Receita errada.

Poucos setores da economia me parecem tão predatórios quanto a chamada indústria da construção civil. Os que usam a contra-generalização para defender grupos em sua maoiria claramente culpados me pedirão logo cuidado com as palavras. E eu direi claro, claro, deve haver uma ou duas construtoras no país que dão bola para responsabilidade ambiental, social e coisa e tal. Deixem-as soltas e veremos a Floresta da Tijuca, por exemplo, loteada e transformada em condomínio, sempre com o argumento de que as cidades precisam se desenvolver, de que é preciso reverter o déficit de moradia da classe-média.

Em Brasília, a natureza vive de ter os pedaços arrancados por essas tais “fábricas” de apartamentos, caixotes cada vez mais mínimos e cuja finura das paredes nos permite conhecimento total da intimidade do vizinho. E vice-versa. Agora, os tão “ocupados com o desenvolvimento da cidade” querem construir um shopping-center em um terreno que abriga nascentes do Parque Olhos D’água, no final da Asa Norte, área nobre da capital do país. O local reúne espécies do cerrado, que vêm sendo devorado em grandes nacos nos últimos anos por outros predadores, tais como a soja e a pecuária.

De vez em quando a sociedade brasileira acorda de sua pasmaceira e resolve fazer barulho para impedir que os absurdos se concretizem. É o caso agora. Manifestações de moradores têm ocorrido nos últimos dias – inclusive neste domingo, no próprio parque – na tentativa de sensibilizar o estado a brecar mais um triunfo da ganância da estupidez humana. Parece que está dando certo. O Governo do Distrito Federal já mandou avisar que nessa administração nada será construído no berço das nascentes, a terra continuará sendo da água, dos pássaros e das árvores, e não da C&A, da Renner, das Casas Bahia ou outro paraíso dos enforcados pelo crediário. Ainda existem algumas poucas vantagens em se votar no PT. Devido a um resquício de pudor, o partido, ao menos na fachada, permanece comprometido com determinadas causas sociais. Fosse o outro bando partidário comandando o DF, madame já poderia se preparar para ir às compras.

Mesmo com a garantia estatal, a pressão da sociedade não perde a razão. É preciso que essa área em que estão as nascentes seja anexada legalmente à área do parque, para que não apenas as “torneiras” sejam intocáveis, mas também as “caixas d’água”.

Tudo isso não serve para refletir apenas em cima da questão ambiental. Há outra também tão importante quanto, embora não tão visível, e que diz respeito ao nosso modo de viver. A proliferação de shoppings-centers em qualquer canto das cidades revela o quanto o brasileiro se tornou escravo do consumo. Ao abandonarmos, após a segunda guerra, o modelo europeu de civilização e adotarmos o estadunidense, adotamos também como estilo de vida, razão de existir, o consumo desenfreado, motor principal da economia deles. E já que os temos como modelo, é bom olharmos com muita atenção o que a receita que usamos está fazendo com quem a inventou.

4 comentários em “Receita errada.”

  1. Em termos de tombamento, acho que não feriria, mas isso se for algo como o que existe na 304 sul, aqueles do tipo mall. Mas ambientalmente é um crime.

  2. Há rumores, inclusive, de que existe um estudo encomendado dizendo que a nascente não é nessa área, tudo para possibilitar a construção do tal shopping. Mas além do problema ambiental, será que esse shopping não agride o tombamento da cidade, já que não existe comércio dentro de nenhuma outra quadra (até onde sei) nem em entre-quadras?

  3. HUGO GIUSTI

    Aqui no Rio de Janeiro, também os péssimos arquitetos conseguem cada vez mais destruir a beleza da cidade. As obras mal feitas sem qualidade nenhuma, é lastimavel…
    Muita pouca seriedade, honestidade e compromisso com o bom senso.

  4. Que ótimo ler vc novamente. Como sempre, escrevendo muito bem e sem medo de desagradar.

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