A meu lado o cara esfregou as mãos uma na outra e cruzou os braços contraídos, típico gesto de torcedor nervoso. À nossa frente o telão mostrava imagens de outras cidades, praças aglomerando gente, famílias e amigos reunidos, milhões mobilizados por um só motivo.
“Não deve haver ninguém que não esteja na frente da televisão agora” o sujeito disse. Eu o conhecia apenas de vista, frequentava o mesmo bar que eu e meus amigos. Pensei que eu estava ali, em frente à TV, mas era como se não estivesse. Em casa eu não estaria melhor, se você quer saber. Indo e voltando pela sala sem poder contar nada a ninguém, a família observando aquela agonia estranha, achando que fosse mesmo por causa do jogo, logo eu que nunca fiquei muito nervoso com futebol.
Fecharam a rua ao meio-dia e agora só faltavam 15 minutos para a partida. Tomaram a calçada com mesas e cadeiras de metal barato, um grupo batia devagar bumbos e pandeiros. Uma pequena espuma de chope desprendeu-se do copo levada pela brisa da tarde de azul perfeito. Carvão, picanha, sal grosso. O mundo cheirava a churrasco.
Os amigos que chegaram depois já haviam juntado mesas, conversavam entre eles e com os grupos paralelos de outras mesas apinhadas de copos e pratinhos. No entusiasmo, alguém abriu demais os braços e derrubou meu chope, intocado sob minhas vistas distantes e preocupadas. “Foi mal, te pago outro”, e veio o novo, que ficou chocando, o colarinho na borda consumido pelo nada. “Você tá calado, o que houve?”, alguém finalmente notou. “Tá tudo bem”, eu respondi tão baixo como se não houvesse dito nada.
O resultado do exame sairia no dia seguinte, de manhã. Eu até que tentei trazer minha cabeça para o bar, ficar nervoso como todo mundo, mas o pensamento dava saltos até a manhã do dia seguinte, e depois outros saltos pelo futuro, imaginando o que me restaria. Quando os times entraram em campo, senti inveja daquela angústia fútil e efêmera que assomaria o país na brevidade de 90 minutos. Como quis trocar a minha angústia pela do país inteiro.
“Ninguém aqui viu o Brasil campeão, a gente era muito pequeno em 70”, um de nós falou mais alto. “Mas se Deus quiser, hoje a gente vê”, ele mesmo emendou e um terceiro disse que estava com medo, que a Itália era pedreira, ninguém lembrava de 82? “Vamos ter que esperar outra Copa?”, tenso, outro de nós pôs a questão. Eu chegaria até a próxima Copa? me perguntei. Quanto tempo se vive nesses casos? Mais quatro anos me pareceram muito, dependendo do que estaria escrito naquele papel no dia seguinte. Pousei os olhos vazios no chope morno.
Só me dei conta de que a partida havia começado quando um bando de gente pulou das cadeiras e voltou a sentar falando palavrões. Alguém mais calmo explicava a cabeçada que passou perto da trave. Eu olhava o telão sem enxergar e os lances da partida tornavam-se apenas uma confusão de movimentos coloridos. Ao redor achavam que a seleção tinha que cair mais pela lateral, em vez de afunilar o jogo. “Pode um passe desse? Não pode, né?”, vieram reclamar comigo. Eu disse que não, que não podia, e voltei ao meu mundo, que me parecia pendurado por um fio.
Mais um pouco e muitos começaram a se levantar, a esticar os braços, envergar as costas, retirando de cima de si o peso do primeiro tempo que terminou sem que eu percebesse. Homens continuaram bebendo e fumando, riam breves, logo fechavam a cara. Mulheres, menos tensas, comentavam detalhes de shorts curtos, saias elevando acima dos joelhos as cores da bandeira nacional. Olhei-as com tédio e sem avidez, como se recebesse o abraço vazio de minhas noites inconsequentes. Ocorreu-me que se meus casos furtivos de amor, minhas aventuras nas camas em que me deitei e com quem me deitei virassem moedas de ouro, eu as jogaria em qualquer fonte da sorte que me garantisse 30 ou 40 anos de vida feliz, saudável e pacata.
Em meu desligamento, o segundo tempo me pareceu um frêmito, pois começou e acabou quase sem que eu me desse conta, e me surpreendi quando, junto a mim, alguém blasfemou contra a prorrogação. Pensei em me levantar também, ir ao banheiro, mas acabei dando um mecânico gole no chope morno e repugnante. Vi que ninguém reparava e cuspi no canto. O garçom trouxe outro, que ficou ali, do mesmo jeito. Quis voltar para casa, mas lá colocariam em xeque minhas frágeis desculpas para tanta apatia e tanto alheamento, e minha angústia estaria tão visível quanto uma mancha de vitiligo no rosto.
Um bip começou a apitar quando terminou a prorrogação. “Não vou aguentar ver pênaltis” alguém gritou. O alarme insistia no meio do burburinho nervoso. Acabou sendo notado. “De quem, de quem é?” perguntavam impacientes com o absurdo de um bip chamando em plena final de Copa do Mundo. “O meu não é, o meu não é” repetiram, eximindo-se de culpa. ‘É o teu!”, apontaram para mim, e, espantado, concordei com a improbabilidade de um recado àquela altura. “Ligar para a doutora Fátima assim que puder”, era a mensagem.
Levantei-me apressado e não conseguia colocar de volta o aparelho no suporte. “Minha médica quer falar comigo”, eu disse alto, mais por nervosismo do que por querer explicar alguma coisa a alguém ali. “Agora? Ela é louca?”, mas não respondi à pergunta espantada.
Abri passagem por entre gente que comia as unhas, respirava sobressaltada. Não reparavam meus passos sem cautela à procura de um orelhão. Boca seca, coração aos saltos feito o mais angustiado dos torcedores. “O que ela quer comigo numa hora dessas? Só a vida ou a morte merecem tanta urgência”, eu perguntava e respondia em silêncio no fundo desesperado de minha cabeça.
Defendeu! Defendeeeeeeu!!!!! E como num estalo gigante, do silêncio a minha volta irrompeu o grito de centenas que logo se perdeu no céu. Feito um monstro que sossega por instantes, a multidão calada aguardava outra cobrança. Foi o que pude deduzir. Em meu ouvido, agora, um único barulho: o sinal agoniado do telefone chamando.
“Doutora Fátima, sou eu”. Atrás, a cidade calada, e eu também, em silêncio, por motivo diverso, ouvia meu coração parecer um bumbo. “Seu exame ficou pronto na sexta, eu mesma peguei, mas não consegui falar com você”, ela contou, e o tempo que levou para dizer o resto carregou a mesma angústia dos instantes em que a bola leva entre o pé do batedor e o seu destino de glória ou tragédia: a rede, a trave, as mãos do goleiro ou a linha de fundo. “Você não está doente, tá tudo bem. Vá viver, rapaz, com juízo”.
Ela ainda disse outras coisas que foram sendo engolidas pela enxurrada de berros que, em um segundo, explodiram por todos os lados. Começaram a pular perto de mim. Muitos se abraçavam ajoelhados, gritavam. Um homem chorava levantando as mãos para o alto. Fogos enchiam o céu de brilho e barulho. Um alívio desprendia-se em histeria.
Ainda assim pude perceber minha médica assustada, do outro lado da linha. “Meu Deus, que gritaria é essa?”, perguntou como se estivesse em outro país, ou mesmo planeta. “A seleção, doutora, a seleção ganhou! O Brasil é campeão do mundo”, expliquei chorando e rindo ao mesmo tempo. Divertindo-se com a própria distração, ela contou que não se lembrou do jogo, ficou lendo o dia inteiro e nem ligou a TV, não gostava de futebol para falar a verdade. “Mas você deve gostar, não é?”.
“Eu gosto, doutora, eu adoro futebol! Eu amo futebol, doutora!”, e sem chegar a pôr o fone no gancho, ajoelhei-me também aos prantos, agarrado à haste do orelhão.
Do livro As Filhas Moravam com Ele, Editora Caos e Letras (2023)
Esse livro é genial. Adoro e recomendo.