Os necessitados fora de agenda

1.

Pensou em correr para atravessar com o sinal aberto, mas desistiu. Os carros vinham do fundo da tarde azul e passavam por ele fazendo vento para seus cabelos, levando poeira a seus olhos. Estava pensando em quantos minutos afinal levaria o sinal aberto para os carros, quando pressentiu que alguém parava a seu lado, e antes que o pressentimento virasse certeza, ele já ouvia a voz nascer encurralada pelo barulho do trânsito: moço, ô moço! Era uma daquelas vozes enfraquecidas de povo miserável, de gente que pede de manhã até à noite, que pede desde que nasceu, que pede tanto que às vezes nem sabe exatamente o quê.

Moço, ô moço! Repetiu a mulher com pouco mais de trinta anos. Vestia-se com dignidade, embora o tempo já houvesse vencido o viço e as cores da blusa e da saia. Não estava descabelada, mas via-se que arrumara o penteado de modo que não percebessem que o cabelo não era de receber cremes e xampus. Trazia pela mão uma menina de seus oito ou nove anos, que tinha uns olhos cansados demais para a idade. Do outro lado da mulher, uma senhora grisalha mantinha baixa a cabeça para não encará-lo.

Os carros passando e mesmo assim ele já tirava um dos pés do meio-fio como se fosse atravessar, como se estivesse, quase que por instinto, tentando se afastar daquela insistência aflita: moço, ô moço! Mas ela segurou seu braço com a firmeza dos necessitados. Agora não, outra hora, ele começava a rechaçá-la quando ela emendou a história. Falava devagar e ele percebia que não era por tranquilidade, mas por fraqueza. Veio do interior para uma consulta no hospital público da capital. O problema é minha mãe, moço – e apontou a senhora – nasceu um caroço na mama dela, lá na cidade não fazem exame, a coisa tá que não para de crescer. E aí – ela continuava – só tinha dinheiro pra vir, a gente mesmo não comeu nada e nem quer, só quer voltar. Moço, desculpa pedir. E ficou calada esperando.

Ele virou-se para a rua. Os carros reduziam a velocidade, iam parando. Um ou dois ainda passaram com o sinal amarelo que em um segundo ficou vermelho. O silêncio da pedinte era mais forte que os ruídos da avenida. Moço, ô moço! E agora ela repetia apenas com os olhos.

Agora não, outra hora. E ele partiu decidido para a calçada oposta.

Os passos apressados sacudiram ideias. ”Essa gente, sei lá… falam tanto pra não dar esmola, a televisão mesmo mostra uns e outros ganhando a vida sem fazer força. E tem os que usam criança, velho, todo mundo, só pra amolecer a gente e nos fazer de bobo”. Falava sozinho, como se precisasse ouvir a própria voz para se convencer.

Mas quando alcançou o outro lado, já não tinha qualquer certeza do que deveria pensar.

Virou-se para trás e na calçada de onde viera, a mulher olhava com desânimo a extensão da avenida tomada pelas sombras da tarde. A criança puxava-lhe o braço sem receber atenção. A senhora permanecia sem querer encarar o mundo.

Ei! Ele gritou. Separados por motores impacientes, ela não o escutou. Ei, moça! Gritou mais forte. Quando a mulher enfim olhou, ele levantou o braço e pediu com um gesto: espere aí, espere aí, embora ela não houvesse feito menção de dar sequer um passo. Mesmo à distância ele conseguiu notar esperança naqueles olhos tão secos.

Tome, é o que eu posso dar agora, e esbaforido estendeu a mão com algumas notas assim que se aproximou das três.

Ela agradeceu e alguma coisa em seu semblante sugeria compreensão e dignidade. Puxou pela mão a filha distraída de um lado e a mãe encabulada de outro. Ele ainda as acompanhou com os olhos por alguns metros, antes de correr e aproveitar o sinal vermelho para os carros.

 

2.

Logo que colocou os pratos sujos em cima da pia, tocaram o interfone.

– Moço, o senhor tem um prato de comida “pra me dá? “

E uma voz firme de garoto, certa do que queria, cortava o silêncio da noite.

Entretanto, mais objetiva foi a resposta, quase mecânica.

– Não, hoje não tem nada, não.

E desligou o aparelho pensando no dia difícil que tivera, no dia difícil que seria o próximo, na sua vida difícil de viver.

Já quase se esquecia do garoto quando sobreveio um pensamento involuntário, e dentro da cabeça ouviu a própria voz, mas como se outra pessoa falasse por meio dela: “Não há comida hoje?”

E parou de estalo no meio da cozinha, como se alguém houvesse entrado em sua frente. Segurava sem firmeza um pano de prato e alguns talheres. Continuava ouvindo a própria voz, sempre como se outra pessoa falasse: “E a metade da panela de sopa que sobrou do jantar? E os dois pedaços de pão ainda bem frescos? E esse pedaço de frango assado que certamente irá amanhã para o lixo? E essas bananas amarelinhas que chegaram hoje mesmo da feira?”

E antes que a voz o deixasse inteiramente zonzo, pegou no interfone e chamou alto, na esperança de que ele ainda não houvesse saído dali.

– Ei, menino! Você tá aí?

A voz continuava firme, e agora se elevava em tom de esperança.

– Tô, tio. O senhor tem comida?

Disse que sim e pedindo que o menino não saísse, julgava pedir perdão a Deus.

Retirou dos armários aqueles potes vazios de sorvete. Em um deles despejou a sopa; no outro, o frango. Colocou-os para esquentar algum tempo no micro ondas e enquanto arrumava os pães e as bananas num terceiro pote, notou que suas mãos tremiam de ansiedade e que invadia seu peito um estranho amor imenso; vibrante e ao mesmo tempo sereno.

Nem bem abriu a portaria do prédio, foi dizendo ao garoto tudo que trazia. Parecia mesmo mais afobado que o pedinte faminto.

– Cuidado que a sopa e o frango estão bem quentes.

O menino agradeceu olhando os potes como quem assiste a um grande espetáculo no céu.

Ele voltou para o apartamento subindo a passos lentos e trêmulos as escadas do prédio. “Tive fome e me destes de comer; estive preso e fostes me visitar”, e sua própria voz insistia com palavras de outra pessoa, não importando se a ordem exata das frases não fosse exatamente aquela.

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