Dever de casa

*Por Renata Gonzaga

Saí da universidade há 21 anos. E acho que devo voltar ao ensino fundamental. Sou completamente incapaz de ajudar meu filho de seis anos a fazer o dever de casa. Era mais ou menos assim. Depois do poeminha, o autor perguntava a opinião do aluno sobre o que a poetisa queria dizer no último verso. Amarelei. Não consegui ajudá-lo a ter uma opinião quando ele ainda tenta entender o que são versos, estrofes, poemas. O mesmo livro de português introduz a definição de “variedades linguísticas” e questiona a eficiência da propaganda boca a boca numa tirinha do Menino Maluquinho.

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Como me senti incompetente para responder, incentivei meu filho a escrever simplesmente “não sei”. Desculpe, mas o professor que é pago para isso que o ajude. E lamento mais ainda quando penso na frustração de pais que tiveram pouca instrução e se sentem ainda mais impotentes na hora do dever de casa. Uma lástima.

Outro dia fui chamada na coordenação da escola e ouvi o mesmo diagnóstico que recebi quando meu filho tinha três anos de idade – o aluno é disperso, desatento, não consegue acompanhar a turma e precisa de atendimento psicopedagógico. Mais uma vez penso nos pais que mal conseguem dar conta da escola. Como pagar acompanhamento extra? Três anos atrás o levei para avaliação de uma profissional indicada pela escola. Depois de quatro sessões ela afirmou que o aluno não precisava das sessões. Estava apto como qualquer outro menino da idade dele. A escola insistiu no diagnóstico que a profissional contestou. Então, decidi levá-lo às sessões durante seis meses, até receber alta. A coordenação continuou achando que ele tinha o tal do déficit de atenção. Ainda tentando ajudar a escola a ajudar meu filho, levei-o a uma psicóloga, supondo que o divãzinho poderia integrá-lo mais às aulas. Depois de um ano de tratamento, alta novamente.

Este ano eu decidi que não vou mandá-lo a nenhum consultório. Se meu filho está fora do estreito intervalo padrão de crianças consideradas “normais” a escola vai ter que dar um jeito. Volto a pensar na situação de outros pais. Aqueles que tem filhos com alguma deficiência comprovada e que, por lei, tem direito a estudar em qualquer turma do ensino regular. Como as escolas podem ser inclusivas se tratam com diferença o garoto que escapa do padrão da turma? Em vez de incluir, elas o afastam, mandam-no para profissional especializado. Parece-me que as escolas não são mais especializadas em ensinar.

Sabem por que acho que meu filho não tem déficit de atenção nenhum? Porque quando ele senta lá na cadeirinha do Terraço Shopping prega os olhos no palco, brinca e grita para os personagens como se estivesse hipnotizado pela dramatização. Também porque ele lê sozinho um livro inteiro, se estivermos ao lado explicando uma ou outra dúvida. E ainda porque consegue contar uma história do início ao fim se estivermos prestando atenção a ele. Meu filho tem desenvolvimento cognitivo normal – e isso quem diz não sou eu, mas a psicopedagoga.

Confesso, estou decepcionada. Num mundo em que a tecnologia amplia possibilidades a escola restringe seu campo de atuação. Não ficarei surpresa se meu filho for convidado a fazer o segundo ano do ensino fundamental novamente em 2015. Eu, como mãe, estarei ao lado dele, fazendo o segundo ano junto. Quanto à escola, ela também será reprovada.

 

*Renata Gonzaga é jornalista

Eu, minhas filhas e o direito das mulheres*

Homem branco, de classe média, criado sob os ditames machistas, nunca me preocupei com os direitos das mulheres.

Até ser pai de três meninas.

Não me agrada pagar a educação delas e saber que no futuro elas poderão ganhar menos do que os colegas homens por causa de uma estupidez cultural que é quase uma cláusula trabalhista.

A tal meritocracia, defendida por quem é contra as cotas raciais nas universidades, deveria ser instrumento para igualar os sexos no mercado de trabalho. Pena que os homens que a defendem no primeiro caso se omitem no segundo.

Mas minha preocupação de pai com a questão dos direitos das mulheres não fica, claro, restrito ao campo do trabalho. Porque temo que uma delas seja vítima de violência de marido ou namorado, preparo-as para entender que a dignidade é a mãe do direito.

Desde já cultivo naquelas cabecinhas que não aceitem, de forma alguma, gritos e xingamentos de algum homem, seja ele quem for, tenham por ele amor, paixão ou qualquer outra espécie de atração ou sentimento. A mulher que admite isso abre a porta para a violência física, e será, possivelmente, presa fácil do cínico arrependimento do homem.

A dignidade da mulher no casamento, namoro, noivado e afins certamente é um de seus principais direitos, e talvez passe pelo conceito que ela terá dessa relação. Procuro ser claro com minhas filhas: a felicidade de vocês não dependerá de marido ou espécies semelhantes. A mulher que tem essa consciência fica menos vulnerável à agressão física e psicológica, e não aceitará como normal toda sorte de humilhação.

Essa coisa de se preocupar com direito das mulheres me faz prepará-las para não serem ‘mulherzinhas’Quero minhas filhas ‘mulher-macho’, aquela que enfrenta a vida de frente sem homem de escudo, pronta a mandar às favas qualquer um que lhe ultraje a dignidade, seja nos campos material, sentimental ou psicológico.

Alguns podem chamar isso de consciência. E até é. Mas é, antes de tudo, amor de pai.

*Publicado em 18/7/2012

A resistência dos pensantes

Ouçamos o que dizem as cabeças teimosamente pensantes desse país e que são luzes na escuridão da imbecilidade dominante.

Alceu Valença denuncia novo jabá e critica multiculturalismo forçado

Carlos Minuano

Do UOL, no Recife

  • Divulgação
  • Alceu Valença encerra a folia no Marco Zero, principal palco do Carnaval do Recife, na madrugada desta quarta-feira (5)Alceu Valença encerra a folia no Marco Zero, principal palco do Carnaval do Recife, na madrugada desta quarta-feira (5)

“Sempre tive relação muito problemática com gravadoras e produtores”, diz Alceu Valença em entrevista exclusiva ao UOL. O artista, que encerra a folia no Marco Zero, principal palco do Carnaval do Recife, na madrugada desta quarta-feira (5), afirma que identidade da música brasileira está seriamente ameaçada.

“Estão vendendo gato por lebre”, afirma o artista. “Inventou-se agora o conceito de multiculturalismo, que é uma forma de enfiar qualquer coisa em festas populares como São João e Carnaval”.

Ele, entretanto, ressalta Pernambuco como exceção. “O que vejo aqui é preservação, em Olinda, por exemplo, folia é embalada por cancioneiro centenário”.

Mas ele vê o fenômeno ocorrendo em outras regiões do país.   Equivale a colocar numa festa junina um fado português, diz Alceu. “Tem muito artista de forró, de brega, de rock, querendo entrar no Carnaval”. A porta para que entrem são as tais festa multiculturais antes ou durante a folia, acrescenta.

Ele compara cenário aos pacotes turísticos de resorts, que oferecem tudo incluído. “A pessoa não quer perder nada, come além da necessidade, porque não pode perder aquela mesa farta”.

“Veja a situação a que chegaram os programas de televisão, nada contra nada, tudo pode existir, há uma glamourização do lixo cultural”. Alceu diz que apologia à falta de cultura atende interesses da indústria do entretenimento. “Quanto mais burro, melhor para o sistema”, dispara Alceu. A área da cultura brasileira, na opinião do músico, carece de curadoria.

Novo modelo de jabá
Ele também denuncia novo modelo de jabá que assola o mercado de rádios no nordeste, e que começa a chegar a outras regiões do país. “O jabá hoje se transformou numa outra coisa”, diz.

Ele explica que donos de rádio compram bandas e músicas para tocar nelas, para ganhar também com o direito autoral. “Tudo que entrar será lucro”, comenta. “Depois eles fazem um jogo entre eles, donos de rádios, para que um toque a música do outro”. Desta forma, segundo ele, criou-se um cartel que domina o mercado com uma ‘música sem alma’, ou ‘fuleirage music’, como também ficou conhecida, diz Alceu.

  • A pedido do UOL, Alceu Valença dá uma pausa no Carnaval para fazer autorretrato

Rompimento com gravadoras
Por sua postura crítica e independente, Alceu há décadas se afastou de gravadoras. O produtor atual é um músico que toca com Alceu. “Ele não pode me exigir nada e nem vai querer me manipular”, justifica.

O rompimento com as gravadoras aconteceu em 1987. O músico acusa a gravadora RCA de cooptar artistas, na época, só para tirá-los de circulação e abrir espaço para o ‘brega’, novo gênero que seria lançado.

“Eu, Chico Buarque, Fafá de Belém, e outros artistas, foram contratados para ir pra gaveta, para poderem lançar outro tipo de produto que interessava ao diretor artístico”.

Alceu conta que a gravadora chegou a sugerir que ele mudasse repertório. “Pediam para cantar músicas bregas e outras”.  O objetivo era trazer para o Brasil produtos mais semelhantes ao americano.

“Em três anos ganhei apartamento, hospedagem em hotel cinco estrelas, com tudo pago em minha vida, mas calaram minha música”. O mesmo aconteceu com todos os artistas contratados, prossegue o artista. “Por isso rompi com a indústria”, observa.

Novos meios de difusão
Na época, Alceu relembra que começava carreira na Europa, mas conta que resolveu retornar e “ganhar o Brasil, mesmo sem ter empresa por trás”. O caminho para isso ele diz que foi ir para todos os cantos e fazer a cabeça de fãs que vão aos shows. “Um diz ao outro e público vai aumentando”.

“Em Brasília já botei 27 mil pagantes em show”, diz Alceu, orgulhoso por ter conquistado público, mesmo aparecendo pouco na mídia. “No ano passado fiz 89 shows, quatro na Europa”.

O artista conta que a divulgação foi toda feita pela internet e redes sociais com vídeos produzidos em aparelho celular. “Em Portugal casa ficou lotada todos os dias, conversei com pessoas vindas da Espanha, que souberam do show pela internet”.

Um dos nomes mais importantes no Carnaval do Recife, Alceu Valença abre o encerramento da folia, no Marco Zero às 0h50. O artista abre o show com “Homem da Meia Noite” e em seguida emenda grandes sucessos como “Bicho Maluco”, “Bom Demais”, entre outros.

Depois do Carnaval no Recife, Alceu Valença apresenta em São Paulo o espetáculo “Valencianas”, com a Orquestra de Ouro Preto, nos dias 21, 22 e 23, no Sesc Vila Mariana.

Sobre carnaval*

serpentina

Na sexta-feira, na hora do almoço, o pai veio com a notícia: teria que passar o sábado e o domingo em Volta Redonda. É que surgira um entrevero entre a empresa em que trabalhava e a Companhia Siderúrgia Nacional, a poderosa CSN, àquela época ainda estatal. O patrão nem quis discutir se era carnaval. Vá lá, veja do que se trata e só volte quando tudo estiver resolvido.

O menino, decepcionado, olhou os olhos baixos da mãe, que foram parar no chão igualmente desencantados. Haviam programado um passeio, zoológico, Quinta da Boa Vista, pelo que parecia.

Logo em seguida, o rosto do pai clareou-se em idéia de conforto.

Por que não vamos todos? Mal ou bem, dá-se um passeio.

Daquela proposta à manhã de sábado, tudo o mais se apagou da memória do menino. Desde lá, só se lembra do dia muito azul, e bem cedo todos já de pé: o pai, a mãe e ele, indócil,  como bem sabem ser as crianças perante as novidades. Deveria ser lá pela metade dos anos 70, nem bem tinha sete anos, pelo que pode recordar.

E agora, o baile do nosso querido folião!

E os pais, quase em coro, apontaram-lhe o fusca laranja, tirado semanas antes da concessionária, todo decorado de serpentina e confete. Nas mãos do pai, um colorido e sonoro reco-reco, roubando o silêncio da manhã que o sol do verão começava a esquentar. A mãe lhe entregou um pacotinho de confete, e girou com ele no colo, cantando mansamente em seus ouvidos:

“Ó, mas quanto riso!

Ó, quanta alegria!

Mais de mil palhaços no salão…”

A memória corta a cena já para a estrada. Ele segura forte um rolinho de serpentina, de onde sobra um pedaço desenrolado, quase se desprendendo enlouquecido pelo vento que entra forte pela janela do pai. Junto, vem um cheiro de eucalipto perfumar a liberdade da estrada. No rádio, ouvem um especial sobre antigas marchinhas de carnaval.

“Ó, mas quanto riso!

Ó, quanta alegria…”

É a que toca lá pelas tantas, e a mãe arregala os olhos num tipo de espanto feliz. Emenda a letra, pega-lhe os dedos, e mesmo no carro em velocidade imita movimentos de um salão de baile.

Agora, no quarto escuro, no limiar abafado da quarta-feira de cinzas, uma brisa de momento traz alívio apressado para o calor da noite. Não tem a força do vento da janela do fusca, não cheira a eucalipto de estrada, mas carrega saudade maior que a distância do passado.

*Publicada originalmente em fevereiro de 2010

Males a espantar*

Por SÍLVIO RIBAS
silvioribas.df@dabr.com.br

Em 1968, pouco depois do assassinato do pastor Martin Luther King e do presidenciável americano Bob Kennedy, o rei do rock, Elvis Aaron Presley (1935-1977) surpreendeu a todos ao gravar uma belíssima canção em homenagem aos dois líderes pacifistas. Procure na internet o vídeo dele cantando If I can dream. É de emocionar ouvir aquele hino gospel de forte conteúdo político, um clamor pelo fim das tensões raciais nos Estados Unidos. Sua súplica pela concórdia humana ainda é inspiradora e atualíssima.

Diante da covardia de bandidos, muitos deles adolescentes, contra alvos inocentes, dos massacres chapas-brancas, da perseguição aos gays na África e de tantas outras atrocidades mundo afora, não entendo por que os artistas de hoje abandonaram o papel de profetas da paz e da liberdade. Imagine, música gravada e lançada pelo beatle John Lennon (1940-1980) em 1971 nunca deixará, por exemplo, de ser manifesto antológico pela tolerância e fim definitivo da insanidade das guerras.

O ditado popular “quem canta os males espanta” serve bem ao individualismo, mas o grande mal a ser espantado requer o engajamento de celebridades e de formadores de opinião. Foi assim que os ataques ianques ao Vietnã terminaram. A fome da Etiópia só envergonhou o coletivo de nações após o embalo de We are the world (1985), hit liderado por Michael Jackson e entoado por uma constelação de outros 44 cantores pop.

Da última vez que falei nesse espaço das crescentes ansiedade e irritação dos brasileiros, com ataques gratuitos de fúria no trânsito e no entorno de estádios de futebol, um leitor me procurou para dizer que boas vibrações ajudariam a desanuviar esse horizonte. Receio, contudo, que, mesmo válidas e até desejáveis, tais iniciativas são insuficientes para tornar nossa vida mais segura e a sociedade mais fraterna. Será preciso agir de forma mais explícita.

Se Lennon ainda estivesse vivo, estaria deitando e rolando nas redes sociais ao lado de Yoko, Bono Vox e companhia, em prol do cessar fogo, do desarmamento e do amparo às vítimas de conflitos armados. Mas a esperança não acabou. Para mim, a melhor notícia da semana veio de Israel, onde muçulmanos sírios feridos pelas bombas e projéteis são acolhidos secretamente em hospitais do exército judeu. Esses e outros gritos de dor e de desespero precisam da sensibilidade de astros da música, cujas vozes poderiam acordar a humanidade.

 

* Publicado no Correio Braziliense em  27/02/2014

 

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