Da série Livros que deveria ter lido há mais tempo.

Terminei de ler por esses dias O anjo pornográfico – a vida de Nelson Rodrigues, do Ruy Castro. O livro é de 1992 e me pergunto por que abdiquei todos esses anos da leitura sobre a vida de nosso maior dramaturgo. Se me fosse dado o dever de formar uma lista do tipo livros que deveria ter lido há mais tempo, O anjo pornográfico puxaria a fila.

É daqueles livros que nos faz perder a hora de dormir, e que durante o dia torcemos para que chegue logo a noite, o momento  de irmos para a cama e, com a cabeça no travesseiro, devorarmos suas páginas.

Confesso que Nelson Rodrigues não era figura que me despertasse o maior dos interesses. Até que, recentemente, procurando algo que preenchesse o tédio de uma viagem de avião, deparei em uma livraria de aeroporto com o tijolaço do Ruy Castro.

A exemplo de outras biografias, dá para pescar um pouco da história do país a partir da vida do biografado e a história do segmento que representou – no caso de Nelson a imprensa e o teatro – e a relação desse segmento com a sociedade da época.

É característica lógica das biografias ensinarem um pouco de história a partir da vida de uma pessoa. Fernando Moraes dá aula de história da imprensa contando a vida de Assis Chateubriand em Chatô – o rei do Brasil. Ruy pincela um pouco dessa história ao escrever sobre a vida de Nelson, e vai bem além quando fala do teatro, o que ocupa uns 40 por cento do livro. E essa fatia da obra é quase toda preenchida com o que realmente importa nas peças de Nelson Rodrigues: a relação delas com a sociedade da época, desnudada no palco pelos seus personagens, escandalizada com suas próprias mazelas morais, renegadas com pose de santa.

Mas o que toca em O anjo pornográfico é a ligação de Nelson Rodrigues com a tragédia. A morte não era presença à toa em suas peças e crônicas. Poucas vezes li sobre um autor que houvesse tido contato tão próximo com ela, pontuando não apenas a vida da família com abusiva frequência (dói ler como morreu o irmão mais novo de Nelson), mas a dele próprio por causa da saúde sempre precária.

No todo, apenas um porém. O livro que fala sobre a vida de alguém que tanto versou sobre o pecado, comete um. A relação de Nelson Rodrigues com o futebol é muito pouco explorada. Simplesmente não há menção à frase “estava escrito há 5 mil anos” , épica na crônica esportiva brasileira.

Mas isso não desmerece a abordagem sobre a vida de Nelson Rodrigues, ainda mais com o texto do Ruy Castro. Se não leu, leia. Não espere viajar de avião.

Choque de gerações no Rock’n Roll.

Bom para mim é Led Zeppelin. Foi o que ouvi outro dia de um rockeiro passado dos quarenta. Soltou essa depois que alguém, no trabalho, falou que Franz Ferdinand era bom.

Diria ao meu contemporâneo que tão bom quanto o Led é o U2, seguidos de perto pelo Pink Floyd, The Who e Black Sabath. E melhor que os dois primeiros – e que todos – são os Beatles.

O critério aí utilizado, lógico, é o do gosto pessoal. Não faço do meu verdade absoluta.  Mas a opinião de meu contemporâneo revela choque de gerações no patamar do Rock`n Roll, e serve para rápida discussão.

Fomos criados ouvindo todas essas bandas. E mais Raul Seixas, Mutantes, O Terço. Isso na infância. Na adolescência, a geração coca-cola descobriu o mundo ao som do BRock, o chamado Rock Brasil. E mais o que vinha de fora: Smiths, Jesus and Mary chain e por vai. Ou melhor, foi.

Quando os anos 90 chegaram, nossa formação musical já estava consolidada, mas nela ainda cabiam coisas novas. E aí vieram Pearl Jam, Nirvana, e para muitos o Oasis, o Red Hot chili pepers. E nosso universo de bandas novas se cristalizou por aí, chegou no máximo até 1995.

Confesso que até os primeiros anos da década de dois mil, pouco ou quase nada me interessei em conhecer o que surgia de novo. Penso que só os Strokes conquistaram algum território em meus ouvidos.

Com o advento da tecnologia dos MP3 e o costume de baixar música pela rede substituindo o de comprar CD, descobrir bandas novas virou passa tempo corriqueiro. Recentemente verifiquei que os caminhos trilhados por John, Paul, Plant, Ozzy, Bono e tantos outros, não estão perdidos como julguei em determinada época, ou como persistem em suas convicções alguns amigos oitentistas.

O mais interessante, no entanto, é perceber que, assim como em todo os campos da arte ou de qualquer outra atividade humana, nem sempre os melhores são os que carregam os louros da consagração. Descobri bandas que mesmo alguns rockeiros bem mais jovens que eu praticamente desconhecem, e que na minha modesta opinião são bem melhores musicalmente do que outras que estão dezenas de degraus acima na escadaria da fama.

Para ser rápido, citarei como exemplo apenas duas bandas, quase anônimas nesses mares do sul e de tietagem de Franz Ferdinand e Cold Play. A pronúncia do nome de uma delas, talvez a melhor de meus achados, é dúvida até mesmo para quem me apresentou. Falo dos Raconteurs. Pouco descobri dos caras. Tenho vaga idéia de que a maioria deles são americanos e se juntaram em 2005. Parece que já gravaram uns três discos, não chego a ter certeza. Essa, só tenho mesmo de uma coisa: o CD a que tive acesso – Broken boy soldiers – é uma das grandes coisas que se fez na história do Rock. Eles usam baking vocals, algo que julguei exterrminado pelas novas gerações. Não falarei mais, procure ouvir.

Meus passeios pela modernidade rockeira me revelaram outra banda que se tornou de meus encantos. Black rebel motrcycle club. Em uma olhada rápida pela Wikipedia, descubro que também são americanos e já gravaram bens uns seis discos. O que consegui – How!, de 2005 – ouvi umas quatro vezes seguidas.

Talvez meus contemporâneos me perguntem: o que esses caras fazem de novo em termos de Rock’n Roll? De novo, provavelmente nada, mas mantêm o nível, continuam fazendo muito bem o que de muito bom já foi feito até hoje, dão a certeza de que o Rock tem mais uns 50 anos de lenha para queimar.

Em tempo: Franz Ferdinand não está com essa bola toda mesmo não, e Arctic monkeys é, no geral, muito chato.

Coletânea para o aniversário de Brasília.

Seis escritores de Brasília formatam uma coletânea de textos sobre a cidade em homenagem aos 50 anos de fundação da capital do país. Em 150 páginas, os seis destacam em prosa e poesia não apenas a cidade, mas principalmente seus moradores, seus personagens – dos mais famosos aos anônimos – do passado e do presente.

A coletânea junta poemas, crônicas e contos de Nicolas Behr, José Rezende Jr., Pedro Biondi, Liziane Guazina, Fernanda Barreto e meus também.

Nicolas Behr, todos conhecem, é autor de Iogurte com Farinha e tantos outros livros que o tornaram uma espécie de embaixador da poesia de Brasília, explicando nem tanto a capital do poder, mas muito mais a cidade e seu pulso a partir da Rodoviária do Plano Piloto.

José Rezende Jr. (A mulher gorila e Eu perguntei ao velho se ele queria morrer, 7Letras) percorre caminho parecido, mas com os minicontos. Em poucas linhas resgata o anônimo candango que ergueu os palácios e as quadras de Brasília e inquieta-se com a qualidade de vida da cidade se perdendo um pouco a cada dia.

O paulista Pedro Biondi, autor de Cheiro de Leoa (Editora Limiar), mostra em prosa e poesia o baque de quem chega à capital e depara com algo totalmente diferente de tudo que existe no Brasil. Ele traduz em poemas ou crônicas o espanto pela setorização de tudo na cidade, o castigo da seca e o alívio da chuva.

A temática é, até certo ponto, semelhante nos textos que Fernanda Barreto escolheu pôr na coletânea. No caso de Fernanda, há também o cerrado exótico que encanta e a cidade diferente que desafia o entendimento de quem a vê pela primeira vez. E na cidade onde também moram pessoas normais, segundo Nicolas Behr, homens e mulheres se amam em bares e monumentos. Para azar dos leitores, Fernanda Barreto é a única ainda inédita em livro, mas dá para conferir o que escreve em http://transitivaedireta.blogspot.com/  .

Pessoas. É esse o material que Liziane Guazina leva à coletânea sobre Brasília. Autora do ótimo Entre Facas (Nova prova, 2009), a autora gaúcha, há muitos anos na cidade, escarafuncha o universo de burocratas, homens, mulheres, velhos, jovens, mendigos. Por trás deles, a cidade grita em silêncio.

Por fim, levo para a coletânea dois contos que acabaram não entrando em meu último livro, A liberdade é amarela e conversível. E não entraram justamente porque tratam particularmente de Brasília, do universo particular dessas quadras e prédios por onde já circulo há 12 anos e que tanto já colocam seu gosto e seu tempero no que escrevo. Ficaram esperando uma ocasião para se juntar a trabalhos de outros autores, irmanados pelo tema.

Reunidos estão textos que fugiram da linearidade, a começar pelo tamanho. Brasília é contada por nós em poemas de uma linha ou em contos de 15 páginas. Ainda assim, entraram em harmonia.

O livro não vai levar ao leitor a visão ufanista da cidade, nada de Brasília capital da esperança, o sonho de JK, o leite e o mel. Nossa Brasília é a que é real, e a amamos porque ela é de carne e osso em seu concreto, ferro, barro e vegetação.

Com tratamento gráfico de Bruno Schurmann, a coletânea deve ser lançada entre a segunda quinzena de abril e a primeira quinzena de maio.

Aguardem.

ps: na internet, duas promoções com meu livro A liberdade é amarela e conversível. Uma no blog Livros & Literatura, no endereço http://livrosliteratura.blogspot.com/  . A outra, na comunidade Viciados em livros, que reúne mais de 90 mil pessoas no Orkut . Acessem o link. http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=82025&tid=5444662038922816730 .

Participem!

Quando todos os homens são iguais.

Doutor Otto veio da matriz brasileira da empresa, em São Paulo, para dirigir a filial. Regulava uns 50 anos, se tanto, e era um enxuto homem de meia idade que matinha um corte bem rente para os cabelos grisalhos e o terno e a gravata invariavelmente impecáveis, fizesse sol ou se acabasse em dilúvio o mundo lá fora. Usava camisas com as iniciais bordadas no bolso, como cabe aos homens mais importantes que os demais. Os óculos de armação preta destacavam a seriedade do rosto. O celular era prolongamento de sua orelha, poucas vezes era visto sem estar pendurado ao aparelho. Para cima e para baixo carregava a maleta de couro escuro e fechos dourados, de combinações de segredo que guardavam contratos milionários.

Doutor Otto não dava bom dia, oi e olá jamais foram ouvidos por quem cruzasse com ele sempre apressado nos corredores da firma. No máximo, balançava a cabeça numa saudação tão fria quanto contida. Portanto, não seria diferente quando passava por Sebastião, que de segunda a sexta, impreterivelmente às oito da manhã, capichava no pano molhado no chão de mármore do andar da diretoria. Há mais de um ano já, e em todos os dias da semana, Doutor Otto passava ao largo do balde e dos panos. Quando muito balançava a cabeça em silêncio pro Sebastião.

Por isso que o queixo de todo mundo caiu aquele dia no elevador de serviço. Os outros três que serviam à diretoria nunca que chegavam, e doutor Otto embarcou naquele mesmo, pois já eram 8h10 e havia gente da matriz aguardando em sua antesala. Ficou ali no meio dos baldes, das vassouras, esperando chegar ao 25, espremido entre uns cinco ou seis da limpeza, Sebastião lá no fundo, mirrado e amarelo, envergonhado de tudo nessa vida, principalmente dele próprio.

O pessoal combinava o futebol de domingo quando doutor Otto entrou. O Tomirez fechava o horário com o resto, falava o quanto de cerveja cada um deveria levar. Ainda deu para acertar rápido os últimos detalhes antes que doutor Otto se empertigasse no elevador. Aí todos trataram de calar a boca, como se por si só, a presença inédita do doutor Otto proibisse qualquer assunto. Subiram desse jeito uns dez andares: apenas o silêncio da respiração de todos, o ranger dos cabos e da máquina do elevador.

Até que no 25 a porta abriu e doutor Otto deu um passo à frente, mas voltou-se para os outros, com as mãos impedindo o fechamento.

– Tem vaga pra mim no futebol? – e desferiu a pergunta à semelhança de um tiro à queima-roupa. Apesar da clareza, ninguém respondeu, tal o absurdo que parecia a pergunta, tamanha a improbabilidade de aquilo estar mesmo acontecendo.

Tranquilo, mas incisivo, doutor Otto insistiu.

– Como é que é, gente? Dá ou não dá para eu jogar?

Todos olharam pro Tomirez e o silêncio é que mandava: decide isso aí você agora.

Soltou a respiração presa, e respondeu feito alguém que cospe uma bala entalada na garganta.

– É cinco reais pra cada um pelo aluguel do campo. Marcamos oito e meia lá, pra bola rolar às nove. A cerveja cada um também leva.

Doutor Otto fez que sim com a cabeça. Deu as costas sério e sumiu no corredor. E para que não houvesse dúvida, ainda de manhã a secretária dele procurou Tomirez para entregar uma nota de cinco e dizer que  doutor Otto queria o endereço do campo para ir no domingo.

Até lá não se falou de outro assunto, todo mundo arriscando. Vai é nada, vai se misturar? Uns faziam muxoxo. Ué, e se ele for fominha? Fominha sai do enterro da mãe e vai jogar. E um doutor todo empetecado daquele lá gosta de futebol? Gosta é de golfe, essas frescuras. Mas se ele for, que vai marcar o homem? Alguém arrisca um tranco nele? Tá doido? Na segunda-feira ele faz nossas contas.

No domingo, 8 e meia em ponto, estacionou quase na linha lateral do campo meio grama meio terra um carrão prateado, importado. No mundo dos ônibus, fuscas e kombis daquela gente humilde, nunca algum daquele havia passado sequer por perto.

Dele, saiu doutor Otto, diante de abismados olhos incrédulos. Bom dia, como vão? E pela primeira vez dirigiu um cumprimento àqueles que mantinham brilhando o chão da empresa. Há quem jure que o viu até mesmo sorrir de leve, mas quem não estava na hora jamais acreditou.

Sentou-se em um banco estragado de cimento. Abriu uma vistosa sacola de nylon e de lá tirou uma chuteira branca, da marca mais cara, estalando de nova, sem um risco de uso sequer. Ficava perfeita junto com o meião vermelho bem esticado e que cobria a caneleira. E ainda havia o calção branco com listras vermelhas, a camisa branca de jogador profissional com um número 10 nas costas bem abaixo do nome dele gravado também em vermelho: OTTO.  Tudo um imenso desperdício para aquele campo careca, acostumado apenas a chuteiras gastas e tênis remedados.

– Como é? A bola vai rolar ou não? – e doutor Otto perguntou ansioso, mas todos entenderam como ordem e foram vestir correndo suas camisetas desbotadas, calçar suas chuteiras cansadas de tantos domingos de alegrias.

Em pouco tempo os times estavam escolhidos, quem não fosse jogar aquela primeira, formava outros times de fora esperando para entrar no lugar do que perdesse.  

E a bola foi pro centro do campo. Lado-a-lado, para jogarem juntos, doutor Otto e Sebastião. Os dois em silêncio esperando que apitassem a saída. Sebastião com os olhos enfiados na bola, sem nem triscar para o lado do doutor.

Quando a pelota rolou, o que se viu foi o verdadeiro maestro que era doutor Otto com a bola nos pés. Colocava a redonda onde queria e como queria. Parecia que usava uma fita métrica imaginária antes de lançar. Com jogo de corpo se livrava  do marcador com dribles desconcertantes, e a precisão de seus passes abria fendas na defesa adversária. Fugia dos zagueiros usando a velocidade e alguns comes humilhantes. Para conseguir pará-lo, só dando um tranco. Doutor Otto caía, rolava e se levantava sem reclamar, sem pedir qualquer satisfação ao juiz ou ao marcador. Batia a falta rápido e seguia jogando, agora amarelos de barro a chuteira, a camisa e o calção outrora tão brancos.

A atuação de doutor Otto revelou naquele domingo um Sebastião mortal no comando do ataque, um artilheiro que não perdoava uma, que colocava para dentro as bolas açucaradas que recebia do diretor com quem sequer trocava um olhar no dia-a-dia. Sebastião corria, levantava a mão, doutor Otto lançava, punha-o na cara do gol e só esperava para ver a rede balançar. Ninguém ali sabia que Sebastião jogava tanto, ninguém nunca entendeu o jeito como ele se movimentava dentro da área.

E a dupla foi destruindo com arte e sem piedade os times que esperavam do lado de fora para jogar no lugar dos que saíam destroçados pelos passes perfeitos do doutor Otto, pelos chutes sem piedade do Sebastião.

Virou rápido o time a ser batido, embora ninguém conseguisse. E o maestro e o matador guardaram para a última das partidas, quando o sol de quase meio-dia esgotava as últimas gotas de sacrifício de todos, o desfecho consagrador da dupla. Extenuados, perdiam por dois a zero quando empataram com gols de Sebastião após passes milimétricos do doutor Otto. E no último minuto, com o juiz já olhando o relógio e de apito na boca, uma bola rebatida de cabeça pela defesa caiu nos pés do doutor. O maestro ergueu os olhos e observou o goleiro três ou quatro passos adiantado. Numa fração de segundo, fez o cálculo força x distância e mandou por cima. Mas quem sabe o cansaço o tenha feito errar a conta por uma pequena diferença, e a bola caprichosamente beijou o travessão.

Mas o que seria da maestria de um não fosse a tenacidade do outro, uma relação já tão completa quanto recém-nascida? E enquanto a pelota voltava caprichosamente de seu beijo na madeira, Sebastião surgiu no meio dos zagueiros feito uma flecha, e com uma testada decidida rebateu a criança na direção da baliza, bem no canto oposto ao que o goleiro quedava-se vencido.

Braços erguidos, um berro esvaziando o peito, Sebastião vira-se para dentro do campo e ao seu encontro vem doutor Otto erguê-lo pela cintura, gritando elogios e beijando-lhe a testa artilheira assim que o devolveu ao chão. Encabulado, Sebastião retribuiu com um abraço, antes que o corpo franzino desaparecesse nos afagos de todo o time.

No dia seguinte de manhã, era o elevador de serviço que demorava muito. E como um dos outros três estivesse parado a sua frente, vazio e de portas abertas, resolveu entrar com seu balde, seu rodo, seus panos encardidos. Só não contava que no próximo andar entraria doutor Otto, meia hora antes do que costumava chegar. Completando a situação, estava acompanhado do presidente da empresa.

Apenas balançou a cabeça, nada disse, nenhuma expressão que o fizesse diferente do doutor Otto de todos os dias. O outro, o do domingo de manhã, deve ter ficado lá no campinho comemorando o gol do último minuto, e de lá talvez nunca mais saísse.

Subiram ele e o presidente falando de negócios, de crise, de problemas de gente rica. Sebastião mirrado sumia no constrangimento, só queria que aquele elevador chegasse logo.

E quando chegou, o presidente da empresa saiu um pouco à frente, deixando doutor Otto uns dois passos atrás. Com a mesma agilidade de seus passes em campo, voltou-se para o faxineiro, sério como sempre, mas com o polegar direito levantado.

– Arrebentamos ontem, hein Tião? – e saiu rápido a tempo de pegar o presidente, não chegando a ouvir Sebastião gaguejar um “pois é, doutor, pois é.”

O adeus do bibliófilo

Na semana em que o Brasil perdeu José Mindlin, eu e o poeta Alexandre Pilati conversamos na BandNews 90,5 FM em Brasília sobre o dono da maior biblioteca particular do mundo.

O meu papo com o Pilati vai ao ar todas as 2ªs feiras às 16h51 e as 3ªs às 11h30. Abaixo, o texto do Pilati que serviu de base para a nossa conversa no ar.

O adeus do bibliófilo

Por Alexandre Pilati.

 

Se vamos ao dicionário, encontramos a seguinte definição de bibliófilo: “indivíduo que tem amor aos livros, especialmente os belos e raros; colecionador de livros. Esta definição fica pequena ou insuficiente se a comparamos com a vida, a atividade e a dedicação aos livros do maior bibliófilo brasileiro, o paulista José Mindlin, que faleceu no último dia 28/02 aos 95 anos. Muito mais do que alguém que amava os livros raros e os colecionava, Mindlin foi um dos grandes estudiosos e humanistas do país. Na verdade, o que o bibliófilo amava nos livros era a possibilidade que cada um deles tem de fazer com que o leitor vislumbre um mundo melhor. Num país que despreza a leitura, Mindlin, portanto, significa muito.

Ele era um apaixonado pelos livros e pelas histórias que vivem dentro e fora deles. A seu respeito, o crítico literário e amigo pessoal Antonio Candido escreveu no prefácio de Uma vida entre livros (Edusp, 1997): “ele é um leitor indiscriminado e seletivo, glutão e refinado…ele é o tipo ideal de leitor, porque sabe que praticamente nenhuma leitura é perda de tempo se der prazer.”

 

A origem da bliblioteca e suas preciosidades

Mindlin era dono da maior biblioteca privada do país, com cerca de 45 mil volumes. Para atingir esse número expressivo, começou cedo: aos 13 anos de idade. Foram mais de 80 anos dedicados à leitura e à busca de obras e documentos raros. Para se ter uma idéia da sua paixão pelos livros, Mindlin passou quase 15 anos procurando uma primeira edição de O Guarani, do cearense José de Alencar, autor do Romantismo brasileiro. Ele fez uma verdadeira peregrinação atrás do volume, que estava com um colecionador grego, a quem Mindlin mandou muitas cartas, sem resposta. O blibliófilo estava em Paris quando um livreiro que era seu conhecido, por coincidência, disse que estava com o colecionador grego. Na viagem de retorno ao Brasil, Mindlin dormiu no avião da Air France e o livro se perdeu. Já sem esperanças, alguns dias depois, a empresa aérea o contatou dizendo que a preciosidade havia sido encontrada intacta. Assim, o raríssimo exemplar d’O Guarani, de 1857, um dos três que havia no mundo inteiro, passou a integrar a biblioteca de Mindlin.

Entre os inúmeros tesouros individuais da sua biblioteca, estão a primeira edição de Os Lusíadas, de 1572, o original de Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, além de obras de Carlos Drummond de Andrade, que o autor enviava pessoalmente para Mindlin, com dedicatórias escritas em versos.

A Brasiliana Guita e José Mindlin

Estes livros e tantos outros documentos constam do acervo que foi doado à Universidade de São Paulo, em 2006, formando a chamada Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. São cerca de 17.000 títulos, ou 40.000 volumes que reúnem obras de literatura brasileira (e portuguesa), relatos de viajantes, manuscritos históricos e literários (originais e provas tipográficas), periódicos, livros científicos e didáticos, iconografia (estampas e álbuns ilustrados) e livros de artistas (gravuras). Parte desse acervo pode ser consultada no site: www.brasiliana.usp.br.

Uma vida entre livros

Uma vida entre livros é o resumo da vida de José Mindlin e também o título da “biografia de sua biblioteca”, que foi escrita em 1996 e publicada pela Editora da USP. Atendendo a uma sugestão de Antonio Candido, Mindlin narra, num texto que transborda paixão pela leitura e pelos livros, como formou a sua imensa biblioteca, contando episódios marcantes de sua vida. É um livro que todos que amam a leitura deveriam ler.

Como o próprio bibliófilo gostava de dizer “os homens passam. Os livros ficam”. E Mindlin deixou mais que livros; deixou um legado preciosíssimo para o país. O legado do exemplo de um homem de sucesso como empresário que sabia que a humanidade é mais importante do que o acúmulo de capital. Sua devoção aos livros era uma devoção ao gênero humano.

 

 

Brasil x Argentina. O lado babaca da rivalidade.

Um dos problemas da publicidade é que ela sempre descobre uma fórmula atraente de vender produtos usando como pano de fundo um mote qualquer que mexa, de preferência, com paixões, gostos e costumes nacionais. É assim com louras, cervejas, carros, churrasco. É assim com o futebol.

O outro problema da publicidade é parecer não se dar conta de que o uso com validade indeterminada desses motes cansa, esgota o consumidor, perde sua essência primeira, ou seja, a graça. É como piada repetida várias vezes. Pela mesma pessoa.

Nossa rivalidade com os argentinos me parece ser um desses casos em que em todo almoço de família o cunhado conta a mesma história sobre o Lula e a Dilma. Talvez os publicitários não tenham reparado que a cutucada trivial em nossos vizinhos já não provoca as mesmas risadas de antes. Mas não estão sozinhos. Pra sorte da categoria, talvez o consumidor também não tenha notado que a piada gastou. Então, fica rindo sem muito querer rir, fica rindo porque o comercial é bem produzido, porque quando o assunto é argentino sendo sacaneado, temos que rir pois o senso comum já decidiu que é engraçado espezinhar argentino. E não fica bem dizer que uma coisa não é engraçada quando todo mundo acha – ou pensa – que é.

Enfastiado, vejo começar a descer a avalanche de comerciais sobre a copa do mundo. Das mega-produções dos anúncios dos bancos ao amadorismo dos comerciais de lojas de sapatos, há invariavelmente, em boa parte deles, um argentino objeto de deboche do brasileiro sempre malandro, bancando superioridade com suas cinco copas do mundo contra as duas dos hermanos, palavra que, aliás, a banalidade desses comerciais fez o favor de tornar insuportável.

Não tenho idéia se essa chatice tem sua versão no outro lado das Cataratas do Iguaçu, mas fico imaginando se eles resolvessem nos dar o troco alardeando o número de livrarias que existem em Buenos Aires ou a decisão de punir os generais que mandaram torturar e matar durante a ditadura deles. Levaríamos um toco de 3 X 0 só no primeiro tempo.

A propaganda cumpre seu papel de ser massiva não apenas no desgastado palco da rixa entre os dois países. Seja qual for a situação tomada como pretexto para vender alguma coisa, o objetivo claro é impedir que o sujeito respire até que se convença de que sua existência será bem melhor se tomar aquela cerveja da loura boazuda ou trocar de operadora de celular.

Mas é na época dos grandes eventos, como a copa do mundo, que a capacidade de exaurir os nervos do cidadão alcança grau máximo. Hoje, no twitter, o comediante Rafael Bastos (CQC, da Band) disse que a publicidade faz com que ele odeie os eventos antes de eles começarem. Lembrei-me das Olimpíadas de 2004, do massacre da mídia querendo nos convencer – e convencendo milhões – de que a ginasta Daiane dos Santos era uma divindade encarnada que pulava de um lado a outro ao som de Brasileirinho. Nada contra ela, mas quando seus resultados ficaram bem abaixo do que prometiam o Galvão Bueno e a Coca-cola, confesso que não senti a mínima pena. Ao contrário, sobreveio-me alívio ao pensar que a frustração me livraria de enxergar o rosto da ginasta até no ralo do banheiro.

Este ano, claro, não será diferente, mas estou preparado, aguardando tranquilo que a Visa, o Itaú, a Vivo tentem me convencer que a seleção do Dunga é a de 70 rediviva.

PS: Meu quarto livro de contos, A liberdade é amarela e conversível, está sendo sorteado na comunidade Viciado em Livros, que tem mais de 90 mil participantes no Orkut. Acesse http://goo.gl/gOCf e concorra.

O povo unido. Por mim mesmo, de preferência.

É lenda que o brasileiro não se mobiliza para protestar ou reivindicar. Mentira, folclore. Há sim muita mobilização e capacidade de fazer barulho. Desde que seja em interesse próprio, financeiro de preferência.

Os recentes escândalos em Brasília mereceram a perplexidade da população. Só que ninguém passou da boca aberta de espanto para abrir a boca e gritar de revolta. Indignados, mas passivos, todos assistimos pela televisão ao grupo de estudantes que invadiu a Câmara Legislativa do Distrito Federal, mal ou bem os únicos que ousaram dizer aos ladrões que “aqui ninguém é palhaço não, vamos acabar com essa pouca vergonha”. Mesmo assim houve quem enxergasse excessos e radicalismo.

Entretanto, se o motivo é o aumento da gratificação, o cumprimento do acordo salarial ou pedir para ganhar o mesmo que outra categoria, aí aparece gente de todo os cantos, a praça lota, a avenida é bloqueada, verdadeiros cantos de guerra são entoados, fazendo as veias ameaçarem pular do pescoço.

Esta semana, centenas de policiais e bombeiros do Brasil inteiro fecharam a Esplanada dos Ministérios. Faziam protesto para pressionar deputados e senadores a aprovar projeto que desse às duas categorias o mesmo salário dos colegas do Distrito Federal. Uma das principais vias da cidade ficou fechada por mais de seis horas, atrasando a vida de milhares de pessoas no meio da tarde de um dia comum. Ouvindo gritos inflamados dos manifestantes, a PM não se meteu a besta de tirá-los dali para liberar o trânsito. Eram policiais, certamente havia gente armada. A todo o momento, o comando da operação no local informava sobre negociações com os líderes do protesto, negociações intermináveis que não devolviam a Brasília, naquele momento, o direito de ir e vir. Aliás, foi a mesma PM que em dezembro não negociou um minuto sequer e chegou descendo o cassetete e mandando bombas de gás em cima dos estudantes que protestavam contra a bandalheira do governo Arruda.

Ou seja, mobilização existe, capacidade de se organizar também, desde que seja por um direito individual, não importando se o protesto massacra o direito maior, que é o coletivo.

Carro preto.

Desde que se entendia por gente, isso ainda na época dos velhos opalões, Zedias via cruzarem a cidade aqueles carrões pretos, com placas especiais feitas de chumbo e letras e números dourados, alguns com o brasão da República. Nelas, sempre vinha escrito que figurão viajava naquele carro, ministro de não sei o quê, presidente de não sei onde, desembargador do tribunal X, que ninguém sabia onde ficava e muito menos para que servia. Era preciso que ficasse claro quem viajava naquele carro, para que nenhum brasileiro mirrado, verminoso e morto de fome se metesse a besta.

O problema é que Zedias nunca engoliu muito bem essa história de carro oficial. O pai, escriturário até as migalhas da aposentadoria, se espremia no ônibus, no trem e lá ia ganhar a vida, e foi assim a vida toda.

Mas o pai não é ministro, Zé, não é autoridade, um irmão tentava que Zedias aceitasse os fatos com a correta resignação que cabe ao contribuinte assalariado.

Por isso mesmo, ué! Se é autoridade, tem dinheiro pra comprar automóvel, e Zedias não se curvava.

Ele mesmo ia para cima e para baixo na base no vale-transporte. Carro só foi ter aos trinta anos, já casado, um Fiat 147, que não se fabricava mais há muitos anos.

Diziam que em Paris o prefeito ia trabalhar de metrô, então por que aqui flanava-se a bordo de modelos impecáveis, com motorista à disposição, ar-condicionado ligado e os vidros levantados que é para não sentir o cheiro e o bafo quente do país que paga aquilo tudo?

E nada dos carros mais baratos, nacionais feitos para a classe-média bem média. Parece que só presta se forem daqueles em que o interior é mais luxuoso que a sala da casa de Zedias, uns que, contam, não são nem feitos no Brasil, vêm de encomenda lá de fora.

Tirando do bolso da gente é fácil ter luxo, né? Rir com dente é mole, quero ver é rir sem dente. E lá ia Zedias praguejando contra qualquer engravatado que passasse escondido em carro preto.

Até que calhou de Zedias estar parado no sinal e ao lado encostar um estalando de novo, a lataria brilhando tanto que servia de espelho. O preço daquilo talvez fosse o de muito apartamento por aí. Na traseira, a placa informava a utilidade do figurão na Terra: ministro tal da turma tal do tribunal superior de sabe-se lá o que faz de bom pelo povo. Calhou também da gasolina ter aumentado de preço pela terceira vez em duas semanas, e de naquela manhã Zedias ter recebido em casa a facada do IPVA.

Olhando aquela suntuosidade motorizada, Zedias ficou resolvendo enquanto o sinal estava vermelho: falo ou não falo? E como o verde demorasse, buzinou uma duas três vezes, até que o motorista abaixou o vidro.

– Que é, cara?

– Chama a autoridade aí detrás.

– Chamar pra quê?

– Manda o figurão abaixar o vidro, pô, não sou bandido não.

O vidro fumê da porta traseira veio, então, descendo lentamente. Lá dentro apareceu uma cara gorda e vermelha, uma papada banhuda entalada no colarinho, um nariz torcido de quem passou numa fossa aberta.

Com uma espécie de ironia raivosa, Zedias mandou a estribeira às favas.

– ‘Tá gostando do carrão, ministro? O senhor deveria me agradecer, porque fui eu que paguei pro senhor, saiu do meu bolso.

Antes que o vidro levantasse todo, o sinal abriu e o motorista arrancou.

– Pros quintos dos infernos vocês! – e Zedias saiu bem atrás.

A liberdade é amarela e conversível. E solidária.

O meu 4º livro de contos é destaque no Março temático Literário-gastronômico do restaurante Panelinha, na 116 norte, em Brasília. O evento, como bem sugere o nome, reúne gastronomia e literatura e faz parte de uma parceria chamada Confraria do Bem. A confraria junta o restaurante Panelinha e a ONG Chamaeleon, que ampara crianças vítimas não apenas de violência ou abuso sexual, mas de maus tratos de forma geral e covardias afins.

A idéia é simples: o cliente vai ao restaurante, se delicia com o cardápio, conhece a obra de um escritor contemporâneo e de quebra colabora com o trabalho de proteção a essas crianças.

Até 31 de março, A liberdade é amarela e conversível (Coleção Rocinante, 7Letras, 2009) será vendido abaixo do preço das livrarias e internet, onde custa R$ 28. Por causa do projeto social, o freguês do Panelinha poderá adquirir o livro por R$ 22,40, um desconto de 20%. Parte de meus direitos autorais serão doados ao projeto tocado pela ONG Chamaeleon.

Completando a programação, no dia 27 de abril darei palestra no restaurante sobre liberdade. Na verdade, será mais um bate-papo, uma troca de idéias acerca do tema com os frequentadores do restaurante.

Espero vocês.

Bom apetite e boa leitura.

As crianças agradecem.

Eddie Vedder melhor do que o Pearl Jam?

Por duas ou três vezes estive com o disco solo do Eddie Vedder nas mãos para comprar. Fiquei naquele compra- não compra levo-não levo, mas sempre o devolvi às prateleiras das cada vez mais vazias lojas de CD.  Até que o aprendiz de feiticeiro da BandNews FM e “batera” da banda brasiliense Lafusa, Guilherme Guedes, despejou Into the Wild em meu poderoso Ipod de 120GB. Já na metade da audição do disco em que a capa é Eddie Wedder em cima de um ônibus, deu pra perceber o tempo que perdi sem ter na minha Library o trabalho solitário do vocalista do Pearl Jam.

Into the Wild explora o que Eddie Wedder tem de melhor como vocalista: a voz. Aquele timbre grave, que no entanto não deixa de ser alto, está de tal forma nítido nas 13 faixas do CD, que assume com naturalidade o posto de principal elemento deste trabalho de Wedder. E isso não vinha acontecendo nos últimos discos do Pearl Jam, em que os pedais e estridências das guitarras, excessivos em alguns casos, chegam a suplantar a voz de um dos melhores cantores da história do Rock, ou pelo no que se fez no gênero nos últimos 30 anos. E antes que perguntem: eu adoro Pearl Jam.

Colaboram com a excelência da voz de Eddie Wedder em Into the Wild, as belas melodias, na verdade a característica do disco que primeiro salta aos olhos (ouvidos, né?) de quem escuta pela primeira vez. Pela segunda também, e daí em diante. São melodias simples, que parecem ter brotado sem esforço do compositor e que da mesma forma entram em nossos ouvidos. E como a simplicidade faz a cama para a beleza, temos belas canções, baladas aconchegantes para se ouvir no carro ou em casa em tardes nubladas de vento de chuva, como esta em que escrevo. Todas, é bom que se diga, amparadas em ótimos arranjos e harmonias. Destaque para Rise, Hard sun, End of the road e No more, mas qualquer uma que eu relacionasse aqui não seria injustiça. Nessas quatro, e em todas elas, há um túnel remissivo para a metade dos anos 90, tão a cara do Pearl Jam. Quem viveu a época saberá do que falo.

Aliás, por falar nessas coisas de túnel do tempo, escuto Gin Blossons, banda americana que fez sucesso aqui por volta de 95, 96 com duas músicas: Follow you down e Highwire, do CD Congratulations I’m sorry. E ficaram nisso, nunca mais ouvi falar dos caras, que faziam (ou fazem) uma espécie de surf music mais denso, encorpado. Notícias deles, só no Google. Quem tiver outras, que as traga.

Gin Blossons será minha retribuição pelo Eddie Wedder ao ipod do Guilherme Guedes.

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