Dentinho

Dentre as tantas lembranças que a toda hora saltavam o muro da memória da infância para as ruas da idade adulta, estava a do pai arrancando seus pequeninos e molengos dentes-de-leite. Para o velho, era tarefa simples, tal como cuspir caroços depois da bocada na melancia. Vinha com linha de costura mesmo, longe de qualquer neurose asséptica. Enlaçava o dente que cambaleava feito bêbado, e para o garoto que contraía os bracinhos por causa de alguma possibilidade de dor, fazia gracejos, dizia piadas bobas que até hoje se contam aos pequenos. Quando o menino dava por si, lá estava o dente rodando no ar, amarrado à linha ruborizada de sangue e molhada de saliva. O pai, então, punha sobre o buraquinho na gengiva um pequeno chumaço de algodão seco para estancar o sangramento. Mas o serviço só estava completo quando dava uns tapinhas no rosto do filho e dizia: parece uma velha banguela.

Agora, há quatro dias a filha o perseguia pela casa: papai, papai, meu dente tá mole, e quando ele parava para ver, ela fazia uma careta mostrando as gengivas, e com o dedinho cutucava o dente que se despedia. Meio por pressa, e um tanto por receio, se escusava: ainda não tá na hora, e desaparecia em algum compromisso do dia.

Mas naquela noite, não houve jeito. A filha o escorou no corredor entre os quartos, e cobrou dele, com a firmeza das criaturinhas de seis anos: pai, hoje você tem que arrancar meu dente. E mostrou as duas arcadas trincadas, o dentinho indo e voltando na ponta do pequeno dedo.

Ele reparou nos três outros espaços vagos. A mãe, a avó e até a babá já haviam feito o serviço do qual até aquele momento ele fugia.

E como os tempos mudaram a consciência das pessoas sobre pequenas coisas simples, foi ao banheiro e pegou fio dental, álcool e algodão. Limpou as mãos, partiu o fio, fez um laço e tentou passá-lo em volta do dente, que mesmo sem sair do lugar, escapou três ou quatro vezes. A menina se contraindo de medo dificultava o trabalho. Ela não acreditava quando ele dizia que não iria doer nada. Ele também não acreditava no pai.

Até que o laço pegou, estava pronto, era só puxar. E como alguém que pula o alto de uma escada sem pensar muito bem no que está fazendo, ele deu súbito golpe com o fio e, ato contínuo, ficou olhando o dentinho balançar no espaço, dependurado. A filha gritou, mais por susto que por dor. Ficou de boca aberta, um pouco de sangue escorrendo da gengiva, pedindo algodão para colocar no mais novo buraquinho da boca. Ele ergueu um pouco mais o dente e o fio dental avermelhado, como quem contempla um pequeno troféu. Olhou para ela: parece uma velha banguela, e sentiu-se um pouco mais pai depois daquilo.

2 comentários em “Dentinho”

  1. Parabéns, linda crônica! São esses pequenos acontecimentos que engrandecem as nossas vidas!

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