Criança como se era

Cerca de um mês atrás, ganhei da própria Ana Cristina Melo seu livro infanto-juvenil Caixa de Desejos. Aberto o envelope, ele ficou na mesa do computador, engrossando a pilha dos livros a serem lidos, e que se forma pelo nosso desleixo. Aguardou humilde e pacientemente sua hora de ser lido, não usou seu pistolão – minha amizade virtual com a autora – para obter qualquer preferência na fila.

Até que, já de bagagem nas mãos rumo ao aeroporto – a porta do apartamento aberta, o táxi esperando – “convidei-o” para ir ao Rio no último feriado. Afinal, carregar um tijolaço como Os miseráveis – que estou relendo – não é lá muito cômodo quando se “pica a mula” com três crianças pequenas e mais sei lá quantas malas. Esbelto, o livro de minha amiga embarcou comigo.   

Caixa de Desejos é aquele tipo de livro que encurta uma viagem de avião, e não nos deixa lembrar da revista de bordo da Gol. De forma ágil, Ana Cristina Melo conta a história de Marília, uma pré-adolescente que cultua a memória da avó e é apaixonada pelos livros – lê e escreve compulsivamente, como fazemos nos verdes anos. De quebra, ganha logo no início da história uma meia-irmã que ela não conhecia.

O acerto do texto é não descambar para um vocabulário que compusesse não um personagem, mas sim um estereótipo. Marília – nome histórico em nossa literatura – não fala “caraca véi” em momento algum. O texto é simples e acessível à faixa etária a que o livro se destina, sem que com isso precise “desensinar” os leitores a falar e a escrever.

Mas o grande mérito de Caixa de Desejos está na própria personagem. Marília conquista muito mais pelo que não é, do que propriamente pelo que é. É bem saudável haver na literatura infanto-juvenil uma menina que vive a sua própria idade, sem a obrigação necessária de se tornar adulta e mulher fatal antes da hora. Marília não pinta a cara, não usa batom, não se equilibra em sapatos de saltos altos. Os cabelos de Marília são os cabelos de uma menina de seus onze, doze anos: neles, a sociedade doente não a obrigou a chapinha, alisamento ou escova definitiva. Marília não envelheceu antes da hora, sua sexualidade virá de acordo com a natureza, e não imposta pela mídia. Marília também não bate pernas em shopping, não é viciada no MaCdonald’s. Alegre, espera o bolo de laranja da mãe no final da tarde, coisa de um tempo em que ser criança, era apenas ser criança.

De volta a Brasília, Caixa de Desejos foi para a estante, em lugar honroso, esperar, com a altivez dos bons livros, que minha filha mais velha tenha a idade de lê-lo. Enquanto isso, vou me esforçando, nadando contra a corrente para que minha pequena tenha muito de Marília.

6 comentários em “Criança como se era”

  1. Raquel Madeira

    Eu li o primeiro capítulo deste livro e achei muito legal. Bem o que você descreve.

  2. Dagmar Bandeira e Silva

    André, não só concordei com sua percepção e análise do texto da Ana Cristina Melo, como adorei a sua elegância e creatividade ao se referir ao livro, propriamente dito. Também o li e adorei.

  3. Tomaz Adour

    Eu não escreveria tão bem. Me deu vontade de ler de novo este que é um dos melhores livros para todas as idades.

  4. André,
    você além de um ótimo contista é um leitor de grande sensibilidade. A Marília que você captou é belíssima.
    Obrigada pela linda resenha.
    Bjs

  5. Em tempos da “Vampirada” aqui na biblioteca do C.E. Visconde de Cairu vamos garimpando as Marílias de Ana Cristina Melo. Boa literatura existe Basta ser bem divulgada pelo bom jornalista e contista e poeta e pai e…

  6. angela giorgio

    Muuuuuito legal !!!
    Vontade de ler… pq meu neto + velho tbm terá q esperar… Vai ganhar “O Menino Maluquinho ” pelo dia das crianças, bem atrasado, por sinal…rsrs

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