Pequena crônica da dignidade

P/ Márcio Varella

O velho jornalista estacionou seu golzinho com quase dez anos de uso junto ao meio-fio. Morava no prédio em frente, em um sala – quarto em cima de uma loja de material de construção. Saiu do carro assoviando, e sem perder a melodia passou a chave na porta.

Nesse instante, parou ao lado um antigo colega de profissão. Abaixou o vidro elétrico do carrão importado zero quilômetro. Era famoso, mas poucos sabiam que cobrava para publicar notas em sua coluna ou para entrevistar políticos em seu programa de rádio. Também recebia uma “mesada” do governo do Estado, não para que se calasse, mas para que sempre amenizasse as críticas, abrandasse o tom dos comentários, omitisse detalhes cabeludos. Desse jeito, incomodava apenas dentro de um limite razoável para a autoridade e ainda passava, aos olhos do grande público, por jornalista combativo.

-Você continua o mesmo, hein?- e o bacana desdenhou, sorriso de carinho sonso sustentando a empáfia. – Há anos com seu carrinho e sua vida de pagar aluguel.

O velho jornalista, que vencera monstros piores, como o alcoolismo e a cocaína, continuou assoviando mais alguns segundos e parou. Sorriu seu conhecido riso debochado, jogou a chave pro alto, pegou-a de volta e respondeu, com escárnio contido e seu sotaque ítalo-paulistano.

-Pois é…mas quando deito a cabeça no travesseiro, eu durmo com tanta tranquilidade que você nem imagina como é. – jogou um beijinho sarcástico pro sujeito, deu as costas e foi embora.

O outro saiu cantando pneu.

1 comentário em “Pequena crônica da dignidade”

  1. Celina Silva

    O grande escritor é aquele que capta o essencial. Sua sutileza ao escrever provoca no coração da gente um impacto similar ao de um primeiro beijo.Que suas palavras cheguem a alguns insensíveis em forma de um baita soco no estômago. Parabéns pelo lindo texto

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima