Quando todos os homens são iguais.

Doutor Otto veio da matriz brasileira da empresa, em São Paulo, para dirigir a filial. Regulava uns 50 anos, se tanto, e era um enxuto homem de meia idade que matinha um corte bem rente para os cabelos grisalhos e o terno e a gravata invariavelmente impecáveis, fizesse sol ou se acabasse em dilúvio o mundo lá fora. Usava camisas com as iniciais bordadas no bolso, como cabe aos homens mais importantes que os demais. Os óculos de armação preta destacavam a seriedade do rosto. O celular era prolongamento de sua orelha, poucas vezes era visto sem estar pendurado ao aparelho. Para cima e para baixo carregava a maleta de couro escuro e fechos dourados, de combinações de segredo que guardavam contratos milionários.

Doutor Otto não dava bom dia, oi e olá jamais foram ouvidos por quem cruzasse com ele sempre apressado nos corredores da firma. No máximo, balançava a cabeça numa saudação tão fria quanto contida. Portanto, não seria diferente quando passava por Sebastião, que de segunda a sexta, impreterivelmente às oito da manhã, capichava no pano molhado no chão de mármore do andar da diretoria. Há mais de um ano já, e em todos os dias da semana, Doutor Otto passava ao largo do balde e dos panos. Quando muito balançava a cabeça em silêncio pro Sebastião.

Por isso que o queixo de todo mundo caiu aquele dia no elevador de serviço. Os outros três que serviam à diretoria nunca que chegavam, e doutor Otto embarcou naquele mesmo, pois já eram 8h10 e havia gente da matriz aguardando em sua antesala. Ficou ali no meio dos baldes, das vassouras, esperando chegar ao 25, espremido entre uns cinco ou seis da limpeza, Sebastião lá no fundo, mirrado e amarelo, envergonhado de tudo nessa vida, principalmente dele próprio.

O pessoal combinava o futebol de domingo quando doutor Otto entrou. O Tomirez fechava o horário com o resto, falava o quanto de cerveja cada um deveria levar. Ainda deu para acertar rápido os últimos detalhes antes que doutor Otto se empertigasse no elevador. Aí todos trataram de calar a boca, como se por si só, a presença inédita do doutor Otto proibisse qualquer assunto. Subiram desse jeito uns dez andares: apenas o silêncio da respiração de todos, o ranger dos cabos e da máquina do elevador.

Até que no 25 a porta abriu e doutor Otto deu um passo à frente, mas voltou-se para os outros, com as mãos impedindo o fechamento.

– Tem vaga pra mim no futebol? – e desferiu a pergunta à semelhança de um tiro à queima-roupa. Apesar da clareza, ninguém respondeu, tal o absurdo que parecia a pergunta, tamanha a improbabilidade de aquilo estar mesmo acontecendo.

Tranquilo, mas incisivo, doutor Otto insistiu.

– Como é que é, gente? Dá ou não dá para eu jogar?

Todos olharam pro Tomirez e o silêncio é que mandava: decide isso aí você agora.

Soltou a respiração presa, e respondeu feito alguém que cospe uma bala entalada na garganta.

– É cinco reais pra cada um pelo aluguel do campo. Marcamos oito e meia lá, pra bola rolar às nove. A cerveja cada um também leva.

Doutor Otto fez que sim com a cabeça. Deu as costas sério e sumiu no corredor. E para que não houvesse dúvida, ainda de manhã a secretária dele procurou Tomirez para entregar uma nota de cinco e dizer que  doutor Otto queria o endereço do campo para ir no domingo.

Até lá não se falou de outro assunto, todo mundo arriscando. Vai é nada, vai se misturar? Uns faziam muxoxo. Ué, e se ele for fominha? Fominha sai do enterro da mãe e vai jogar. E um doutor todo empetecado daquele lá gosta de futebol? Gosta é de golfe, essas frescuras. Mas se ele for, que vai marcar o homem? Alguém arrisca um tranco nele? Tá doido? Na segunda-feira ele faz nossas contas.

No domingo, 8 e meia em ponto, estacionou quase na linha lateral do campo meio grama meio terra um carrão prateado, importado. No mundo dos ônibus, fuscas e kombis daquela gente humilde, nunca algum daquele havia passado sequer por perto.

Dele, saiu doutor Otto, diante de abismados olhos incrédulos. Bom dia, como vão? E pela primeira vez dirigiu um cumprimento àqueles que mantinham brilhando o chão da empresa. Há quem jure que o viu até mesmo sorrir de leve, mas quem não estava na hora jamais acreditou.

Sentou-se em um banco estragado de cimento. Abriu uma vistosa sacola de nylon e de lá tirou uma chuteira branca, da marca mais cara, estalando de nova, sem um risco de uso sequer. Ficava perfeita junto com o meião vermelho bem esticado e que cobria a caneleira. E ainda havia o calção branco com listras vermelhas, a camisa branca de jogador profissional com um número 10 nas costas bem abaixo do nome dele gravado também em vermelho: OTTO.  Tudo um imenso desperdício para aquele campo careca, acostumado apenas a chuteiras gastas e tênis remedados.

– Como é? A bola vai rolar ou não? – e doutor Otto perguntou ansioso, mas todos entenderam como ordem e foram vestir correndo suas camisetas desbotadas, calçar suas chuteiras cansadas de tantos domingos de alegrias.

Em pouco tempo os times estavam escolhidos, quem não fosse jogar aquela primeira, formava outros times de fora esperando para entrar no lugar do que perdesse.  

E a bola foi pro centro do campo. Lado-a-lado, para jogarem juntos, doutor Otto e Sebastião. Os dois em silêncio esperando que apitassem a saída. Sebastião com os olhos enfiados na bola, sem nem triscar para o lado do doutor.

Quando a pelota rolou, o que se viu foi o verdadeiro maestro que era doutor Otto com a bola nos pés. Colocava a redonda onde queria e como queria. Parecia que usava uma fita métrica imaginária antes de lançar. Com jogo de corpo se livrava  do marcador com dribles desconcertantes, e a precisão de seus passes abria fendas na defesa adversária. Fugia dos zagueiros usando a velocidade e alguns comes humilhantes. Para conseguir pará-lo, só dando um tranco. Doutor Otto caía, rolava e se levantava sem reclamar, sem pedir qualquer satisfação ao juiz ou ao marcador. Batia a falta rápido e seguia jogando, agora amarelos de barro a chuteira, a camisa e o calção outrora tão brancos.

A atuação de doutor Otto revelou naquele domingo um Sebastião mortal no comando do ataque, um artilheiro que não perdoava uma, que colocava para dentro as bolas açucaradas que recebia do diretor com quem sequer trocava um olhar no dia-a-dia. Sebastião corria, levantava a mão, doutor Otto lançava, punha-o na cara do gol e só esperava para ver a rede balançar. Ninguém ali sabia que Sebastião jogava tanto, ninguém nunca entendeu o jeito como ele se movimentava dentro da área.

E a dupla foi destruindo com arte e sem piedade os times que esperavam do lado de fora para jogar no lugar dos que saíam destroçados pelos passes perfeitos do doutor Otto, pelos chutes sem piedade do Sebastião.

Virou rápido o time a ser batido, embora ninguém conseguisse. E o maestro e o matador guardaram para a última das partidas, quando o sol de quase meio-dia esgotava as últimas gotas de sacrifício de todos, o desfecho consagrador da dupla. Extenuados, perdiam por dois a zero quando empataram com gols de Sebastião após passes milimétricos do doutor Otto. E no último minuto, com o juiz já olhando o relógio e de apito na boca, uma bola rebatida de cabeça pela defesa caiu nos pés do doutor. O maestro ergueu os olhos e observou o goleiro três ou quatro passos adiantado. Numa fração de segundo, fez o cálculo força x distância e mandou por cima. Mas quem sabe o cansaço o tenha feito errar a conta por uma pequena diferença, e a bola caprichosamente beijou o travessão.

Mas o que seria da maestria de um não fosse a tenacidade do outro, uma relação já tão completa quanto recém-nascida? E enquanto a pelota voltava caprichosamente de seu beijo na madeira, Sebastião surgiu no meio dos zagueiros feito uma flecha, e com uma testada decidida rebateu a criança na direção da baliza, bem no canto oposto ao que o goleiro quedava-se vencido.

Braços erguidos, um berro esvaziando o peito, Sebastião vira-se para dentro do campo e ao seu encontro vem doutor Otto erguê-lo pela cintura, gritando elogios e beijando-lhe a testa artilheira assim que o devolveu ao chão. Encabulado, Sebastião retribuiu com um abraço, antes que o corpo franzino desaparecesse nos afagos de todo o time.

No dia seguinte de manhã, era o elevador de serviço que demorava muito. E como um dos outros três estivesse parado a sua frente, vazio e de portas abertas, resolveu entrar com seu balde, seu rodo, seus panos encardidos. Só não contava que no próximo andar entraria doutor Otto, meia hora antes do que costumava chegar. Completando a situação, estava acompanhado do presidente da empresa.

Apenas balançou a cabeça, nada disse, nenhuma expressão que o fizesse diferente do doutor Otto de todos os dias. O outro, o do domingo de manhã, deve ter ficado lá no campinho comemorando o gol do último minuto, e de lá talvez nunca mais saísse.

Subiram ele e o presidente falando de negócios, de crise, de problemas de gente rica. Sebastião mirrado sumia no constrangimento, só queria que aquele elevador chegasse logo.

E quando chegou, o presidente da empresa saiu um pouco à frente, deixando doutor Otto uns dois passos atrás. Com a mesma agilidade de seus passes em campo, voltou-se para o faxineiro, sério como sempre, mas com o polegar direito levantado.

– Arrebentamos ontem, hein Tião? – e saiu rápido a tempo de pegar o presidente, não chegando a ouvir Sebastião gaguejar um “pois é, doutor, pois é.”

4 comentários em “Quando todos os homens são iguais.”

  1. Denise Giusti

    Bela narrativa. Me fez rir e lembrar de alguém que já conheci.

  2. O contista mostrou o quanto pode ser elegante em poesia e filosofia. Mostra o frescor de uma narrativa onde desejamos alcançar o final, mas não nos apressando pelo caminho de delícias que ele oferece.

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