O poeta que chupa laranjas

Livro Alexandre Brandão

Neném prancha, folclórico técnico de futebol de praia, dizia que Didi, um dos monstros que no passado vestiram uma outrora respeitada e temida camisa amarela, jogava bola como quem chupava laranja.

Queria dizer que Didi fazia a coisa certa, com beleza e maestria, se livrava dos adversários de modo simples, sem inventar e, consequentemente, sem se complicar.

Estou há algum tempo aqui para dizer que o Alexandre Brandão faz do mesmo jeito: escreve, muitas vezes sobre assuntos cabeludos, mas de maneira simples, sem perder, em momento algum, a elegância e a beleza.

Acho que ele escreve poesia como quem chupa laranja.

Literatura só presta se “cortar o coração” (ou lembrete a nós, modernos)

Éramos seis

Nos dias de hoje, certamente Maria José Dupré teria que escrever de modo diferente seu maior sucesso e um dos maiores sucessos da literatura brasileira.

Consigo imaginar críticos taxando de excessos e pieguices vários trechos de Éramos Seis, e também autores que ministram oficinas de escrita criativa mandando que ela reescrevesse tudo.

Lendo com os olhos da literatura de hoje esse clássico, que este ano completa 80 anos da primeira edição, minha inclinação é dar razão aos meus colegas contemporâneos, mas há um elemento crucial em Éramos Seis que faz com que a obra sobreviva a todas essas décadas e que, certamente, a manterá viva por outras que virão.

O livro mais famoso dessa autora, cuja literatura infanto-juvenil marcou a iniciação de muitos leitores, “corta o coração”, como talvez dissesse a própria Dona Lola, narradora e personagem principal da história de uma família de classe média baixa de São Paulo.

E se não “cortar o coração”, literatura não presta, não serve para nada, mesmo que utilize as mais modernas, ousadas e inovadoras técnicas de escrita.

Puxado demais

OIP

A TV Globo anuncia que o sonegador de imposto vai jogar contra a Coréia.

A notícia é ovacionada pelos comentaristas e locutor, como se o sujeito fosse um grande herói que lutasse por uma causa de justiça e paz.

O dinheiro que ele deve aos cofres públicos é uma verdadeira fortuna.

Quanta escola e hospital e pesquisa científica e vacina poderiam ser erguidas, financiadas e compradas com o valor devido.

Para encerrar, é bom lembrar que o rapazinho declarou voto no sujeito que riu e debochou de gente morrendo sem ar.

Fiquem à vontade para torcer por essa seleção.

Para mim é puxado.

Um país que se autoexplica

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A foto é de uma loja do Pier 21, shopping center à beira do Lago Paranoá, em Brasília.

Exatamente aí funcionava até um ano atrás a Livraria Leitura.

Comprei muitos livros aí, inclusive para minhas filhas, e também CDs, no tempo em que se compravam CDs.

Agora, em vez de livros, o que se vende são aqueles enfeites de Natal cafonas, bonecas e bonecos vestidos de lã ou casinhas com telhados cheios de neve, remetendo a uma comemoração que nada tem a ver com a nossa, de país tropical no início do verão.

Menos mal que o nome da loja é em português, não completaram a cafonice chamando de Christmas Dream.

Em todo o caso, um lugar que era livraria virar loja de enfeite de Natal explica direitinho o país em que a gente vive e, em especial, o Brasil de 2016 para cá.

Melhor prevenir do que remediar

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Esse fascistinha estuda no Centro Educacional Leonardo da Vinci, na Asa Norte, área nobre de Brasília, portanto, escola de gente de classe média, branca, que come bem e mora bem.

Estou pondo aqui o nome da escola, porque a matéria do Metrópoles não diz, ao contrário do que provavelmente aconteceria se o caso houvesse acontecido em uma escola pública na periferia da capital do país.

Esse pequeno nazista é reincidente, pelo que me disseram e pelo que a própria matéria informa.
Se houvesse sido expulso na primeira vez em que fez apologia à barbárie, não teria feito de novo e nem incentivado outros meliantes a fazerem o mesmo.

Exatamente o que deveria ter acontecido quando um certo deputado enalteceu publicamente um torturador que colocava ratos na vagina das presas políticas.

Se tivesse sido processado, condenado e preso, não teria virado presidente da república.

Útil e ideológico

Urna

Na eleição de 2018, comecei a campanha indeciso entre Ciro e Haddad, até que optei pelo Haddad.

Mas eis que, na véspera do 1° turno, saiu Data Folha dizendo que o Ciro era quem tinha mais condição de vencer o senhor das trevas no 2° turno, embora estivesse, como agora, em 3° nas pesquisas.

Nem pestanejei: cravei Ciro com convicção, ou melhor, com convicção útil.

Haddad foi pro 2° turno e meu voto, que era útil, voltou a ser ideológico.

Quatro anos depois, meu voto será novamente ideológico e novamente útil.

Ideológico para que o país se reencontre com a paz, com a democracia, com a tentativa de se fazer justiça social, com a preservação do meio-ambiente, com o respeito e a credibilidade internacionais.

E útil para que a eleição acabe no próximo domingo.

Meu medo mora no STF

Charge da imprensa Austríaca
Charge da imprensa Austríaca

Meu maior medo da reeleição do (des)governo que aí está mora no STF.

O Supremo não é perfeito, afinal é formado por seres humanos, mas, mal ou bem, tem posto freios nos desvarios golpistas do Executivo.

Não à toa é o principal alvo do ódio do fascista e dos fascistas que o veneram.

Se reeleito, Bolsonaro indicará, já no ano que vem, dois novos ministros para a Suprema Corte.

Se você acompanha noticiário em vez de se informar pelo grupo de zap, sabe que os dois ministros até agora indicados por ele não contrariam em nada suas vontades na hora de decidir seus votos.

O STF possui 11 ministros. Com mais dois, já será próximo da metade o número de indicados por ele, sem falar que ele tem a prerrogativa de também indicar ministros do STJ e de outros tribunais superiores.

Sentiu o perigo que corremos com sua reeleição?

Aliás, apenas mais um dos perigos.

Pense nisso no primeiro turno.

Dica

A Guerra Invisível

Considero importante tudo que jogue luz sobre a história do Brasil, esse vácuo nebuloso no conhecimento do brasileiro médio.

É isso que faz A Guerra Invisível, de Ana Maria Lopes, poeta de mão cheia e que agora se aventura na prosa, enfrentando nada menos do que um romance, e nada menos do que um romance histórico.

A partir de pesquisa muito bem feita, condição básica para se criar uma ficção a partir de um fato real, Ana Maria Lopes escarafuncha A Guerra do Paraguai, um dos episódios mais controversos de nosso passado, cuja explicação para motivos e razões já está na terceira versão de historiadores. Esta promete ser definitiva, mas, sabe-se lá.

Em seu livro, Ana Maria Lopes não foi atrás dos motivos, e sim de um lado ainda mais desconhecido do maior conflito em que o Brasil se envolveu.

Em a Guerra Invisível ela conta como foi a participação das mulheres na guerra, tanto brasileiras quanto paraguaias, mostrando de que forma elas se envolveram e testemunharam a barbárie iniciada pelo ditador Solano Lopez, mas que virou massacre pela ação da tríplice aliança, com requintes de crueldade e covardia do exército brasileiro, inclusive para com as mulheres do país inimigo.

O mais interessante é que a trama do livro parte de uma ardente e apaixonada história de amor.

Se o final é feliz? Bem, é um livro sobre guerra.

Domingo de samba aqui em casa

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Samba não é a minha praia, mas hoje escutei com prazer o CD Papo de Boteco, de Leonardo Almeida Filho e Paulo Sá.

O disco não é novo, é de 2017, mas para mim é lançamento, pois não o conhecia e ganhei do LAF cerca de dez dias atrás.

É aí que se nota a diferença entre um disco muito bem feito, com técnica e talento, e as coisas homogêneas, todas iguais que empesteiam rádios, aplicativos e plataformas, com a desculpa de que é o que o povão gosta.

Os arranjos, as harmonias e as letras das 13 canções fizeram com que, neste domingo trancado em casa, eu escutasse com prazer um disco de samba, que flerta com brilho também com a bossa nova e canções de motivos africanos, sempre tão importantes de se manter em evidência nesse país de maioria preta e africana.

Se o LAF metesse a mão num sertanojo, sei lá, capaz até de eu querer escutar.

Além de compositor, LAF é poeta e romancista, e sobre alguns de seus livros já falei (muito bem) por aqui.

Ele é o que aparece na capa com o violão, vestindo o manto sagrado e também a camisa do Vasco (neste último caso, quanto sacrifício pela arte, meu Deus!) e atrás do balcão. Paulo Sá, obviamente, compõe o resto da cena.

Esse disco é a cara da gravadora Biscoito Fino, que prima pela qualidade do catálogo.

Será que não escutaram?

Realmente, morar em Brasília tira completamente do artista a possibilidade de uma vitrine maior.

Quem chegou até aqui, deve estar se perguntando por que afinal de contas esse cara, que não gosta de samba, tá trancado domingo em casa, escutando um disco de samba, que nem lançamento é?

É que após dois anos e meio de invencibilidade, a cidadela caiu: peguei COVID.

Dei bobeira na semana passada em um lugar em que não deveria ter tirado a máscara, tenho certeza de que foi isso.

No mais, digo que somente com quatro doses de vacina – e só assim – essa maldita doença realmente é apenas uma gripezinha.

Cuidem-se!

O Jesus autêntico de Frei Betto

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O grande mérito de Um Homem Chamado Jesus é não ser um livro religioso, ainda mais se levarmos em conta que foi escrito por um padre.

O que interessa a Frei Betto não é catequese, é o Jesus histórico, o que viveu entre e pelos pobres e os marginalizados, tornando-se o maior vulto, se não da humanidade, mas ao menos da história ocidental.

O Jesus de Frei Betto, que, creio com minha fé cristã, é o autêntico, morreu pelo motivo simples de se opor à hipocrisia da falsa moralidade, em que leis, rituais, dinheiro e poder estavam acima da vida humana.

Não teria fim diferente na atualidade em certo país do hemisfério sul, onde milhões que se dizem seus seguidores copiam a hipocrisia que imperava em Jerusalém 21 séculos atrás.

Outro detalhe interessante do Jesus descrito por Frei Betto é a figura extremamente humana de alguém a que se atribui divindade.

Nas páginas de Frei Betto, Jesus se alegra, se chateia, sente tédio, chega a se irritar, gosta de festa e é um bom garfo (come bastante carne, inclusive).

A diferença é sua moderação, seu equilíbrio, sua sabedoria, sua coerência entre o que dizia e o que fazia e, acima de tudo, seus extremos amor e misericórdia para com o próximo.

Era isso que o levava à divindade, a mesma que ele dizia que poderíamos alcançar, mas que, por ora, dela nos mantemos (bem) distantes.

Com um texto elegante, objetivo, claro e bem escrito, Frei Betto acaba evangelizando, mas com literatura de qualidade.

Apenas dois pontos me decepcionaram.

O primeiro é a manutenção da versão bíblica de que Jesus não nasceu de uma concepção normal, como nascem as pessoas de carne e osso, como ele era.

E o segundo é o papel totalmente secundário de Maria Madalena, que praticamente não aparece na obra (menos mal que na história ela não é uma prostituta arrependida).

Mas tudo bem. Frei Betto, em que pese toda sua visão progressista e humanitária, é um padre.

A divindade é do personagem principal de seu livro.

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