Estatística contra o pré-julgamento

Trabalho no Setor Comercial Sul, em Brasília, área da capital do país onde se aglomeram centenas de usuários de crack.

São chamados de cracudos por quem trabalha na região. A palavra carrega muitas vezes deboche, outras repugnância, mas na maioria dos casos é empregada automaticamente, por costume, não possui viés negativo. Muito menos positivo.

Independentemente disso, designa pessoas que perderam, em boa parte, não apenas a noção do que é um lar, do que é família, escola, trabalho. Perderam a própria referência de quem são, quiçá nem lembrem mais o próprio nome.

É chegarem perto, e todos,  na ojeriza que cada um de nós nutre por quem a sociedade virou as costas, protegem carteiras, relógios e smartphones. É raro um olhar de misericórdia, sentimento cada dia mais escondido nas gavetas do individualismo.

O normal é o julgamento, sempre no mesmo padrão, desprovido de conhecimento do mundo particular de cada um desses miseráveis: tá nessa vida por que quer!

Pois bem.  Uma pesquisa da Defensoria pública do Rio revelou que somente 13% dos moradores de rua são analfabetos, 65% não bebem e 62% não usam drogas (veja detalhes na revista Pragmatismo Político http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/05/maioria-da-populacao-de-rua-nao-bebe-nem-se-droga-aponta-estudo.html ).

Os números servem não apenas para que o Estado, e aí não reúno só governos, mas médicos, sociólogos, etc, pare para pensar porque realmente essas pessoas preferem o desalento da rua do à segurança de um lar. Servem, num primeiro momento, para que nós abandonemos essa nossa insistência em pré-julgar tudo e todos que não estejam de acordo com o que entendemos por correto.

Não é por aí

Recebo a notícia de que um casal gay entrou em um templo evangélico este fim de semana e começou a se beijar.

Provocaram indignação no fieis, naturalmente, mas é possível que a intenção tenha sido outra: serem escorraçados e de lá saírem bradando que foram vítimas de preconceito.

Não lograram êxito, pois, para a sorte da civilidade, a informação é que a situação foi contornada com gentileza por um dos administradores da igreja (Assembleia de Deus).

É claro que se trata de um caso isolado, mas penso que o movimento gay ganharia muito vindo a público condenar qualquer tipo de provocação.

Não é espicaçando os contrários que se consegue aprovação para ideias e comportamentos. Pior, há o risco de se angariar a antipatia de quem se mantinha neutro na polêmica, e que levado por um bom discurso poderia oferecer sua adesão.

Sou heterossexual totalmente favorável à união civil dos homossexuais e à adoção de crianças por casais gays, caso tenham condições materiais, emocionais e morais para isso. Mas um gesto assim só adensa o vozerio de quem é visceralmente contra, forma como se manifesta a maioria dos evangélicos que conheço.

Alguém imagina o efeito de um pastor invadindo uma boate gay para pregar a Bíblia?

Provocação pode instigar o ódio, que é o preconceito amplificado. E não se consegue uma sociedade justa, na qual todos, inclusive os gays, tenham seus direitos reconhecidos, quando ferve o caldeirão do ódio.

A tediosa juventude de hoje

O caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo de hoje, traz uma pequena reportagem sobre o filme Somos tão Jovens, do cineasta Antônio Carlos da Fontoura.

O jornal mostra, sem tom de crítica, que algumas passagens da vida de Renato Russo foram mudadas ou condensadas para que “coubessem” melhor na telona. Isso é normal no cinema.

Uma delas é, a meu ver, a melhor cena do filme: quando a ainda incipiente Legião Urbana toca no interior de Minas a música Que país é este? de frente para um palanque coalhado de militares, que à época ainda davam as cartas.

Segundo a matéria, a música tocada não foi essa, e sim Música Urbana, que pode não ter uma pegada tão firme, mas tem letra de mesma contundência.

A matéria, assinada pelo jornalista Iuri de Castro Tôrres, revela que tanto a Legião quanto a Plebe Rude – que também tocou no mesmo dia – foram parar na delegacia depois do show. O fato foi omitido do filme, a meu ver um pecado sem desculpa.

A cena do show e a cara contrariada dos milicos (aqui uso a palavra pejorativamente, pois para mim denota os que não honraram a farda) resumem o que foi uma geração crescida à sombra de um contato mais ou menos próximo com a repressão e o terror, dependendo de cada caso.

Alienados existiam, naquela e em todas as gerações. No próprio círculo de amigos de Renato, ele parece ser o único inquietado com as mazelas de um país injusto, em que não se podia falar das injustiças.

Mas, olhando pros dias de hoje, me parece que 30, 35 anos atrás havia mais Renatos Russos, não pelo talento, mas pela postura indignada, e que no caso de alguma capacidade de expressão, usavam isso para, ao menos, sacudir a poeira da mesmice, ou em definição mais lírica, cumprir o papel de ser jovem no mundo.

Renato tinha 20 anos na época, mesma idade em que atualmente as pessoas, ao menos em Brasília, palco da história inicial do astro, estão trancadas em casa ou em salas de aula para passarem em concursos públicos e garantirem a comodidade de uma vida estável, pensando não apenas na própria aposentadoria, mas na dos filhos que nem vieram ainda.

Tédio com T bem grande pra você!, juventude do terceiro milênio!

Os extintos rompantes de torcedor

Por diversas vezes, quando o domingo corria alto, decidi ir ao Maracanã de supetão, sem programar nada. Ou porque algum colega chamava, ou porque batia aquela comichão repentina de torcedor com sexto sentido que pressente que aquele é o dia do time.

A diversas vitórias do Flamengo assisti após um rompante de ir ao velho Maraca (não esse aí, sem personalidade, com o nome nojentinho de arena) quando já tomava o cafezinho depois do almoço. Presenciei derrotas também, mas é da vida. De torcedor.

Em boa parte isso era permitido pelo preço dos ingressos. O bilhete de uma partida comum, de meio do campeonato, custava hoje o equivalente a R$ 10, R$ 20. Muitas vezes havia tumulto na compra, mas nada comparável à espera de quatro horas na fila que acontece neste momento em um shopping de Brasília para os torcedores que querem ir a Flamengo e Santos (25/5), jogo que deve mensurar se o novo Estádio Mané Garrincha segura mesmo o tranco das Copas da Confederação e do Mundo.

Mas o que me espanta mais – e me indigna – é o preço: R$ 80 a meia entrada do ingresso mais barato. O mais salgado chega a R$ 400. Parece até que de um lado estarão o Santos de Pelé e do outro, o Flamengo de Zico.

A exemplo do desfile das escolas de samba, cuja origem de espetáculo do povo e para o povo se perdeu há dezenas de carnavais, o futebol se distancia e se distanciará cada vez mais da população média brasileira (não da de Brasília, nossa Ilha da fantasia).

Acho que quase ninguém com aquele antigo perfil de torcedor tem 80 pratas para sacar de chofre, no fim de um almoço de domingo. Além disso, será preciso decidir com quase duas semanas de antecedência se irá ou não ao estádio. A delícia inesperada de ver ao vivo o time ganhar (ou a frustração de vê-lo perder) não cabe mais no futebol.

O Jornal Nacional e a Abolição

Interessante a reportagem exibida pelo Jornal Nacional de Ontem (13), dia que marcou os 125 anos da Abolição da Escravatura.

Resumiu-se em cerca de dois minutos o cenário em que se deu a libertação dos negros no Brasil. A matéria procurou tirar as luzes de cima da Família Real e explicar rapidamente que outras forças foram as responsáveis por abrir as senzalas.

Citou algumas províNcias do Império, como o Ceará, onde os negros já estavam livres antes do 13 de maio, mas não se preocupou em lembrar os motivos econômicos que moveram tal antecipação. Muito menos foi citado o incentivo da Inglaterra com sua pressão para criar mercado consumidor.

Mas é sempre válido quando a TV, mesmo que na sua peculiar superficialidade – e aí trata-se de característica do veículo, e não de uma emissora – leva à audiência um pouco da história do Brasil. Entende-se o presente quando o passado é conhecido, e essa frase não é minha.

Só que antes, abrindo o Jornal Nacional, foi exibida a reportagem sobre um menino de 12 anos – negro – que assaltou uma residência e foi pego pela Polícia. Fez-se um paralelo a outro caso de menor envolvido com o crime, só que nos EUA, deixando claro que lá o garoto vai pra cadeia e aqui não. Houve preocupação em mostrar as condições sociais em que vivem as duas crianças, em países diferentes? Não, nenhuma. Pouco jornalismo, muita propaganda da redução da maioridade penal.

O objeto da primeira reportagem – menino negro, de 12 anos, assaltante – é fruto do que não foi mostrado na reportagem sobre a Abolição: a forma como os libertos foram entregues à própria sorte, com suas cartas de alforria nas mãos, na falta de planejamento que caracteriza o Brasil em mais de cinco séculos.

Mas reconheço de pronto que é querer demais que uma matéria de telejornal tenha contextualização e enfoque sociológico, ainda mais quando vai contra à filosofia da emissora.

Esquerda e direita ainda existem sim

Por causa das mudanças na ordem mundial nos últimos 20 e poucos anos, tem se buscado estabelecer como espécie de senso comum a ideia de que não existe mais esquerda nem direita nem no mundo nem no Brasil.

Nunca fui filiado a partidos, sequer algum dia fiz campanha política em nível pessoal. Meu máximo é sempre declarar meu voto abertamente, até para que isso sirva de pretexto para discussão.

Mas me considero um sujeito de esquerda.

Isso porque permaneço defendendo ideias que, historicamente, foram defendidas pela esquerda, me contrapondo, consequentemente, a posturas adotadas pelo lado contrário. E esse lado oposto continua, por sua vez, dono de posições bem claras, conceituadas e consolidadas ao longo da história como de uma determinada corrente de pensamento.

Como, então, não existe mais nem um lado nem outro?

Por que, então, continuo pensando totalmente diferente de quem, por exemplo, aposta na onipresença da economia de mercado em todo e qualquer setor da vida do cidadão?

A tentativa de apagar a linha divisória entre correntes ideológicas sempre aparece maquiada de desilusão política, mas por debaixo dessas tintas talvez carregue o objetivo maior de despolitizar a sociedade, começando pelas que estão realmente desiludidas politicamente, como a brasileira.

E sociedade despolitizada só interessa a quem detém o poder, seja qual for a instância (inclusive a da mídia).

E esse interesse independe de qual lado esteja mandando.

O debate emocional da maioridade penal

Um dos membros de uma família de tradição sindical e de fundadores do PT é assaltado por dois adolescentes. Levam o carro, a bolsa, todos os documentos e cartões. Ameaçam com uma arma. Felizmente a integridade física é preservada.

No dia seguinte, me pedem que faça campanha pela redução da maioridade penal. Eu já esperava. O debate sobre o assunto se inicia sempre no calor do trauma. E entendo que seja assim. Assim como aceito até o principal argumento técnico dos que defendem a redução: sabendo que podem ser condenados, os que têm menos de dezoito anos vão pensar duas vezes antes de cometer um crime.

Mas aí acho que já começa o problema: Polícia investigando com competência, Justiça condenando rapidamente. Bem, se o bandido for preto e pobre, é possível que aconteça. Se for branco e rico, é difícil que a redução atinja resultados concretos.

Se a perspectiva da condenação intimidasse, não haveria criminalidade nem aos dezesseis nem aos dezoito nem aos trinta nem aos cinquenta. O ser humano vai para o lado errado da vida por razões que não cabem aqui. E quando falamos em condenação, temos em mente locais que realmente recuperam infratores? Isso existe no seu país? No meu, não.

Reduzir a maioridade penal só valerá a pena em um cenário de escola forte, professor respeitado e bem pago, educação que ponha jovens competitivos no mercado de trabalho, além de programas sociais que façam frente às ilusões que a vida do crime oferece aos delinquentes.

A tudo isso acrescento os pais assumindo de verdade seu papel na sociedade e cuidando pessoalmente da educação de seus filhos.

Tomadas todas essas providências, acho pouco provável que haja a necessidade de redução da maioridade penal.

A moça da mesa ao lado

Uma das moças na mesa ao lado no restaurante espera a irmã, que demora um pouco. É domingo, faz sol e elas são bem jovens. Portanto, a espera não incomoda.
A irmã chega fazendo cara de lamento e pergunta “Sabe aquele casaquinho que você me emprestou?”. Embora não perca a tranquilidade, a outra já sabe que boa coisa não aconteceu. “Pois é, fui lavar e ele ficou assim e assim”, e detalha o estrago, se desmanchando em pedidos de desculpas.
A dona do casaco não se abala. Dá de ombros, “tudo bem”, e ela diz que tem vários, não vai fazer falta.
É claro que esse comportamento é traço de sua personalidade, mas fico pensando que nele deve haver muito da educação dada pelos pais.
É possível que tenham ensinado que não vale a pena privar-se da paz de um domingo ensolarado por causa de coisas sem muita importância, mesmo que às vezes sejam até maiores e mais valiosas que um casaco.
É provável também que tenham cultivado nas filhas o sentimento de não competição, a não quererem, a qualquer custo e de todo o modo, ser sempre melhor do que a outra, do que os outros em todos os lugares e ocasiões.
Acho que se educarmos nossos filhos assim, no lugar do conflito teremos a harmonia; no da vingança, o perdão, e a amizade substituirá, certamente, a rivalidade.
Quando nos dermos conta, no futuro, teremos contribuído para um mundo melhor.
Aliás, na casa daquelas duas irmãs do restaurante, o mundo certamente deve ser um pouco melhor.

O lixo do passado

Os anos 1980 foram tempos de intensa e valorosa produção musical. Quem viveu a época sabe bem disso.

O vigor pode não ter sido o mesmo dos anos 60, nem o virtuosismo igual ao da década seguinte, mas foram dez anos em que se consolidaram bandas como U2, The Police e Dire Straits, me restringindo às mais conhecidas e à seara que domino – o rock. Isso sem falar das que brotaram do movimento punk e daquilo que se chamava à época de movimento dark, algo muito mais ligado à vitrine de butique do que à música propriamente dita.

Por aqui tínhamos o Rock Brasil, um dos mais importantes movimentos da música brasileira (foi sim, senhor! Por que não?) e na MPB nossos medalhões ainda mandavam muito bem: Caetano, com Podres Poderes; Gil, com Tempo Rei, Chico, com Vai Passar e Milton, com Caçador de Mim.

Mas como em toda época, a indústria cultural também produziu seu lixo.

E eis que recebo mais um convite para uma “Festa anos 80”. Nunca me entusiasmei com esse tipo de evento, e já desconfiava por que. Na última, soube que tocaram Lua de Cristal e Konga Konga. Cristalizei, então, minha convicção de que jamais irei a uma festa que reviva – de forma equivocada – o embalo da minha geração.

Talvez quem organize essa festa fosse bem criança – ou nem nascido era – na década de 80 para saber que se esse tipo de música tocasse em uma festa, o DJ seria apedrejado.

Mas talvez a intenção seja a mesma que há em relação à música de agora: valorizar o ruim, o grotesco.

Mas não é necessário trazer para agora o lixo dos anos 80. A década de 2 mil produziu e a atual o produz em boa quantidade.

Em tempo: se houver, não me chamem para nenhuma festa dos anos 90.

A ameaça de uma ditadura religiosa

Talvez exista mesmo em curso uma ameaça à liberdade de expressão, mas que não parte da intenção de se estabelecer um marco regulatório da comunicação, como prega a paranoia dos mandatários da mídia.

Penso que é mais preocupante a Proposta de Emenda Constitucional que estende às entidades religiosas a prerrogativa de propor mudanças na Constituição.

Isso ameaça o estado laico, muro importante que nos separa de algo que foi crucial para o atraso da humanidade: a interferência da igreja no estado, ou em alguns casos, a submissão deste àquela.

E quando digo igreja, não me refiro a nenhuma religião específica, mas às religiões como um todo, como pensamento político e único viés de se interpretar os fatos, a sociedade, a vida.

Católicos e evangélicos estão praticamente dividindo as opções religiosas dos brasileiros. Contudo, estes últimos me parecem mais empenhados e fervorosos na propagação de sua crença. Como conheço vários evangélicos – e também católicos – cuja lucidez não se ajoelha perante a fé, tenho esperança de que haja, dentro dos próprios templos, reação ao enfraquecimento da laicidade do estado.

Do contrário, enxergo mesmo a possibilidade de uma nova ditadura se estabelecer no país, não a partir de um golpe deflagrado em determinada data, como foi 31 de março de 1964, mas aos poucos, dia após dia, na escalada de um pensamento calcado no fundamentalismo se infiltrando nos parlamentos, nos tribunais de Justiça, nos palácios do executivo, descartando qualquer um que lhe seja contrário. E aí, não apenas a liberdade de expressão estará ameaçada, mas o próprio Estado de direito.

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