As filhas moravam com ele

Em época de dias dos pais, uma crônica que não é inédita, mas que fala dessa coisa de pai que ama muito as filhas…
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As filhas moravam com ele
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Quando abriu a porta e acendeu a luz, o apartamento de apenas 30 metros quadrados lhe pareceu maior do que uma mansão de vinte quartos sem mobília e sem gente morando.

Naquela noite, foi dormir cedo, muito mais por solidão do que por cansaço.

Até hoje não sabe se sonhou ou se tudo não passou de imaginação disfarçada de sonho naquele limiar do sono, quando já estamos quase dormindo, mas ainda restam algumas tomadas plugadas ao mundo concreto do dia que termina.

O que sabe é que estava em uma casa bem maior que seu apartamento, uma casa térrea, que chamava a atenção pela simplicidade e pelo acabamento desleixado.

O piso era de cimento queimado e lembra-se de que duas ou três paredes estavam ainda no reboco. Não sendo antiga, também não era recém-construída. Percebia-se que estar pronta sendo inacabada era traço característico incorporado pelo tempo e por iniciativas proteladas, daquelas “tem que fazer, mas esse mês, não dá, deixa para o próximo”. Era bem clara também, de uma claridade que permeava a sala espaçosa, os três grandes quartos e a cozinha, onde cabia mesa de seis lugares, feita de madeira rústica.

Em seu dorme não dorme, sonha não sonha, não tinha certeza se a luz do dia era a da manhã ou a da tarde. Era luz, e isso era o mais importante. Ali, pelo jeito, ele pensou quase dormindo (ou sonhando?) que o luar também deveria fazer visitas e se hospedar feito primo que vem sempre.

Já o vento, este mais que se hospedava. O vento morava.

Aproveitava as grandes janelas sempre abertas, sem grades e cortinas, e circulava pelo ambiente de poucos móveis e imensos clarões entre mesa e sofá, camas e guarda-roupas. O vento entrava e saía, esperava alguns instantes, voltava. O vento parecia um cachorro de casa: do quintal para dentro, de dentro para o quintal, até que alguém o notasse e fizesse festa pela sua presença.

Quando naquele túnel irreal ainda percorria os cômodos e vislumbrava do janelão da cozinha uma varanda imensa, coberta por telhas e sem laje, ouviu vozes de meninas, meninas entre a infância e a pré-adolescência.

– Pai! ‘Cê tá em casa, pai? – Era a voz da filha mais velha, entrando esbaforida, jogando a mochila no primeiro espaço vazio.

– Pai! Tirei nove em matemática! – Avisou a do meio, vindo junto à primeira.

– Pai, cadê o Dique? – E logo surgiu a caçula, passando por ele e voltando instantes depois, seguida pelo cachorro labrador imenso e carinhoso. Ele sorriu no sonho, ou no que quer que fosse aquilo que embalava seu adormecer: havia também um cachorro, para também entrar e sair quando quisesse.

Eram suas filhas, e moravam com ele no sonho, no limiar do sono ou na imaginação meio acordada, outra metade adormecida. Não precisava pegá-las de quinze em quinze dias, pois era ele quem cuidava delas todos os dias, do que haveria para almoço e para a janta, era ele quem recolhia suas presilhas de cabelos, suas fitinhas e laços esquecidos pelos cômodos. Era ele quem as ouvia contar histórias do recreio na escola e entregarem, cada uma, segredos inocentes das irmãs sobre namoradinhos.

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Depois que almoçavam, nas tardes de sábado, iam para a varanda terminar de rir das tolas piadas que contaram à mesa. Lá pelo meio das três horas, esticado em uma encorpada cadeira também de madeira rústica, ele perdia os olhos em um horizonte baixo que havia para ser medido do alto da colina onde ficava a casa. A paisagem sumia num cochilo bom e profundo, mas reaparecia quando ele acordava com o vento mais forte derrubando mangas no fundo do quintal e anunciando chuva grossa no fim da tarde.

Espreguiçava-se em paz, com a certeza do cheiro da terra e grama molhadas. Era a mesma certeza de que mais tarde, quando já fosse noite, as nuvens descarregadas do temporal dariam lugar no céu às estrelas, e que ainda mais tarde uma lua amarela, pela metade, subiria o muro do mesmo horizonte baixo.

Terminando de esticar os braços e dar os últimos bocejos, levantava-se e ia inspecionar os quartos, onde as encontrava enfiadas nos livros, nas mensagens dos celulares e quase sempre no apronto sem fim dos cabelos.
Do corredor, perguntava alto:

– Quem vai querer pizza de noite?

– Eu!

– Eu!

– Eu!

E as vozes felizes tomavam a casa, carregadas pela expectativa do sabor.

Eram suas filhas, moravam com ele, e ele, quando chegava em casa, não encontrava solidão. Ouvia no sonho, ou no galope da imaginação, a chuva chegando, sentia o cheiro da terra molhada invadindo a sala. As janelas batendo com o vento e a copa da mangueira sacudida lá fora avisavam que ele era feliz e que aquela era uma casa simples e em paz.

Um dia, o curso normal da vida levaria as três, uma a uma, mas logo logo o recompensaria com netos e netas, e a casa, sempre inacabada, estaria cada vez mais firme em sua simplicidade e em sua paz.

As filhas moravam com ele.

E se realmente sonhara, fora o sonho mais lindo que tivera em toda a sua vida.

A ressureição de um soneto

A Nova Poesia Brasileira (Crisális Editora, Rio de Janeiro, 1985)
A Nova Poesia Brasileira (Crisális Editora, Rio de Janeiro, 1985)

Meus primeiros poemas são cópia descarada dos poetas românticos.

Aos 15, 16 anos eu escrevia sonetos, imaginem, formato poético em extinção, creio eu.

Ouvia Rock o dia inteiro e à noite, na calada do quarto, rabiscava rimas e tentava as tais métricas, na busca do verso perfeito, o que, claro, jamais alcancei.

Achava legal morrer tísico, aos 21 anos, feito Álvarez de Azevedo, meu poeta preferido entre os românticos, embora de verdade nunca tenha querido isso para mim.

Outro dia, um desse sonetos reapareceu do fundo bem fundo do tempo.

Escrevi para uma de minhas primeiras namoradas, e dela realmente devo dizer que nem sei mais se anda por esse mundo. Espero que sim, e que esteja bem.

O soneto reapareceu em uma mensagem via inbox.

Amiga de amigo meu que não vejo há anos me perguntou se eu era autor de tais e tais e tais versos, e digitou alguns trechos.

Ela disse que o leu em algum lugar, em algum momento perdido no passado.

Guardou-o apenas na memória, juntamente com a lembrança duvidosa do nome do autor.

Confesso que, de cara, não reconheci o que escrevi 35 anos atrás, o mesmo que aconteceria certamente caso topasse com quem me inspirou na adolescência distante, quando ainda assinava André Luis (hoje, na maioria das vezes, esqueço que me chamo André Luis).

A página na foto é de uma daquelas coletâneas de “novos autores brasileiros”, que existem até hoje, e que se bobear já existiam até mesmo na época do romantismo como estilo literário.

Era o velho sistema de pagar pra participar, e a gente quando é novo tem a ilusão de que nosso poema foi selecionado porque ele é realmente muito bom como a gente imagina. Ou queria que ele fosse.

A dona da editora era Cristina Oiticica, mulher de ninguém menos do que Paulo Coelho (nem sei se ainda é, não tenho curiosidade).

O soneto é bem rimadinho até, mas derrapa feio nas curvas da pieguice.

De quebra, reparem bem, assassina a pontuação com vírgulas postas nos lugares mais proibidos pela gramática.

Meu álibi é que eu tinha 16 anos quando escrevi, era dado a exageros sentimentais, mas não ao estudo da língua.

Segundo a Emmy Matias, que o ressuscitou, o soneto vai virar música.

E isso é o suficiente para que me envaideça outra vez (a 1ª foi a ilusória premiação de participar da coletânea, lembram?), 35 anos depois, meu sonetinho apaixonado e fora de moda.

Celeiro?

Senadora Soraya Tronicke (PSL-SP) hoje, 7/8, na Comissão de Agricultura do Senado: “O Brasil é o celeiro do mundo”.

Estranho celeiro esse, em que 13 milhões de pessoas morrem de fome (nºs da Cáritas Brasileiras).

Celeiro para alguns, que sempre viveram de barriga cheia.

Observatório do Terceiro Setor
Observatório do Terceiro Setor

Listinha

Estive recentemente em um evento literário em Pirenópolis, cidade histórica de Goiás, a cerca de duas horas de Brasília.

Nesses eventos, tão bom quanto vender livros e mostrar nosso trabalho é descobrir, como leitor, outros autores.

E por isso também valeu muito a pena participar quase um mês atrás da e-cêntrica, que deve se repetir em agosto em Cidade de Goiás (sim, a terra de Cora Coralina).

Divido, então, esses livros com vocês – todos são de poemas.
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Pedro Tostes eu já conhecia, mas nos tornamos camaradas em Piri, onde me aproximei de sua poesia, que é um necessário tapa, cusparada, escarrada, golfada de vômito em um blend (não é assim o modo chique de dizer?) de país/sociedade/ser humano atuais.

Depois, para respirar, leia Keyane Dias.

A poesia dessa brasiliense é como abrir janela em quarto fechado, fazendo nos sentir integrados às árvores, flores e pássaros lá fora, no quintal.

Cássia Fernandes e Dairan Lima explicam com extrema beleza, capacidade e precisão poéticas as dores de amor e solidão das mulheres, o que serve também para os homens, porque dor e solidão têm o costume de serem assexuadas.

Por fim, Carlos Edu Bernardes, que não estava no evento, mas cujo livro me chamou a atenção pela capa e pelo título.

Me ganhou com uma poesia lírica sem pieguismos e uma linguagem que me pareceu próxima à Música Pop, ao Blues e ao Rock, o que sempre me agrada, pois me vejo como pessoa e autor nesses espelhos.

Enquanto volte e meia pula aqui ou acolá uma lista dos “dez-poetas-da-atualidade-imprescindíveis-e-necessários-que-você-não-pode-deixar-de-ler”, sabe-se lá com que critérios elaborada, ficam aqui minha humilde listinha de poetas (de Goiânia, Brasília e São Paulo) que descobri no interior do Brasil e meus votos de boa leitura.

A tecnologia dos ipês de Brasília

A seca em Brasília é bela, tão bela quanto cruel para com os sistemas respiratórios mais sensíveis.

O estio na capital do país é paleta de cores a ser descoberta pelos olhos mais atentos e menos apressados, aqueles que se ocupam com a vida que de fato existe, aquela que corre do lado de fora das alienantes (e imbecilizantes) telas de smartphones.

Raquel Madeira - Asa Norte - Brasília, DF
Raquel Madeira – Asa Norte – Brasília, DF

Nos últimos dias, Brasília está lilás.

É a primeira leva de ipês que se derrama pelos eixos e quadras, anunciando, justamente, a abertura oficial da estiagem.

Lá pela metade de agosto, será a vez dos ipês amarelos.

Eles são o 2º aviso da criação, a de que a seca está no auge e que você não deve se aventurar a pé por aí, debaixo do sol das 2 da tarde, pois há o risco de se tornar um graveto estorricado antes de chegar a seu destino.

Os ipês amarelos são uma forma deslumbrante de bela de te preparar para a crueldade desses dias em que se você passar com mais força a sola do sapato na grama, periga provocar uma queimada.

A 3ª e última leva de ipês, a dos brancos, aflora lá pela virada de setembro para outubro, e além de beleza ela traz o aviso mais esperado do ano por quem mora em Brasília: a de que a chuva está próxima.

Dito e feito: entre 10 e 15 dias a água desce, ressuscita a grama e a nossa esperança de que a vida vale mesmo muito a pena, embora com um ou outro desgosto aqui e ali.

Raquel Madeira - Asa Norte - Brasília, DF
Raquel Madeira – Asa Norte – Brasília, DF

Portanto, decore: lilás, amarelo e branco – começo, meio e fim – ascensão, apogeu e declínio da seca.

É a tecnologia da mãe natureza, muito mais bela e perfeita do que qualquer Apple ou Samsumg.

Brasil, meninão bobão cinquentão

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O Brasil é feito um grande meninão de 50 anos com cabeça de 15.

Que faz besteira desde os 15 e não se toca que já está com 50.

Coleciona burradas e delas não armazena qualquer aprendizado.

Recebeu uma Copa do Mundo, sediou uma Olimpíada.

Dez anos atrás (exatamente) alardeava-se os benefícios que os dois eventos trariam ao país.

Era o tal legado, palavra grandiosa, dona de certa aura de mitologia grega (a depender da imaginação) que, embora não tenha esse significado, na 1ª vez que a escutamos chega a sugerir riqueza.

É só olhar para a nojeira que continua a Baía de Guanabara, para a sucata das instalações olímpicas e para os elefantes brancos que são a maioria dos estádios da Copa e a gente entende o meninão de 50 com miolo de 15.

Agora a história se repete (como farsa) nessa ideia de se construir um autódromo no Rio, que, diga-se de passagem, perdeu o seu antigo justamente por causa da Olimpíada.

Dessa vez, o legado terá entrega imediata, não será preciso esperar: 180 mil árvores serão derrubadas em uma área remanescente de mata atlântica, a última em zona plana, 2º especialistas.

Um autódromo para ficar abandonado como estava o de Jacarepaguá? Como está há sei lá quantos anos o de Brasília?

Meninão Brasil, se liga!

Pare de ficar sem pagar a escola dos filhos só para ir a restaurante de luxo e ter carrão importado.

A cidade existente da inovação com poesia

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Não tenho certeza, mas me parece que há uma brisa na literatura nacional soprando na direção de se inovar a forma de escrever um romance.

Há autores tentando, e alguns conseguindo manter o interesse do leitor.

Caso de José Rezende Jr. em seu recém-lançado A Cidade Inexistente (7Letras).

A história aborda um drama silencioso e desconhecido do Brasil que vive nas grandes cidades: as pessoas atingidas por barragens, que tiveram que sair, muitas vezes às pressas, do lugar onde viveram durante anos, porque sua história e a de sua família despareceu debaixo das águas de alguma hidrelétrica.

Como inovação, no livro não há, declaradamente, um personagem principal, papel que parece caber à própria cidade afogada.

Personagens se revezam recebendo as luzes principais da narrativa.

Ora um aparece mais do que outro, e logo em seguida se recolhe por algumas páginas, para dar espaço a quem aguardava a vez.

Uma aposta feliz de Rezende, capaz, com essa ousadia, de inclusive abiscoitar outro Jabuti, o que já fez alguns anos atrás.

E o que embala o leitor no vai e vem de cada personagem é a narrativa dotada de extrema sensibilidade humana, com invólucro da mais fina poesia.

Não me consta que Rezende seja poeta, e se de fato não é, conseguiu ser, inovando na forma de escrever um romance.

Dúvida e espera

Moro

Nesta 4ª feira, no Senado, certamente o ex-juiz vai dizer que é normal magistrado conversar com promotores.

Suponho que realmente seja.

Minha dúvida é se é normal um magistrado estar em grupos de zap conversando com os promotores.

Por mais formal que seja, um grupo dessa espécie sugere proximidade, objetivos em comum.

Será que ele também fazia o mesmo com os advogados de defesa?

Se é normal para um lado, deveria ser também para o outro, eis minha outra dúvida.

Enquanto isso, aguardo mais celeridade do Intercept nas revelações sobre esses diálogos.

Greenwald voltou a repetir que o material está sendo analisado, checado, em nome do bom e responsável jornalismo.

Muito bom que seja.

Mas pela minha experiência na profissão, séries de reportagens chegam ao público apenas depois de superada essa fase de checagem e comprovação.

O diálogo envolvendo FHC é pesado, incômodo (que uso aqui como eufemismo de comprometedor), mas acho que está havendo mais propaganda do que entrega por parte do site.

Ou de uma entrega mais rápida.

Paciência não é um recurso renovável.

Reaprender

O Sérgio Augusto Novaes Cabral postou o link da gravação ao vivo dessa música aí debaixo.

O meu link é a versão de estúdio.

Certamente é o maior hit do Foreigner, uma banda meio farofa meio sessão da tarde (é só reparar no vídeo, que está a uma passo da cafonice).

E eu não tô nem aí, porque me amarro no Foreigner e essa é, em minha opinião, uma das canções mais lindas de minha geração e de toda a história da música pop.

E torna-se mais bela pela lembrança que me traz.

É que a 1ª vez que a ouvi foi em uma baita festa pra lá da Curicica, um lugar no Rio que à época era provável que fosse demarcado pela Funai, mas que hoje deve estar coalhado de condomínios e shoppings com estátua da liberdade na entrada.

Não conhecia a dona da festa, fui arrastado por um camarada da escola, que tinha um fusca azul com um siri enfeitando a alavanca de câmbio.

Eu ainda não tinha idade para dirigir.

Mas como o fuscão azul vivia sem gasolina e a gente sem dinheiro, fomos de ônibus.

Na volta, perdemos o busum / baú e tivemos que andar durante duas horas – mato de um lado e de outro – no meio da madrugada.

Tudo isso para pegar um 2º ônibus que nos levaria até um ponto onde, então, pegaríamos um último até em casa.

Passamos mais tempo indo e voltando do que na festa.

E rimos de tudo, e nos divertimos com tudo.

E a música se tornou inesquecível, e todo aquele tempo também.

Por que a gente desaprende a relaxar quando cresce, quando vira adulto?

Não deveríamos, porque quando começamos a envelhecer, percebemos que precisamos urgentemente reaprender.

Um dia, um verão

Verão de 1984.

Mais de uma hora de ônibus até a praia, em Ipanema, posto 9, em frente à rua Joana Angélica.

Me achava o Menino do Rio, o André de Biase do subúrbio.

Amarrada no cadarço do calção a grana certa prum guaraná (Guaraná Taí, gostoso como um beijo!) e um pão de mel na padaria da esquina com a Visconde de Pirajá.

Na cabeça era tanto sonho que um verão só não bastaria para viver tudo.

No coração, a alegria de encontrar meus amigos e saber que iríamos rir muito, muito mesmo.

Nos ouvidos, essa canção do Slade, que tocava de 5 em 5 minutos na Rádio Cidade.

Nada de viver no passado, mas às vezes dá vontade de voltar lá rapidinho, dar uma choradinha de alegria e, pronto, encarar de novo o presente, que é o que existe de verdade.

https://www.youtube.com/watch?v=lwGMavksr5E

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