Duas Marias e uma Ana

Maria 1

 

Ah, Maria! Quantos poemas, Maria!…Quantos poemas possíveis quando deixas os olhos abertos aguardando as constelações no fim de tarde. Maria, quantos poemas inseminados de vento gelado…trovas, estrofes, métricas perfeitas, modernismo, futurismo, rimas ricas, caras, entrelaçadas, contos, novelas e até romances, Maria, veja só, romances épicos, premiados, best sellers vendendo mais do que amendoim torrado em bar da Avenida Atlântica.

Palavras, Maria, Palavras! Páginas de um dicionário inteiro voam quando teus olhos me fitam por distração, matando o tempo enquanto não chegam as constelações do fim de tarde. Ah, Maria! E eu que nunca cacei borboletas, deixo as palavras passarem por minhas mãos rumo ao princípio do planeta. Você calada já diz tudo, Maria, e eu quero ser um poeta calado, embriagado do teu silêncio. Você calada e a poesia sobrevive entre os cães do mundo, passa batom discreto, bate a porta e vai ver o luar de todo o céu.

Ah, Maria! Poemas, Maria, poemas! É tudo que tenho vontade de fazer quando penso em teu cabelo na cara, minha adorada bonequinha de pano maltratada pelo frio. Poemas, Maria, o dia inteiro escrevendo para ti, os pés na mesa, a casa de lado imitando o caos, louça na pia, poeira no móvel, cabelo, barba crescendo, a esferográfica me dando calo na dobra do dedo e a agenda do ano retrasado sobre o colo, encharcada do teu nome, Maria. Poemas todos os tipos: odes, sonetos ultrapassados, quadras, tercetos, versos livres, enredos de sambas amalucados, hai khais mínimos como folhas de trevos, longas e longas páginas cobrindo a Avenida Brasil, do Caju a Santa Cruz. Poemas, Maria, que fizessem justiça, que curassem doentes, abrigassem crianças, matassem fome, frio, mas que me levassem contigo, Maria, pra Taiwan, Luxemburgo, Bali, Madagascar. Poemas, Maria! Poemas que tornassem possível transformar em Interprise que sobe as serras meu Passat 82 queimando óleo. Eu e você dentro dele, acima das nuvens, sentindo cheiro de baunilha, framboesa, damasco, hortelã.

Ah, Maria! Quantos poemas possíveis quando me abraças tirando-me o chão dos pés e me pões para andar descalço no cosmos, como se fora ele o tapete de luxo que não tenho na sala. E eu sinto, Maria, eu juro que sinto, não é mentira, eu sinto as estrelas entre meus dedos como se fosse a terra bem fina do leito dos rios. Ah, Maria, em quantos poemas te imagino de surpresa aqui em casa, sem amarras, solta de engrenagens, chegando das profundezas de um temporal, rindo da minha cara abrindo a porta, ensopada, pedindo uma camiseta seca e um pouco de carinho e êxtase madrugada adentro. Ah, Maria, você aqui em casa eu invento um chalé em Teresópolis, um bangalô em Arraial ou deixo tudo assim mesmo, nesse “apertamento” de homem solitário – onde do quarto acendo a luz da cozinha sem tirar os pés da sala – de medidas certas para você e eu.

Ah, Maria, quantos poemas possíveis com você aqui em casa e a gente comendo macarrão em um só prato, como se fôssemos mesmo The Lady and The Bad Tramp, uma distribuição NetWork, versão brasileira A6 São Paulo. Você viu quando era criança? Claro, eu sei, todo mundo viu. Mas eu te prefiro mais boneca de pano do que dama, do que  Demi Moore ou Daryll Hanna. Maria, você não é filme, nem teatro meu ou do absurdo. É só poesia inspirando a música louca dos pardais.

 

 

Maria 2

 

 

Maria, olhe bem, preste atenção! Sossegue um minuto tua opinião revisada sobre a relatividade oblíqua dos sentimentos estrategicamente postos em um embrulho de papel crepom tão bom, tão bonito, que nem dá gosto abrir pra não estragar.

Não, espera, agora falando sério. ‘Peraí, Maria! Deixa eu falar uma vez nessa nossa vida? Mundos! Eu já te falei dos mundos, Maria? Ah, os mundos que já existiram e que ainda remetem luz a teus olhos tão crianças quanto cândidos! Fica assim, Maria, encostada no banco do carona, a franja docemente incômoda caindo que nem cortina depois da ventania nas janelas do teu rosto.

Ah, Maria! Fica assim, encostada em mim, sem pressa de ir para casa dormir, porque os mundos dos quais eu te falo, aqueles que já existiram, estão infinitamente acordados em teu olho esquerdo que faz charme de vesgo. Não, não é o direito! É o esquerdo! Não teima, Maria, que eu estou vendo daqui desse pier de pedra onde teu mar calmo bate sacudindo as algas e os corais de minha vida.

Ah, Maria! Que saco eu, que não decido sobre o que quero falar. Ainda há pouco eram os mundos que não existem mais  e agora estou aqui, descambando para o litoral, para o mar cristalino no qual a gente consegue ver os pés embaixo d’água, enterrados na areia.

Já sei, Maria! Descobri e não me interrompe que eu tenho que falar. São teus olhos, meu amor, teus olhos, poder desestruturador desse meu miolo que já não é nem mole, é pastoso, cremoso, confeitado com amendoim para passar de manhã no cream cracker murcho que te ofereço ao desjejum, minha princesa. São teus olhos que me fazem descer do espaço sideral e cair no mar, ir bem fundo, beijar os tubarões e voltar à superfície sem nunca ter feito curso de mergulhador. E aí, Maria, eu saio pela praia, andando por volta das seis da tarde de um verão bem antigo e lá no horizonte o sol toma o caminho do Japão. Sunshine on my shoulders make-me happy! Ih, Maria!…Olhei agora teu olho esquerdo  vesgo de charmoso e fui parar nesse verão tão antigo, ten years before ou mais até. É mais antigo sim, e eu estou em uma praça num Domingo de carnaval olhando os blocos  da cidade desfilarem. É Angra dos Reis! Não, não, desculpe, Maria, não é Angra, não. Também já faz tanto tempo…é Saquarema, agora eu tenho certeza do que estou falando. Saquarema, Domingo de carnaval, 1981 e eu estou encostado na árvore, tomando um sorvete de melão e um bloco vermelho e branco acabou de passar por mim cantando o samba da Imperatriz: “…e teu cabelo não nega, um grande amor se apega, musa divinal…”. Pode conferir com quem entende, mas é da Imperatriz mesmo.

Então é isso, Maria. Prestou atenção? Não, deixa eu falar que ainda não terminei. Eram desses mundos que eu queria te contar, aqueles que não existem mais e que ainda remetem luz a teus olhos tão crianças quanto cândidos. Era isso. O mar calmo no pier, o fundo do oceano, um Domingo de carnaval, alguém semi-nua que passou por mim cantando o samba da Imperatriz e eu me apaixonei por exatos 30 eternos segundos. Eram esses os mundos. Tá vendo? É tão simples quanto louco e sem explicação. Agora eu vou embora, amanhã você fala. Vai pra casa dormir que os mundos que não existem mais precisam ficar infinitamente acordados em teus olhos lindos.

 

 

Ana

 

 

Ana, me desculpa se abrevio teu nome assim, sem uma qualquer digamos, prévia autorização. Mas é que dessa forma falo mais rápido, me torno mais profícuo, direto e isso me é necessário, já que nos últimos tempos ando com os bolsos repletos de baralhos e carretéis embolados e a cabeça assim meio que em curto, não sei, parecendo fiação elétrica de um sobrado do século dezoito, quando, inclusive, não existia luz elétrica. Lembrou bem, Ana.

Vou te tratar agora quase que mo-no-si-la-bi-ca-men-te de Ana, mas com um desejo que carrega todas as letras do alfabeto e todos os números de zero a cem. O A do teu nome é o mesmo que o do meu e talvez isso nos dê maior intimidade. Você poderia se chamar Antônia, Albertina, Almerinda ou até mesmo Ana, só que Paula, Lúcia, Cristina e eu atender pela alcunha de Álvaro, Amadeu, Amaro. Mas não interessa ao mundo me conhecer. Não tenho nome, pátria ou idade, mas te chamo do fundo da noite calada. Faço um leve movimento com a garganta, me basta pouco ar no peito e um rápido toque da ponta da língua lá no princípio do céu da boca para falar Ana, ou no máximo algo um pouco mais alongado, tipo saudade, princesa! O resto eu não falo, mesmo. Fico calado, esperando você adivinhar nos meus olhos.

Ana, enquanto escamoteio nomes, te levo em viagens, mas nada metafísico, nada transcendente, sem ácido ou fumo. É simples, feito doce de leite. São sete horas da manhã de um Sábado e eu dirijo loucamente por uma reta coberta de eucaliptos nas margens. A última curva passou há meia hora e eu sei que você dorme por trás dos óculos escuros, alheia aos perigos da estrada.

Faço uma pausa na louca corrida em direção ao sol. Estaciono naquelas velhas lanchonetes onde o homem solitário que acordou há pouco prepara café e chuta o cachorro atrás do balcão. Te trago o café, o biscoito que você não quer, adormecida que ainda está sem entender aonde estamos, para onde vamos. É só eu fumar um cigarro, te oferecer um chiclete, a metade da barra do chocolate e recomeçaremos na desvairada reta através dos eucaliptos, procurando montanhas, buscando o litoral, querendo encontrar um lugar onde se respire compassadamente, sem arritmia, hipocondria, hipertensão. Talvez voltemos na Segunda só ao meio-dia, no próximo mês, no fim do ano três mil.

Ana, lá onde vamos vai ter uma festa e o Rock’n Roll é o princípio de tudo. O pessoal da taba já combinou que só dorme de manhã. Eles possuem o delicioso costume de dançar até que se acabem as forças motrizes dos pés e do raciocínio. Então, quando o céu se torna degradê, eles se embrenham enamorados pelas ruas, acompanhando o retorno silencioso das criaturas da noite. E pelo que ouvi falar, permanecem ainda por um bom tempo enamorados, descobrindo os avisos de um novo dia, numa espécie de culto fora de moda à liberdade e à paz. Ah, Ana, me perdoa o convite em cima da hora, sem te avisar antes, mas…vem dançar comigo até que nossos pés latentes supliquem por sossego e o amanhecer venha trazer vento novo, arejando nossos pulmões viciados de salas hipócritas, paredes dissimuladas.

Ah, Ana! Depois que a gente sair da festa, vamos parar na praia, desligar o motor, apagar os faróis. Eu sempre achei que faróis acesos incomodam as estrelas. Vou tirar meu casaco preto, talvez os sapatos também, sair de meu casulo de James Dean mal resolvido. E aquele brisa fria, aquela que bate por volta de cinco da manhã, vai me lembrar que estou vivo e posso respirar, vai te fazer sorrir e tirar cabelo do rosto, dominar o sono. Ah, Ana, estou doido para chegar lá! Eu preciso respirar e acho que foi por isso que te convidei para vir junto. Tem vezes que você me faz respirar, andar um pouco na areia, descansar os pés do asfalto quente da minha cabeça, eu que vivo pisando nas horas, chegando sempre 15 minutos depois, porque um alô mais demorado na esquina e eu me atraso. Que saco, que pressa! Para que pressa? Aonde é que eu vou, Ana? Ou melhor, para que eu vou? Eles que me esperem e se não quiserem, me esqueçam. Vai ser melhor pra todo mundo me deixarem ver o dia amanhecer e logo mais passear contigo pela taba, devagar, enamorados talvez.

 

                                   Rio de Janeiro, inverno – 1994/ verão – 1996.

 

 

 

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