“As filhas moravam com ele” é o título da coletânea de contos que o jornalista e escritor André Giusti acaba de publicar pela Editora Caos & letras. Lemos em sinopse da obra, que Giusti nasceu na cidade do Rio de Janeiro e mora em Brasília desde o final dos anos 90. Tem nove livros publicados entre contos, crônicas e poemas. Também é jornalista com 30 anos de experiência. Já foi repórter, apresentador e chefe de redação no Sistema Globo de Rádio e no Grupo Bandeirantes de Comunicação. São informações que para mim, se revestem de certa justificativa do porque guardo deste autor (assim como de outros tantos), como que uma luzinha que acende na memória, quando ouço seu nome. Seria mais correto afirmar que uma centelha me ilumina a memória como sinônimo de qualidade literária. Voltaremos a isto adiante…
20 narrativas estão agrupadas no volume. Todas de inegável qualidade a mostrarem que foram redigidas por autor experiente e de sensibilidade acima da média. Entretanto, não nos parece que há, por assim dizer, uma temática comum, ou por outo lado, e ingenuamente, um agrupamento casual. Há mais, muito mais. Embora a sinopse acima nos informe também que Giusti escreveu parte dos 20 textos desse volume nos últimos dois anos sobre o impacto da pandemia, e haja também textos dos anos dois mil, e até mesmo da década de 1990, que não haviam sido publicados em livros anteriores, somos impelidos a divisar duas tendências, duas vertentes que parecem se firmar no conjunto da obra de um autor que tem plena consciência de que a linguagem é seu instrumento cirúrgico por excelência. Ao sugerir a verticalização sugestiva no conjunto dos textos, ele aplaina arestas, desbasta o acessório e acaba por impor aquilo que, a seu ver, é o núcleo e constitui a essência, o cerne do momento revelador de cada um, e que se bifurca como dissemos, seguindo duas direções que, ao fim e ao cabo, se entrelaçam ao tempo em que se complementam.
De um lado temos os textos nos quais parece falar mais alto a preocupação com o social, e as relações entre os homens no mundo contemporâneo. Há toda uma elaboração crítica da nossa tragédia social, expressa na doença das diferenças e das violências – violências da pobreza e da miséria, mas também a violência moral, a violência de quem está manietado pela desesperança… Um verdadeiro inventário crítico da sociedade de consumo.
Em “Adega do bairro”, temos o suprassumo do que é a classe média brasileira e como nos comportamos ante quem nos parece mais pobre e/ou mais ‘rico’ do que nós. A ida a uma adega de bairro, primeiro para comprar um vinho barato, alcança aos poucos, pela repetição, desejos de consumo mais apurados e mais caros. A conversa com outro frequentador, vai incutindo no protagonista, desprezo pelos de sua condição social de cidadão classe média com o salário apertado e contadinho. Humilhação, escárnio, desdém e menosprezo vão criando uma atmosfera, que incita estados de paroxismos que redundam em violências extremas no qual avulta a dimensão da pequenez humana. “Uma história de Brasília”, começa sentencioso: “O erro de Venâncio foi não ter notado que ser fisgado por aquele olhar de abismos seria toda a sua perdição. Pois era isso o olhar de Paula.” É um conto no qual o patético drama da sobrevivência nas zonas rurais de periferia se confronta com o lado diabólico do erotismo – a busca do prazer como fuga ao desespero existencial, a competição vitoriosa com a morte na fugacidade de orgasmos. Tudo a prenunciar o veio trágico que irá aflorar no desfecho.
Em “Outra história de Brasília”, temos a prosaica atuação de um servente que limpa o chão de um corredor de certa “corte especial do tribunal pleno”, até que é repreendido por um desembargador, simplesmente porque não quer ter sua passagem pelo local obstaculizada pelas vassouras, rodos e panos imundos do servente. Vejam só… Já em “O maestro e o matador” há certa semelhança com o conto anterior. Assemelham-se no que diz respeito ao encontro fortuito de gente de variados estratos sociais. Neste, é a vez de outro servente, o Tomirez, se encontrar com o doutor Otto, principal executivo da matriz brasileira do conglomerado alemão. A trama do texto acaba juntando esses dois homens naquilo que tanto o brasileiro endeusa. O futebol. Uma promessa de redenção? De inclusão social? – oh expressão mais filhadaputa essa no Brasil, que serve para tudo, inclusive e sobretudo, para manter tudinho como está”, O futebol. A funcionar como mecanismo de generalizada e perdoada injustiça e sua lenta e prazerosa amortização. Todos esses contos sem dúvida, representam expressões distintas e diversas de uma mesma denúncia social. E finalmente, lemos o excepcional “Ana Célia” uma a contundente e pungente crítica à sociedade de consumo e os padrões de valores que acachapam o humano.
Já em outros contos, e aqui a vertente ainda mais interessante do livro, é flagrante a preocupação em captar não o detalhe cotidiano, mas a angustia dos personagens com problemas maiores que estão por trás da situação narrada. O sofrimento (e há muitas reflexões amargas na obra) está na esfera individual. A denúncia social se equilibra ao momento lírico e provoca efeitos contundentes no leitor. Aparecem os problemas de homens comuns, num país tão cheio de diferenças e de discrepâncias, como símbolos de riqueza convivendo ao lado de imensas carências sociais, ou como poesia que sobrevive em meio à pobreza, à miséria, à corrupção. O narrador dos contos está habituado a saltar de um desses níveis a outro sorrateiramente, sem aviso para o leitor que, muitas vezes, conclui a leitura completamente atônito, porém mais humano. E isto permite ao leitor o estabelecimento de afinidades entre prosa e a poesia ou a filosofia, graças ao grau de subjetividade aliada à expressão capaz de definir fatos e sentimentos. São vários os exemplos, dos quais citamos: “A felicidade dolorida do perfume de loção (ou Maria Paula não saberá)”, “Mariana em trinta metros”, “A moça do jaleco Branco”, “2226-1307”, “As filhas moravam com ele” e ainda mais um digno de figurar em qualquer antologia mundial do gênero conto: “Bairro Anatole”. São textos que intensificam a presença da vivência subjetiva na narração de dados objetivos, na expressão do mundo narrado. Positivamente, a representação esclarecidamente realista recebe musculatura com a valorização da subjetividade.
Na impossibilidade de comentar cada um deles detidamente, falemos rapidamente de “Bairro Anatole”, texto no qual o talento do autor converte o relato a um contrário da narrativa clássica e faz dele um testemunho da situação do indivíduo que liquida a si mesmo nesses tempos em que não se pode mais garantir o mundo cheio de sentido. No âmbito textual, a subjetividade, aliada à simplicidade e pureza da linguagem, leva o leitor a co-realizar algo já realizado, como se estivesse presente na ação.
No primeiro parágrafo desta resenha, mencionei a centelha de qualidade que me vem à mente ao saber de novos livros desse autor. Há exatos sete anos (2017), escrevi sobre Giusti, à propósito de seu livro de contos “A maturidade angustiada”: A literatura opera exatamente no plano em que o homem vive a vida como luta, tomada a consciência da morte, do envelhecimento, da solidão, das angústias e dos destinos humanos. Quando há indagação, inquietação e conflito, aí entra a literatura. Aliando uma faculdade de observação precisa à quadros íntimos de personagens, André Giusti que é autor experiente com vários títulos publicados, pratica em seus contos aquilo que ensinou o mestre Anton Tchekhov: A unidade básica de modulação e desenvolvimento, buscando sempre um insight, o mergulho existencial, a visão interior que reflete a personalidade e os conflitos de suas criaturas.” … “os contos de Giusti se aprimoram na medida em que o narrador-autor ao introduzir elementos de lirismo, dramaticidade e sugestão, intensifica a revelação, ilumina mais o instante do mergulho existencial e provoca inexoravelmente a empatia com o leitor.” Escrevi isto há sete anos e o reafirmo vigorosamente, e ainda mais uma vez, agora em 2024.
Livro: “As filhas moravam com ele” – Contos de André Giusti, Editora Caos & Letras, Nova Lima – MG, 2023, 136p. ISBN 978-65-80804-28-3