
*
eu quero sentir
a paz do cheiro da chuva

*
(AA)
cada dia que resisto
à vontade de te procurar
é menos um dia,
feito
alcoólatra e drogado
que fogem do vício

*
me acomete a vontade do nada
do não ir
e muito menos do ficar
entojo desse lugar
uma ânsia de sumir
e reaparecer
em outra parte,
embora me falte
a ideia
de onde possa ser

*
sobre a mesa
uma caneca de ágata
outra de louça.
na garrafa térmica
um resto de café
feito antes das oito.
uma taça da noite passada,
com borra de vinho
no fundo,
não sabe quando
será lavada.
caminhar pedalar correr
almoçar com quem
ou com ninguém.
o domingo olha de fora
esperando pra acontecer

*
ah, meu espírito romântico…
esse arquiteto
das impossibilidades.

*
alegria tristeza
ódio compaixão
certeza desespero
desprezo misericórdia:
ora quero estripar
quem não me dá
passagem no trânsito;
pouco depois
quero adotar uma criança
cega surda muda paraplégica.
sou um perfeito ser humano
um autêntico e genuíno
modelo mediano de gente,
sentindo tudo
o que um cara normal
é capaz de sentir.

*
meu talento
é sentir saudades.

*
sem pretender
a felicidade,
apenas exercito
o fazer com que cada segundo
passe mais devagar
do que na realidade.
construo assim
o que resta do dia
o que me sobra da vida
entre um e outro café
um e outro chope
tomados a esmo.
atento ao que
se passa em volta
estou dentro de mim
em paz comigo mesmo.
montes claros 2.3.2024

*
será que voltaremos
a fazer o que fazíamos?
que faremos finalmente
o que nunca conseguimos?
é o que me pergunto ainda
(cada vez mais
com menos esperança)

*
meio
cansado
meio
puto
meio
de
saco
cheio
de
tudo

*
a nossa separação
não mudou
as coisas por aqui.
continuo calçando
os mesmos chinelos
depois do banho
lavando a louça
do jantar
e indo dormir
ao teu lado
pouco depois das dez

*
mia couto
um poema
dois poemas
três quatro dez
vinte páginas
quarenta páginas passaram
chegou-se à metade
do livro
e à impressão
de que nada
mais precisa
ser escrito

