Pequenina crônica para o menino triste.

O menino triste que mora em meu prédio está lá embaixo quase todas as vezes em que chego ou saio, sempre levando pela coleira dois ou três cachorros. Não distingo as raças, de cães entendo apenas de fazer festa nos mais dóceis e manter distância dos mais bravos. Só sei que em cada leva que vai para o passeio, são diferentes os bichos. A mãe do menino triste tem 14 cachorros dentro de um apartamento, para a revolta e incômodo dos vizinhos. É do tipo que acha que cachorro é mais importante do que gente, do que criança, que é a melhor espécie de gente. Respeito os bichos, mas ainda penso que as pessoas, apesar de todos os problemas que trazem, são mais importantes.

Morando em um “canil”, é compreensível que o menino viva lá embaixo, invariavelmente com duas ou três coleiras na mão. Passa ao largo das outras crianças do prédio, desvia das correrias. Quando está longe – e quase sempre está – arrisca olhar as brincadeiras, e em meio a cocô, xixi e latidos, parece dar como justo e normal que ser criança não é aventura que ele mereça. Atrás de bola nunca o vi, tampouco sentado no selim forçando as pernas curtas contra os pedais de uma bicicleta. Cercado de quatro, oito, doze patas, segue sua vida de menino sem meninice.

Eu não o cumprimentava. Injustamente, estendia ao garoto o silêncio dispensado à mãe, sem raciocinar que a culpa de se criar 14 cachorros em um apartamento não é da criança. Aliás, as culpas pelas imbecilidades do mundo nunca são das crianças.

Igualmente errados, os outros vizinhos dispensam ao menino nada além do olhar frio e acusatório que nasce das querelas adultas. Sabedor disso, o menino não foge apenas dos de sua idade. Toma distância também dos grandes, desses mais ainda, pois podem condená-lo pelo erro do qual ele compactua porque é menino, porque menino não tem muito direito de querer ou não. Mantém-se isolado, na companhia de cachorros, falando com cachorros.

Até que outro dia, um dos cães que ele levava latiu para uma de minhas filhas. Nervoso, temendo que o litígio com a vizinhança explodisse ali, tratou de dizer “Calma, ele não vai te morder, ele ‘tá é com medo de você”. E a frase foi seguida de um sorriso trêmulo, tímido, doce. Como eram doces a voz afobada e o sorriso acanhado do menino, que quase pedia permissão para sorrir. Foi a primeira vez que o vi sorrir. Foi a primeira vez que ouvi a voz do menino triste do meu prédio.

Ainda fiquei alguns minutos por ali. E como criança não tem mesmo muito assunto que puxar com adulto, repetiu mais um tanto “ele não vai ter morder, não fica com medo”, embora minha filha já até fizesse festa no focinho do bicho.

Desde lá passo e cumprimento o menino triste do meu prédio. Ele responde com a voz doce e afoita, desacostumado que é a receber “olá , como vai”. Às vezes até sorri, da mesma forma cândida, insegura. Mas quando as outras crianças estão por perto, me olha sério, pedinte, como querendo que eu, por um instante, tome conta dos cachorros para que ele vá correndo viver um momento que seja de meninice.

13 comentários em “Pequenina crônica para o menino triste.”

  1. Mudei para Brasília e sempre brincava com meus filhos na área verde da quadra. Jamais alguém puxou qualquer papo conosco. Passado um ano, nossa família aumentou. Imagine minha surpresa ao ser abordada constantemente para responder sobre a raça, idade, sexo do D’Art. Será que é porque cachorro nunca te contesta, daí a preferência?
    Meu espírito libertário iria semear insubordinação nesta alminha sedenta de vida própria.

  2. josé de lima da paz

    É, meu caro André, pode ser que de agora em diante a sociedade internacional abra os olhos e acerte como ajudar o Haiti. Vc sabe mais do que eu que país pobre, é país sem segurança, não é mesmo? Sempre achei estranho que ha tanto tempo se tem força de segurança internacional lá e não se percebe nenhuma melhora. Outro dia vi um depoimento de um economista dizendo que a forma da ONU ajudar o Haiti esta errada. Que lá precisa é de investimento empresarial e não apenas de força de segurança. Isso calhou com o que sempre pensei. Até que me convençam, mantenho que vinha pensando. Tenha um bom dia!

  3. Rubembraguiano. Tá quase simpliciando o escrever. Quem sabe o contista é cronista, assim como é poeta e pai das meninas?

  4. giovani iemini

    talvez o menino triste tb não tenha paciência em tratar com humanos.
    cachorros são bem melhores.

    hehehe.

  5. Raquel Madeira

    Dá vontade de imprimir e colocar nas portarias do prédio, nas caixas de correio, e principalmente, de aumentar o corpo da letra para 20 e pregar em frente à porta da doida.
    Lindo texto, emocionante, dá até vontade de chorar.

  6. Linda crônica, pena que a história é real. Não é culpa da criança, não é culpa dos cachorros, pobres animais também criados como a criança sem amor amontoados em um apartamento. Quanta gente louca por aí! A caridade é: falar com esse menino, puxar assunto, sorrir para ele, é isso faça a sua parte ….

  7. Imagino que o prédio onde mora o menino triste não pertence a um bairro periférico de Brasília, que a luta diária pela sobrevivência desta família está longe de ser comparada com a daquelas que vivem no Haiti, por exemplo. Diante destes meus “devaneios”, penso: não teria esta mãe condições de pagar a alguém para realizar a tarefa que hoje impede o próprio filho de viver?

  8. Eu tenho hoje 5 cães e é a alegria das crianças da minha família. Mas conheço gente assim, que fogem do mundo exterior inventando mais problemas em sua vida e não percebem o quanto magoam outras pessoas. Fico triste pela criança, porque essa mãe só pensa nela mesma.

  9. Evie Gonçalves

    Tadinho do menino triste… E a mãe, já desceu alguma vez com os cachorros? Ou a triste atribuição é sempre da criança?? Esse menino deve ter sinusite… rsrsrs…

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