Dia normal.

Entrou em casa e a TV estava ligada, mas sem ninguém vendo. A mulher deveria estar na cozinha, as filhas lá para dentro, no quarto. O repórter falava da renúncia do governador. Falavam disso desde cedo, já de manhã ouvira no rádio que a renúncia era inevitável. Aliás, de manhã a mulher levaria a menor no médico e acabou que ele nem ligou para saber como foi na consulta. A crise de bronquite de novo, a noite inteira ninguém dormiu com a pequena tossindo.

Foi entrando pela casa, de rabo de orelha ouviu que o presidente lá  dos advogados disse que a sociedade estava toda muita preocupada com os rumos da política. Outro lá, autoridade também, disse pro repórter que uma definição do quadro político era urgente porque a vida de todos precisava voltar ao normal.

Na cozinha, a mulher mergulhava a concha na panela da sopa batida. Contou rápido como foi a consulta quando ele perguntou. Demorou mesmo foi explicando que o médico não aceitaria o plano de saúde deles a partir do mês que vem, logo agora que haviam acertado com um médico, um que estava dando jeito na criança, mesmo que aos poucos. A mulher passou ao silêncio, e em sua mão a concha erguida e pingando sopa o interrogava. E ele respondeu igualmente com o silêncio das costas viradas e o caminho tomado na direção do banheiro.

A população dessa cidade espera ansiosa, angustiada, o total esclarecimento dos fatos. Mas ele bateu a porta e ligou o chuveiro no meio da frase que o repórter disse que era de um deputado lá qualquer, de um nome que sempre ouvia falar, mas que nunca ele gravava.

Quando saiu do banho, passou no quarto, beijou as filhas, voltou pra sala. A TV insistia no noticiário. O governador que saiu fazia cara de santo, que renunciara para que a vida de todos retomasse o curso habitual enquanto as denúncias infundadas não eram esclarecidas. A mulher passou avisando que não comprara pão, que nem passara pela porta da padaria. Ainda tem aquelas bolachas de água e sal. Ele foi lá dentro pegar, mas quando viu a cara de semanas da bolacha, voltou de mãos vazias. Só a sopa mesmo, e tudo bem.

E isso tudo aí? Vai dar em quê, hein? A mulher apontou a TV com o nariz, mas logo logo baixou a cara para o prato, como se fosse possível se ver na sopa. Ele estava com uma colherada bem quente na boca, não deu para explicar o que achava.

Algum tempo permaneceu apenas a TV e sua cantilhena, repetindo sobre a crise, dando a entender que o mundo estava de pernas para o ar.

Foi só quando terminou a sopa que a mulher contou que duas pessoas haviam sido transferidas de departamento, trocaram de horário, saíriam mais tarde. Mas foi contando e levantando da mesa, levando os pratos lá pra dentro. Voltou repetindo a garantia do chefe, de que ela não seria mudada, muito menos de horário. Senão, como vai ser com as crianças? Quem vai pegar na escola? Vai ter que contratar ônibus escolar.

Ele até que se animou a contar que era provável que no próximo mês perdesse mesmo a chefia. Era provisória, eles sabiam, só enquanto o outro estava no exterior fazendo curso. Mas seriam mil reais a menos no salário, dinheiro que virou costume. Só que a mulher foi de novo para a cozinha, levando a lata de azeite, os guardanapos embolados, e ele não tocou no assunto.

Quando foram ver, as filhas haviam dormido no quarto, do jeito que estavam. E agora aquele trabalhão de pôr o pijama, escovar os dentes, tudo com elas desabando de sono. Deu um jeito nisso e voltou para a TV. Viu até o intervalo do jogo, quando entrou o repórter falando mais da renúncia, informando que tinha político até aquela hora reunido buscando uma solução para tudo. A cobertura completa logo mais, no jornal da meia-noite.

Ele desligou, arrastou os chinelos mais algum tempo entre a sala, a cozinha e o quarto. Era sempre um último xixi, um derradeiro gole d’água antes de bater na cama.

Apagou o abajur. No escuro do quarto e da cabeça, ouviu a própria voz ainda antes do sono chegar completo: e essa agora do plano de saúde. 180 paus uma consulta. Sem chance.

Dormiu.

2 comentários em “Dia normal.”

  1. Nossa vida é bem maior e mais difícil que essa crise política toda. Mas dá um asco geral. Ainda mais com Roriz vindo aí…

  2. Denise Giusti

    A narração da rotina de um dia normal virou uma bela crônica, Muito bom!!

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