Roma

1.

Caminharam cerca de dez minutos até chegarem a outra praça, menor do que as famosas, das quais ele sempre ouviu falar. Ao que os urbanistas no Brasil chamavam de becos ou largos, ali eram praças, mesmo que fossem pequenas feito aquela. Enxergou nisso milenar celebração da vida e da alegria de conviver.

Queria ter ido à Irlanda. O problema é que a agência de viagens só teria o pacote para o mês seguinte, quando já não estaria de férias. Ali, então, fora o lugar que sobrou para irem. A relação conturbada com o pai, um imigrante do início do século vinte, sempre o afastou da ideia e da vontade de conhecer a cidade onde nascera il vecchio, como chamavam o velho na família.

A praça menor não era tão barulhenta, ainda assim ouviam-se ao longe o desespero de sirenes de ambulâncias e as intervenções ríspidas de buzinas, emergindo da massa uniforme do ronco de motores. Aquela cidade era uma velha em um banco de praça falando sozinha, consigo mesma. E falando alto, sem reparar ou se importar que a ouvissem.

Depararam com uma entrada em arco, com seus rijos pilares de pedra que atravessavam séculos, como todas as construções que viram até então. Estranhamente, essa passagem dava acesso a uma universidade, a um museu e a uma pequena basílica. Um átrio, em que o sol do começo de maio despejava a luz da tarde, separava as três edificações. Naquela cidade, todos os prédios levavam a ele a sensação de que caía no poço sem fundo do tempo. Ele não quis estar ali, quis ir para outro país. Mas sem admitir que começava a gostar, pegou-se se sentindo bem e em paz.

Reparou melhor e percebeu que se tratava de uma paz emocionada.

Pressentiu que deveria virar à esquerda e entrar na basílica. Era mais do que um pressentimento; era uma quase certeza de que alguém falara ao seu ouvido, pedindo que fizesse isso. Se a mulher não estivesse de costas, três ou quatro metros a sua frente, juraria que havia sido ela a dizer que entrasse na basílica, tal era a impressão de que alguém havia dito aquilo. E como se provasse um vinho novo, foi andando devagar até a entrada lateral da igreja, pisando, com calma e a boa e inédita emoção, aquele chão onde os séculos também pisaram.

Como não tinha religião, pouca atenção deu às imagens magníficas de santos, anjos e passagens bíblicas. Ali, o comovente era o intangível, o invisível, que se traduziam na mesma paz do átrio, só que agora maior, circulando feito brisa do chão ao teto e entre as paredes da nave.

A mesma impressão de que alguém lhe falava pediu que desse mais quatro ou cinco passos à frente. O barulho do trânsito estava finalmente superado, e o pedido parecia ter sido feito pelo silêncio.

Caminhou breve e parou exatamente em um ponto em que se derramava sobre ele um facho da luz do sol entrando por uma das aberturas dos vitrais. De repente, sentiu-se acolhido e acalentado como jamais provara em sua vida de homem de meia idade. Era como se alguém que o amava muito estivesse lhe abraçando, uma espécie de tio-avô de vaga lembrança com quem brincava e se divertia quando pequeno, mas que morreu ainda em sua segunda infância.

“Desde quando não nos vemos? Desde o século quinze, talvez?”. Espantado, escutou a pergunta do silêncio, a mesma voz que escutava, mas não ouvia, ou vice-versa. Arrepiado e com uma estranha certeza adquirida em um milésimo de segundo, respondeu com o pensamento, sem titubear: “Sim, desde lá”.

A paz emocionada se materializou em forma de algumas discretas lágrimas.

“Então, agora, vá”.

E ele obedeceu novamente.

Enxugando o rosto com as costas da mão, voltou ao átrio e ali esperou pela mulher. Quando ela chegou, se dirigiram a saída, ao enorme arco de pedra. Mas antes que ganhassem a rua, virou-se e, disfarçadamente, acenou e sorriu para a porta vazia da igreja.

2.

Embrenharam-se pelas ruas seculares do bairro mais famoso da cidade. Caía uma tarde fria e brumosa de primavera, as primeiras luzes dos postes se acendiam. A névoa alaranjada pelas lâmpadas acentuava o mistério, o misticismo daquelas ruas milenares. O anoitecer era terracota, feito aquelas fachadas sustentadas pelos séculos.

A esposa procurava no guia a cantina recomenda por amigos, ainda antes da viagem. Enquanto não encontravam, enfronhavam-se mais e mais pelas ruas que pareciam tentar lhes arrastar até o fundo do tempo.

“É ali”, e finalmente ela apontou uma porta de madeira rústica, uns cem metros adiante. Por ele, demoraria um pouco mais a encontrar o restaurante, tão à vontade que estava em seu caminhar fascinado pelas vielas e seu piso de pedra marcado pelos passos antigos da humanidade.

Quando entraram, além do aquecimento do lugar, ele sentiu, entre as paredes e madeira das mesas e cadeiras, o cheiro acumulado do tempo. Ao encontro dos dois, veio um senhor totalmente grisalho, cerca de setenta anos. Sério, cumprimentou os dois, perguntou se a mesa era pro casal. Ele sentiu um calafrio quando encarou o velho. Era a cara de seu tio, irmão mais velho do pai. Ele diria idêntico. Enquanto contava para a esposa, não conseguia tirar os olhos do sujeito. A mulher olhou para trás, queria ver detalhes do rosto do dono da cantina, ver se detectava a semelhança. Mas não resolvia muito espiar, ela só vira esse tio do marido em fotos, já que ele morrera há mais de dez anos, os dois ainda não se conheciam. Mesmo com o pai dele ela convivera pouco, o velho morrera quando eles tinham menos de um ano de namoro.

Pediram o prato quando o dono da cantina trouxe o vinho. Após o gole formal da prova, fez cara de êxtase. Perguntou ao homem onde se encontrava na cidade uma maravilha daquelas. “Em qualquer mercado”, ele respondeu seco, acrescentando, com certa naturalidade orgulhosa, que aquela garrafa, no mercado, não chegava a custar cinco euros. “E ainda há vinhos melhores que este pelo mesmo preço”, acresceu ao assunto. Parecia animado que o freguês conseguia conversar o básico em sua língua. Mesmo assim, não sorria. Era sério, contido, contrito, tão ao contrário do tio sempre sorridente no portão de casa para receber ou se despedir quando ele, os pais e os irmãos iam visitá-lo; o velho tio que matava de rir toda a família. “Arranco um pedaço dessa bunda!”, e falava alto, pondo a cabeça pra fora da janela do carro sempre que um pedestre atravessava na frente e ele tirava um fino da pessoa. Garoto, no banco de trás, ele perdia a respiração nas gargalhadas, e sabia que o tio fazia isso apenas para que ele se divertisse. Em sua seriedade, o dono da cantina era o oposto do velho tio. Mesmo assim, em seu rosto passavam algumas das melhores imagens de sua infância, trazendo junto a saudade do homem que, ao longo dos anos de brigas e discussões em casa, tantas vezes ele quis que fosse seu pai.

Vieram os pratos. Ele pediu espaguete à bolonhesa, o mais simples do cardápio que não tinha luxo; especialidade da mãe, que também já estava lá junto ao pai e ao tio. Com isso, permaneceria ali por mais alguns instantes em sua infância, passada quarenta anos antes e do outro lado do Atlântico.

“Vai ver que é seu parente”, a mulher brincou quando ele tocara novamente na semelhança. Ele se aninou, até por causa do vinho, e, para gastar um pouco mais do que sabia do idioma, disse ao homem que o avô saíra dali um século atrás, fugindo da fome. O sujeito perguntou seu sobrenome, e quando ouviu, contou que era o que não faltava na cidade. Ele mesmo conhecia uns quatro ou cinco, todos de famílias diferentes. “E a gente lá achando que fazemos parte de uma dinastia”, riu, o vinho subindo e pondo mais graça no assunto. “E o senhor, como se chama?”, e tratou de caprichar na entonação para esconder o sotaque. “Genaro Altobelli”, respondeu curto, objetivo. “Altobelli?”, ele ergueu as sobrancelhas, fez ar de surpresa. “Como o autor do terceiro gol na final da Copa de 82?”, arriscou, entusiasmado por engatar a conversa um degrau de dificuldade acima no idioma. Sim, era igual, o velho confirmou, mas também não era a mesma família. Ele sorriu, quase sem graça, e ficou quieto, até porque bateu o medo de que já houvesse chegado ao limite do seu conhecimento da língua.

O dono do lugar trouxe a conta e deu umas duas ou três sugestões de rótulos semelhantes ao que tomaram. Eles pagaram a despesa e o sujeito os levou até a porta, já que ainda não havia muitas mesas ocupadas. A noite esfriara e a névoa travava batalha com as lâmpadas dos postes. Andaram alguns metros e ele achou de se virar para trás. Na porta da cantina, o homem acenava e sorria um sorriso mais largo, mais sincero e carinhoso, como se estivesse agradecendo um reencontro.

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