Sábado

A TV da barbearia está ligada em um jogo qualquer da terceria divisão e o barbeiro passa a navalha na sua nuca para fazer o pé do cabelo e conta uma daquelas piadas que de tão imorais fariam corar as quengas e os rufiões de outrora. Em seguida ele coloca o espelho atrás da sua cabeça para que você confira na imagem contraposta no espelho maior que está a sua frente se o trabalho dele está ok mas você espia rápido e fala tá ótimo porque foi pênalti no jogo da terceirona. Só que você não espera que exatamente no momento em que a bola será chutada da marca fatal o sujeito ensope seu cangote com uma loção azul esverdeada que é exatamente igual ao perfume do quarto de algum hotel que você não sabe qual foi nem onde é nem com quem dormiu nele. Só tem certeza que foi há muito tempo e numa cidade muito distante da que você mora e que lá você deixou pra sempre um pedaço maravilhoso da sua vida do seu coração dos seus sonhos planos e do seu corpo. E feliz coração bumbando desesperado tentando se lembrar você nem reparou que o pênalti foi chutado na trave e no rebote o zagueiro grosso que só ele deu um bico tão forte que a bola foi parar na arquibancada e que o barbeiro só está esperando você se levantar pagar a conta e dar lugar a outro freguês.

Continuo achando que notícia é mais importante que jornalista

O Globo Esporte, da TV Globo, está fazendo 35 anos. Sou de uma geração que saía correndo da escola para assistir ao Léo Batista apresentar as notícias do futebol. Na época do Flamengo do Zico, o Globo Esporte das segundas-feiras era, para mim, o mais saboroso dos programas de TV.

Hoje levaram ao ar uma edição especial de aniversário. Acharam por bem destacar a história de alguns apresentadores e repórteres que ao longo desse tempo apareceram na telinha falando de esportes na hora do almoço.

Peço perdão por ser ranzinza, mas não me despertou interesse assistir à entrevista que a apresentadora bonitona concedeu ao próprio Globo Esporte à época em que era campeã de bodyboard. Muito menos me comoveram as contingências em que foi feita a primeira reportagem a entrar no ar do outro jornalista, que hoje é um dos principais da emissora.

Como jornalista, ainda gosto mais de notícia do que da vida dos outros, e esperava que um programa especial sobre os 35 anos do Globo Esporte pudesse trazer uma retrospectiva do que de mais importante aconteceu em três décadas e meia. Passamos de tri a penta no futebol; deixamos de ser o país de alguns dos melhores pilotos de F1 e passamos a ser a pátria do vôlei. Vamos sediar uma Copa do Mundo e uma Olimpíada. Será que não há nada de importante a falar sobre isso no aniversário do programa?

Mais uma vez, peço perdão por ser ranzinza, mas é que ainda acho que os fatos que viram notícia são mais importantes do que nós, que produzimos notícias .

PS: Mudando de assunto. A dona do bar em que tomo café diariamente disse que todos os dias levam dali dois ou três frascos de adoçante, alguns já pela metade, inclusive. Como você acha que agiria uma pessoa que rouba um frasco de adoçante pela metade se estivesse no lugar do deputado e do senador aos quais, possivelmente, ela acusa de ladrão?

O primeiro dia dos pais

Quase não tenho memórias do meu primeiro dia dos pais. Sei que minha filha mais velha era bebê, estava beirando fazer um ano e ainda não andava. Portanto, tinha que caregá-la no colo, carrinho ou no tal bebê conforto, cujo nome correto deveria ser “papai desconforto”. Por causa dele, aliás, precisei aumentar a carga na musculação e fazer alongamento que nem gato.

A lembrança mais forte me remete a um único detalhe da festinha na creche onde a pequena havia sido matriculada. Era uma frase, sem assinatura, no painel do corredor principal: “Pai, pise firme! Eu seguirei os seus passos.”

Nunca descobri o autor, assim como jamais li qualquer outra coisa tão bela e significativa que se referisse à relação pai e filha(s), no meu caso. Consegue ser objetiva e ao mesmo tempo ampla em sua mensagem, enquanto que sua força está nos sentimentos de confiança e responsabilidade que carrega. O primeiro, da parte de quem fala. O segundo, do lado de quem ouve.

Ao ler a frase, me peguei chorando a ponto de pôr os óculos escuros para disfarçar. Metade das lágrimas, claro, era por causa do primeiro dia dos pais como pai. A outra metade – e ali só eu sabia disso – era por causa do primeiro dia dos pais do filho que meses antes ficara órfão. Órfão de pai.

Da série Coisas que passam pela cabeça da gente

É lá pelo meio da tarde, quando a vida merece um café bem brasileiro, coado no filtro de pano, que você se pega pensando que essa história de que dor e sofrimento renovam, reconstroem, matam o que era velho e tiram o novo da casca é verdade mesmo, finalmente não mentiram para você.

E aí, do nada e sem querer, você põe os olhos no uniforme da gari, que anônima varre a avenida principal, e dentro da sua cabeça já mudou a direção das suas ideias e você acaba achando que não deve realmente ser um sujeito normal, porque sua cor preferida é cor de abóbora, só que ainda mais berrante que o uniforme da moça.

Na metade da xícara bate uma certeza líquida, certa e comprovada de que agora, na metade dos 40, você tem muito mais coragem de viver do que tinha aos 20 e poucos anos. Na verdade, você era tão pretensioso quando tinha 20 e poucos anos que nem imaginava que as pessoas pudessem ser melhores aos 45.

Então, você paga o café, e voltando ao trabalho cumprimenta a moça, incansável com sua vassoura, e tudo continua passando pela sua cabeça, mas não necessariamente na ordem inicial.

Pequena crônica da dignidade

P/ Márcio Varella

O velho jornalista estacionou seu golzinho com quase dez anos de uso junto ao meio-fio. Morava no prédio em frente, em um sala – quarto em cima de uma loja de material de construção. Saiu do carro assoviando, e sem perder a melodia passou a chave na porta.

Nesse instante, parou ao lado um antigo colega de profissão. Abaixou o vidro elétrico do carrão importado zero quilômetro. Era famoso, mas poucos sabiam que cobrava para publicar notas em sua coluna ou para entrevistar políticos em seu programa de rádio. Também recebia uma “mesada” do governo do Estado, não para que se calasse, mas para que sempre amenizasse as críticas, abrandasse o tom dos comentários, omitisse detalhes cabeludos. Desse jeito, incomodava apenas dentro de um limite razoável para a autoridade e ainda passava, aos olhos do grande público, por jornalista combativo.

-Você continua o mesmo, hein?- e o bacana desdenhou, sorriso de carinho sonso sustentando a empáfia. – Há anos com seu carrinho e sua vida de pagar aluguel.

O velho jornalista, que vencera monstros piores, como o alcoolismo e a cocaína, continuou assoviando mais alguns segundos e parou. Sorriu seu conhecido riso debochado, jogou a chave pro alto, pegou-a de volta e respondeu, com escárnio contido e seu sotaque ítalo-paulistano.

-Pois é…mas quando deito a cabeça no travesseiro, eu durmo com tanta tranquilidade que você nem imagina como é. – jogou um beijinho sarcástico pro sujeito, deu as costas e foi embora.

O outro saiu cantando pneu.

Anjo

Para Renata Busch

Quando finalmente se conheceram fora do Feici, ela contou entusiasmada o quanto falavam bem dele. Como pessoa, como profissional. E despejava uma cascata volumosa de palavras, de um modo vibrante de quem acha mesmo que não apenas a vida, mas também as pessoas valem a pena.

E repetia que era encontrar gente que o conhecia, e lá vinha outra vez o certificado: bom amigo, sujeito de caráter.

-Eu me sentia roubada. – e riu, mexendo os braços em gestos largos.-Pô, todo mundo conhece esse cara, menos eu!- e suas mechas de mel despencavam longas em seu rosto, escondendo uns olhos de amêndoas tostadas.

Encabulado, ele, quando conseguiu afinal a palavra, ponderou:

-Olha, não é bem assim, sabe? Eu já fui chefe de seção e aí a gente não agrada todo mundo, com certeza tem uma meia dúzia por aí que me quer assado com um tomate na boca. Então, fica preparada, porque você pode topar com um deles e vai achar que não falam da mesma pessoa.

Mas ela não perdeu o rebolado, e com aquele jeito carioca de falar e jogar sambado o cabelo para trás, disse, sem nenhuma dúvida:

-Pois se alguém vier me falar mal de você, eu enfio a porrada!

E soltou uma gargalhada que encheu o ambiente.

Naquela noite, ele foi dormir pensando nuns tais anjos que a mãe falava quando ele era criança, uns anjos que nós, distraídos, muitas vezes nem notamos ao longo da vida, mas que, insistentes, sempre aparecem para nos resgatar dos braços da tristeza.

O bolo desigual da igualdade de Francisco I

A postura do Papa, ao não degolar a pessoa por sua opção sexual, causa boa impressão e talvez desperte a esperança tímida em mudanças, muito mais alardeadas, aliás, pela mídia e sua vocação para a idolatria do que propriamente por algo que Francisco tenha dito.

Mas quando o pontífice fala das mulheres, essa esperança se aquieta e pensa em voltar a dormir.

O mais novo bem amado de uma nação eternamente em busca de um salvador é categórico: sacerdócio não é coisa de mulher.

Fico sabendo que a Igreja desconsidera a batina para as mulheres porque Jesus só escolheu homens como apóstolos.

Penso que é no mínimo a velha e desacreditada tentativa de impor como única a versão oficial da história. O papel que a mulher desempenhou no cristianismo, a começar por Maria Madalena, é certamente algo abafado por uma instituição que, historicamente, sempre esteve ladeada pelo poder, e na maioria das vezes a serviço da opressão.

Qual prova definitiva há de que o Evangelho não foi também escrito e pregado por mulheres? Seria o desconhecimento da existência de algum texto que leve a história a caminhar nesse sentido? É pouco para comprovar algo que o domínio da batina sempre se esforçou em mostrar como verdade absoluta.

A frase “sacerdócio não é para mulheres” é escrita com a mesma tinta e caligrafia que se escreve “lugar de mulher é na cozinha”.

As declarações de Francisco I sobre os homossexuais até podem sugerir igualdade entre as pessoas, mas igualdade é que nem bolo em casa de família: todo mundo tem direito a uma fatia.

Quem explica, quem entende?

Me diga, beibi,
como é apoiar a Marcha das Vadias
gritar fora Renan fora Sarney
que não não é só pelos 20 centavos
tucanos nunca mais
ser tão pós graduada
com projeto de mestrado
sonhos de doutorado
e acatar esse jeito
“sinhozinho de fazenda” do seu namorado?

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