do olhar frio e acusatório que nasce das querelas adultas. Sabedor disso, o menino não foge apenas dos de sua idade. Toma distância também dos grandes, desses mais ainda, pois podem condená-lo pelo erro do qual ele compactua porque é menino, porque menino não tem muito direito de querer ou não. Mantém-se isolado, na companhia de cachorros, falando com cachorros.

Até que outro dia, um dos cães que ele levava latiu para uma de minhas filhas. Nervoso, temendo que o litígio com a vizinhança explodisse ali, tratou de dizer “Calma, ele não vai te morder, ele ‘tá é com medo de você”. E a frase foi seguida de um sorriso trêmulo, tímido, doce. Como eram doces a voz afobada e o sorriso acanhado do menino, que quase pedia permissão para sorrir. Foi a primeira vez que o vi sorrir. Foi a primeira vez que ouvi a voz do menino triste do meu prédio.

Ainda fiquei alguns minutos por ali. E como criança não tem mesmo muito assunto que puxar com adulto, repetiu mais um tanto “ele não vai ter morder, não fica com medo”, embora minha filha já até fizesse festa no focinho do bicho.

Desde lá passo e cumprimento o menino triste do meu prédio. Ele responde com a voz doce e afoita, desacostumado que é a receber “olá , como vai”. Às vezes até sorri, da mesma forma cândida, insegura. Mas quando as outras crianças estão por perto, me olha sério, pedinte, como querendo que eu, por um instante, tome conta dos cachorros para que ele vá correndo viver um momento que seja de meninice.

O Catetinho e o Brasil simples.

Do lado direito da rodovia que liga o Rio de Janeiro a Brasília (BR 040), bem junto à entrada da cidade do Gama, fica um dos principais marcos da época da construção da nova capital.

O Catetinho está escondido atrás de uma curva, cerca de 200 metros após a saída da estrada. Os mais apressados ou desatentos à sinalização talvez nem notem a indicação de que ali fica um palácio, mesmo que de todo modo a construção renegue o substantivo que ostenta tanto garbo.

JK dormia ali quando vinha visitar o imenso canteiro de obras que virou o Planalto Central. Era, pois, a residência do Presidente da República naquele imenso rasgo vermelho que homens e máquinas abriram no cerrado. Por isso há quem o chame de palácio, especialmente os adoradores dos “oficialismos” da história. O Catetinho foi batizado assim por causa do – este sim pomposo – palácio da Rua do Catete, ícone do Rio capital da república, volte e meia trocado por Buenos Aires na desinformação do primeiro mundo. Catetinho, no diminutivo, soa como paródia, coisa bem de brasileiro.

O diminutivo do nome não resume apenas o tamanho da construção. Retrata também sua simpatia, calcada certamente na simplicidade.

Erguido em apenas dez dias, o Catetinho, claro, nasceu do traço de Oscar Niemayer, que deu forma à idéia de um grupo de amigos de Juscelino. O grupo se quotizou e bancou a casa em que o presidente morou enquanto construía Brasília.

Pela urgência em ficar pronto e pelos recursos disponíveis, o Catetinho foi feito em madeira. São apenas dois andares. Em cima, a sala de trabalho de JK e três ou quatro quartos, entre eles o do próprio presidente. Juscelino dormia em uma cama de casal tamanho padrão, posta em um espaço não maior que vinte metros quadrados, o necessário para uma mobília totalmente despojada de requinte. Colado ao quarto, um banheiro com uma pequena banheira. Juntos, quarto e banheiro certamente desapareceriam na imensidão suntuosa dos cômodos das mansões de hoje em dia da capital do país.

Embaixo estão a cozinha, a lavanderia e pequenas salas que eram depósitos na época, além de um espaço aberto que servia de refeitório. Nele, e em longas mesas de madeira, conta a história do Catetinho que JK almoçava ao lado dos engenheiros e dos operários, juntando o poder, a elite trabalhadora graduada na univerisdade e a parte de baixo que sustentava – e levantava – a pirâmide do sonho de Brasília, um convívio impossível na cidade dos dias de hoje com sua segregação social.

A ligar todos os cantos do Catetinho, ou o chão de cimento no lado de fora ou aquela cerâmica vermelha, tosca, tolida de qualquer acabamento.

É ingenuidade pensar que a época da construção de Brasília foi um tempo de anjos, de homens santos investidos de nobre missão. Corre paralela à versão oficial, a história – entre tantas outras – dos caminhões de terra que faziam uma viagem e recebiam por quatro. Mas passando os olhos pelo Catetinho e logo em seguida pelo Brasil de hoje, e principalmente pela Brasília de hoje, é de se duvidar de que os homens públicos de agora se contentariam com uma simples casa de madeira.

Rock in Rio 1 faz 25 anos. Eu fui.

Eu vou.

Não há quem tenha mais de 35 anos que não se lembre desta frase curta e direta formando o logotipo em que o mapa da América do Sul nascia do braço de uma guitarra. Decorou milhares de camisetas e vidros de automóveis naquele verão de 1985. Além de propaganda do festival, era uma espécie de senha identificando quem havia comprado o ingresso. Não me lembro se tive camiseta ou adesivo, mas me lembro exatamente daquele 11 de janeiro, 25 anos atrás.

Era uma sexta-feira, calor igual ao que está fazendo hoje no Rio. Camiseta da Pier, bermudão de surfista, tênis all star e a mochila cheia de uns biscoitos que deveriam ser o cheetos da época. O ponto da Praça Sãens Peña lotado de fedelhos iguais a mim, que iriam encarar duas lentas horas apinhados num 233 (Rodoviária – Novo Leblon) até chegar a nosso destino histórico dentro de nossa geração: a Cidade do Rock, em Jacarepaguá.

Eu ainda não tinha 17 anos e é bom lembrar que, naqueles idos oitentistas, havia controle mais rígido dos pais em cima de um moleque dessa idade. Não vagávamos pela cidade como hoje, sem hora para chegar em casa e também não estávamos liberados para ir a qualquer canto quando bem entendêssemos com quem bem entendêssemos. Mas, naquele dia, o pirralho que não podia chegar em casa depois de duas da manhã cruzou os muros da Cidade do Rock liberado para voltar só depois que o último show acabasse. E quando deparei com aquela imensidão de gente já ficando doida e com o palco gigantesco, 1500 vezes maior que os “tablados” em que Barão, Paralamas e Lulu tocavam nos clubes da zona norte, fui tomado por uma sensação de maioridade. Esta, na verdade, chegava para o Brasil no campo das turnês dos grandes astros do Rock e da música pop. O Rock in Rio abriu as portas para que as grandes bandas colocassem o país na rota de suas andanças pelo mundo. As gerações de hoje, acostumadas a terem os Stones, U2, Madonna e etc toda hora por aqui, não sabem o que é tratar um show do Kiss no Maracanã (1983) como o evento do século. Antes do Rock in Rio, essa gente achava que o Brasil era um reino no meio da selva, onde só se ouvia bongô e atabaque.

O Rock in Rio ocorreu no primeiro dos três anos de glória do chamado Rock Brasil. O ano anterior foi o da explosão, e os dois seguintes (86 e 87) os que consagraram o gênero preferido da geração coca-cola (em 88 os ventos começaram a soprar mais fracos). E ocorreu também em um dos meses mais marcantes da vida nacional. No dia 15, no final da tarde, Cazuza anunciou durante o show do Barão que Tancredo Neves fora eleito Presidente da República pelo Congresso Nacional. Hoje, o fato é histórico. No dia, provavelmente passou sem a devida importância pelos filhos da revolução, que se esbaldavam ao som de Pro dia nascer feliz.

Não lembro bem das atrações nacionais do dia 11, acho que nenhuma das grandes bandas nacionais (que, aliás, nem eram tão grandes ainda) subiu ao palco. Whitesnake, Iran Maiden e Queen formavam a programação internacional. Como nunca gostei do Iran, assisti ao show como um flamenguista que vê um 0X0 entre Vasco e Fluminense. Ao Whitesnake, assisti com o queixo caindo aos poucos. A banda de David Coverdale era pouquíssimo conhecida no Brasil. Pelo que me lembro, veio no lugar do Pretenders, vedete das pistas de dança da época com Middle of the road, porque a vocalista Cris Hind estava grávida. Pois bem. O Whitesnake subiu ao palco e nunca mais saiu do gosto dos rockeiros que vivem abaixo da linha do Equador. Depois que assisti ao Coverdale girando no alto o microfone de pedestal, e mesmo assim cantando com extrema afinação e vigor, comprei o vinil duplo Live…in the heart of the city, que junta shows da banda em 1978 e 80. Até hoje, esse disco mora nos cantos privilegiados de minhas memórias afetivas e musicais.

Já era madrugada quando começou o primeiro dos três maiores shows que vi na vida – os outros foram Paul MaCartney em 90 e U2 em 97. Poderia parecer irreal, mas eu estava a cerca de 200 metros do Queen, numa época em que a banda não era um revival, mas atual, que tocava nas rádios e lançava discos com músicas inéditas. E que tinha Freddy Mercury. Em carne e osso. Não apenas a memória de alguém que um dia foi um dos maiores vocalistas do Rock. E tinha Bryan May. E Roger Taylor. E John Deacon. E para ouvir, Bohemian Rapsody, Love of my life e We will rock you, canções que apresentaram o Rock’n Roll a muita gente. No encerramento da apoteose, We are the champions, com a sacação do momento político brasileiro. Mercury entrou no palco vestindo a bandeira do Reino Unido, e quando virou de costas, desfraldou uma imensa bandeira brasileira para o delírio de um nacionalismo atabalhoado e recém-nascido, esperançoso de que algo no país iria mesmo mudar.

Voltei para casa de manhã, sentado na roleta e dormindo em cima da mesa do trocador do mesmo 233 que devolvia aos pais aquele bando de pirralhos sonados. Nos ouvidos, ecos de uma noite que viverá até mesmo quando forem vovôs decrépitos aqueles mesmos fedelhos que já se achavam grandes pessoas. Na cabeça, o êxtase e a leve desconfiança de que presenciamos um marco de nossa geração.

Eu fui.

A liberdade é amarela e conversível é destaque na Revista Capitu.

Está no ar uma entrevista minha à Revista Capitu sobre meu quatro livro de contos, A liberdade é amarela e conversível. O editor da revista, Duanne Ribeiro, é quem assina a matéria. As perguntas estão bem formuladas por que Duanne leu o livro, ao contrário de alguns colegas jornalistas que ao entrevistarem um escritor se resumem a perguntar sobre processo de criação, do que tratam as histórias e – a mais trivial de todas as perguntas para um autor – como é escrever em um país de tão poucos leitores.

Para nós, escritores, o mais interessante das perguntas de quem lê o que a gente escreve, é que elas tocam em pontos que nós mesmos, que criamos as histórias, nem sempre paramos para pensar naquela possibilidade que nos está sendo colocada.

No caso da entrevista à Capitu, está indentificada pelo entrevistador a distância que separa meus personagens do que eles querem, desejam, sonham, procuram. Aprofundadas, as perguntas me permitiram ir até um pouco além do livro falando de um de meus personagens preferidos, o Zedias, que enlouqueceu depois de ter perdido a paciência com o mundo.

Confiram no site da revista: http://www.revistacapitu.com/materia.asp?codigo=142

Está na mão da “estudantada”

Na próxima segunda-feira, dia 11, a Câmara Legislativa do Distrito Federal volta aos trabalhos (?). O presidente da casa, Leonardo Prudente, disse alguns dias atrás que vai reassumir o cargo do qual pediu licença no dia seguinte à exibição de uma das imagens mais constrangedoras, ridículas e revoltantes da história política do país. Para quem não está ligando o nome ao escândalo, Prudente é aquele que aparece colocando dinheiro de propina nas meias. Como explicação, titubeante veio a público, de forma patética, dizer que recebeu o dinheiro e “colo-quei o mes-mo nas mi-nhas ves-tes pois não u-so pas-ta”.

Há analista político dizendo que a intenção de Prudente é mesmo reassumir a presidência e sair atirando. Acusado de ser homem do esquema do mensalão do DEM, e de outros esquemas, falam que ele pode, com o poder do cargo na mão, usar o que sabe para acusar seus pares também enrolados e gente de outro poder, o Executivo. Dessa forma, em uma futura campanha eleitoral, posaria de denunciante da bandalheira, apostando que a curta memória do eleitor não lembraria que ele colocou a mão no dinheiro. E este nas meias.

Há quem diga que ele poderá permanecer no cargo movido pelo apetite da vingança. Ou seja, como foi e será novamente alvo a partir de segunda, pode abrir a boca, sair atirando com a idéia de que “vou morrer, mas mato muita gente antes”. Se ele realmente “morrer”, então está ótimo.

É claro que os outros tantos deputados envolvidos no esquema e os encarregados de defender José Roberto Arruda dos pedidos de impeachment não vão deixar que Prudente sente outra vez naquela cadeira. Vão tratar de tocá-lo dali, de preferência posando de defensores da moralidade. Mas a sociedade não pode se contentar com isso, pois não se limpa lama com lama.

Estamos nas mãos dos estudantes, os mesmos que ocuparam a Câmara em dezembro. Se a ocupação se repetir – de preferência de forma ordeira, para que os ramos conservadores não tenham pretexto para falar mal – Prudente, que é fruta podre, cai do galho com um esbarrão. É claro que só ele é muito pouco, parece que é preciso derrubar a árvore inteira, mas já será alguma coisa.

Óbvio que vão dizer que os estudantes são manobrados pela CUT e pelo PT, e que quando estourou o mensalão do Lula ninguém deu as caras na rua. Isso é fato, é correto. Mas se esses meninos e meninas, mesmo que erguendo bandeiras, não fizerem barulho, não será a classe – média de Brasília, bem estabelecida e preocupada com seus coquetéis, horas extras e gratificações, que vai botar a quadrilha no olho da rua.

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