Que calor, mer’mão!

Uma das poucas coisas de que não sinto falta no Rio de Janeiro certamente é o calor de fevereiro. Não há novidade no que está nos jornais, dizendo que a cidade só não é mais quente do que um lugar perdido lá no Saara. Qualquer carioca que more ou tenha ido, por exemplo, a Bangu e adjacências nessa época do ano na hora do almoço sabe que lá o diabo tem saudade de casa.

No verão carioca jamais deixe o carro estacionado debaixo do sol. Se deixar, não pegue o volante sem a proteção de uma flanela. Ao contrário, suas mãos ficarão feito gado marcado com ferro em brasa. Lamento dizer, mas não estou sendo tão exagerado assim.

Certa vez estava fazendo uma reportagem na favela de Vigário Geral. Era um desses dias de janeiro ou fevereiro, mais de duas horas atrás da Polícia em uma operação de rotina. E por uma dessas crueldades do jornalismo de televisão (com o repórter, diga-se de passagem), eu vestia um vistoso terno e uma bela gravata, mas que me eram instrumentos de tortura naquela situação.

Terminado o trabalho da Polícia, mais de meio-dia, comprei duas enormes garrafas de água mineral. Uma bebi feito um camelo desidratado. A outra, virei inteira na cabeça, sem pena de ensopar o paletó.

Bom, toda essa introdução para falar de poesia. Abaixo, uma pequena série de cinco poemas escritos entre 1992 e 1995, bem nos meses da canícula, daí o título.

Aos meus conterrâneos, tentem refrescar ao menos a alma.

O Rio em janeiro fevereiro e março

I.

O dia amanhecendo
derretia luzes na Lapa.

II.

A noite caiu
a terra em volta abre
poros quentes.
Vapor
Vapor
Vapor.
Árvores imóveis
não dão sinal de chuva:
peço piedade
pro dia seguinte.

III.

Era de manhã
quando meu coração louco
passou a 120 pela Lagoa – Barra.
A Pedra da Gávea sorriu para mim,
me mandou beijos com ares de Mona Lisa.
O dia estava azul para sempre
e me apaixonei mais cinco vezes
até a noite.

IV.

Urca
Baía de brilhos
e curvas
e espuma de cerveja.
A vida roda ali agora
em mão dupla
na enseada de Botafogo.
A lua calada
quem sabe confessa
saudades de um sambista morto.
Marola vem e volta
pra escuridão
(e isso, na pedra,
é antiga percussão).
Na mureta
velha amiga solta o cabelo
insinua seios
giro olho e língua
vira nova amante. 

V.

Os flamboyants sangrando
nos galhos suspensos
são corais que se entediaram do mar
e foram viver nas árvores.
Outras flores
de nomes confusos
esperam entardecidas
o vento furioso
de um provável temporal.
O sol é um tigre asiático,
devora meus ombros
com fome de três dias.
Samambaias avencas
begônias jibóias
por trás dos muros que fervem
rezam pela misericórdia
da brisa.
As sombras heróicas
irredutíveis
montam guarda
embaixo das mangueiras
das amendoeiras
e aguardam que cheguem
suas irmãs noturnas
recortadas pela lua.
Deus é um pintor de horas vagas
que carrega nas cores
de vez em quando.

2 comentários em “Que calor, mer’mão!”

  1. Sandra Ney

    Eu odeio calor, falo sempre mal dele, imagina então neste 2010.
    Mas nunca com a classe das tuas poesias da canícula, benza Deus.

  2. Denise Giusti

    Belos poemas, André. Retratam com melodia e beleza o que nós cariocas estamos passando neste verão! Na verdade a imprensa não está exagerando, este ano está diferente, bem pior. Ainda bem que vocês não estão por aqui, andamos como se estívessemos no deserto de Saara. Que Deus tenha piedade e mande um ventinho fresco para a Cidade que não é tão mais Maravilhosa assim!

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