Sobre fazer vergonha em degustação de supermercado

Sabem esses supermercados que fazem degustação (geralmente os mais caros) para que a gente fique com água na boca e compre tudo o que está naquelas bandejinhas?

Pois é, eu faço vergonha neles.

Encho as mãos de batata frita de saco, com aqueles biscoitos que chamam de cookie, de torradinha com pastinha disso, pastinha daquilo

E não é só uma vez não; são pelo menos umas três.

Eu sempre chego no final da tarde, na hora do lanche.

Isso mesmo, eu vou nesses mercados, na hora da degustação, para lanchar.

No geral, faço umas comprinhas, e sempre volto, depois de pagar, para uma última rodada.

Também já aconteceu de eu entrar no mercado só para filar os petisquinhos 0800 e sair sem nada nas mãos.

E quando isso acontece e acho que o gerente tá me olhando, eu saio e falo em voz alta “poxa, não tem o escargot da marca que eu gosto”.

Dica: Mário Baggio e a arte de puxar o tapete do leitor

Sou leitor de Mário Baggio há cerca de cinco anos.

Já li dois ou três livros dele.

Agora, devoro as páginas de A vida é uma palavra muito curta, da Editora Penalux.

Acho que tenho um certo estofo como leitor do Baggio para dizer: esse é o melhor livro dele, e o consagra, definitivamente, como um dos melhores contistas da atualidade.

Mas nesse status há uma característica em Mário Baggio que o difere de outros grandes autores.

É a sua inventividade.

Eu gostaria de saber onde ele vai buscar as ideias para escrever contos que nos tiram o tapete (o maior desafio de um escritor), que saem totalmente do lugar comum da (em vários casos) literatura de hoje em dia, tão amordaçada por uma obrigação velada de se ter que escrever sobre determinados temas.

Baggio não cai nessa e cria histórias surpreendentes, como O enigma do cemitério, um dos melhores contos que li na vida.

Baggio: puxando o tapete do leitor

Uma outra característica que me prende a suas histórias é que várias delas acontecem sem que tenhamos a mínima ideia do contexto, porque o que importa é a cena, o detalhe, o específico, e não o geral. É uma espécie de mágica, porque a história é apenas uma cena de uma situação de que não temos a mínima ideia. E mesmo assim a gente entende tudo. Não conheço nenhum autor que faça isso, que tenha esse poder de inventividade.

Confira A vida é uma palavra muito curta e se prepare para ter o tapete puxado.

recortes de uma caderneta de rascunho

*
eu quero sentir
a paz do cheiro da chuva

*

(AA)

cada dia que resisto
à vontade de te procurar
é menos um dia,
feito
alcoólatra e drogado
que fogem do vício

*
me acomete a vontade do nada
do não ir
e muito menos do ficar
entojo desse lugar
uma ânsia de sumir
e reaparecer
em outra parte,
embora me falte
a ideia
de onde possa ser

*
sobre a mesa
uma caneca de ágata
outra de louça.
na garrafa térmica
um resto de café
feito antes das oito.
uma taça da noite passada,
com borra de vinho
no fundo,
não sabe quando
será lavada.
caminhar pedalar correr
almoçar com quem
ou com ninguém.
o domingo olha de fora
esperando pra acontecer

*
ah, meu espírito romântico…
esse arquiteto
das impossibilidades.

*
alegria tristeza
ódio compaixão
certeza desespero
desprezo misericórdia:
ora quero estripar
quem não me dá
passagem no trânsito;
pouco depois
quero adotar uma criança
cega surda muda paraplégica.
sou um perfeito ser humano
um autêntico e genuíno
modelo mediano de gente,
sentindo tudo
o que um cara normal
é capaz de sentir.


*
meu talento
é sentir saudades.

*
sem pretender
a felicidade,
apenas exercito
o fazer com que cada segundo
passe mais devagar
do que na realidade.
construo assim
o que resta do dia
o que me sobra da vida
entre um e outro café
um e outro chope
tomados a esmo.

atento ao que
se passa em volta
estou dentro de mim
em paz comigo mesmo.

montes claros 2.3.2024

*
será que voltaremos
a fazer o que fazíamos?
que faremos finalmente
o que nunca conseguimos?
é o que me pergunto ainda
(cada vez mais
com menos esperança)


*
meio
cansado
meio
puto
meio
de
saco
cheio
de
tudo


*

a nossa separação
não mudou
as coisas por aqui.
continuo calçando
os mesmos chinelos
depois do banho
lavando a louça
do jantar
e indo dormir
ao teu lado
pouco depois das dez


*
mia couto

um poema
dois poemas
três quatro dez
vinte páginas
quarenta páginas passaram
chegou-se à metade
do livro
e à impressão
de que nada
mais precisa
ser escrito

Caos e Letras seleciona meu romance de estreia

É com muita alegria e contentamento que venho dizer que meu primeiro romance, Só Vale a Pena se Houver Encanto, está entre os 24 selecionados no edital de chamamento de originais da editora Caos e Letras.

Foram 540 livros recebidos, e meu romance (o primeiro que escrevo, repito) está entre os seis do gênero escolhidos pela editora.

Abaixo, uma breve sinopse do que se trata Só Vale a Pena se Houver Encanto.

Alessandro Romani é um homem de classe média e meia idade.

Bem-sucedido até seus trinta e poucos anos, começa, a partir daí, a atravessar uma série de adversidades, tais como demissões, crise financeira, morte dos pais e amigos, divórcio e outros rompimentos, frustrações e decepções de um modo geral.

Buscando o encanto que o faça sair de casa sem que seja apenas para pagar as contas, Alessandro Romani precisará entender que tudo que acontece de ruim na vida pode ser aproveitado para o crescimento pessoal e, de preferência, vivido com bom humor e naturalidade.

As Filhas Moravam com Ele por Alexandre Kovacs (Mundo de K)

O Mundo de K, do critico literário Alexandre Kovacs, é um dos blogs literários mais respeitados e consolidados da atualidade. Seu prato principal e literatura contemporânea. A seguir, uma resenha que me deixou pra lá de feliz sobre meu livro mais recente, As Filhas Moravam com Ele

O mais recente lançamento de André Giusti é uma coletânea de contos abordando diferentes aspectos das relações humanas em uma sociedade que prioriza a busca de poder aquisitivo em nome de um padrão de consumo que normalmente tende a ser confundido com felicidade. Este aspecto fica claro logo no conto de abertura do livro, “Piano, roseira, passarinhos e mangueira”, no qual o protagonista tenta convencer a filha caçula a escolher uma profissão não apenas pelo retorno financeiro imediato e, ao mesmo tempo, questiona o comportamento desagradável dos vizinhos frustrados: “Ele acha, e sempre achou e cada dia acha mais, que a vizinhança naquele prédio é cheia de pobre que só tem dinheiro e que essa frase, sucesso de rede social, desenha bem toda aquela gente.”

O autor provavelmente reflete a experiência como jornalista no seu trabalho de escritor, criando textos que podem culminar em inusitadas situações de violência, como em “Adega do bairro”, mas também resultam, em alguns casos, nas mais comoventes lições de amor, amizade e esperança, normalmente quando escreve inspirado por uma partida de futebol, algo pouco usual na nossa literatura e, ainda mais raro quando se combina na mesma narrativa uma história de amor e futebol, ideia que André Giusti desenvolve muito bem em “Domingo, 17 de Julho de 1994 (1)”, um dos dois contos no livro com o título homônimo, a data da final da copa do mundo de 1994, quando o Brasil se sagrou tetracampeão contra a Itália, depois de um longo período sem títulos.

“Débora e eu começamos a namorar na copa de 82, quando ela parou atrás de mim e disse qualquer coisa sobre o nariz do Zico que eu pintava no asfalto da nossa rua. Não nos desgrudamos mais pelo resto da copa, enfeitiçados feito um meio-campo com Cerezo, Falcão, Zico e Sócrates. Depois da tragédia contra a Itália, ela me abraçou e disse ‘quero ficar com você pra sempre’. ‘Pelo resto das copas?’, eu perguntei feliz. ‘Por todas que eu viver’, ela assentiu. Se para outros casais as lembranças dos primeiros tempos de namoro eram músicas ou filmes, para nós era um passe do Zico, uma bomba do Éder. ‘Lembra que você me girou pela sala lá de casa nesse gol do Júnior contra a Argentina?’, e ela sempre tocava no assunto quando reprisavam o lance na TV. […] Essas lembranças misturavam-se às imagens da TV a que eu assistia sem expectativa ou nervosismo. Flashes chegavam do estádio cheio e das praças que reuniam multidões no país inteiro, e eu tentando entender os motivos de meu casamento estar acabando. Cansava de procurar razões e terminava pensando na decadência dos esquemas táticos. Não conseguia aceitar que para ela o amor foi acabando ao longo dos anos, como acabaram os pontas autênticos.” (pp. 39-40) – Trecho do conto “Domingo, 17 de Julho de 1994 (1)”

A desigualdade social é apresentada de forma brutal em “Uma história de Brasília”, tragédia anunciada desde que Venâncio, um trabalhador rural, é conquistado pelo “olhar de abismos” da sensual Paula, um sonho impossível. Já em “Outra história de Brasília”, uma abordagem diferente para um problema semelhante, Joanir é um faxineiro humilhado na “mais alta instância da justiça no país” pelo desembargador: “O senhor trate de terminar essa limpeza antes das oito e meia, que não quero mais chegar aqui e ter que desviar do senhor e de seus baldes e panos imundos.” Em “Ana Célia”, a fome pode estar ao seu lado no balcão de um bar quando a mãe explica para a filha: “É a coxinha ou o ônibus”. Situações de injustiça social que você já deve ter presenciado.

“O erro de Venâncio foi não ter notado que ser fisgado por aquele olhar de abismos seria toda sua perdição. Pois era isso o olhar de Paula: um precipício muito alto, daqueles em que lá de cima não se ouve o impacto do corpo que nele se lança ao encontrar o solo ou a água. Não passava disso o olhar de Paula (como se não fosse pouco): um despenhadeiro onde eram lançados os homens que com ela se aventuravam, uma queda sem escapatória rumo ao desespero e à loucura. Venâncio deveria ter percebido que aquele olhar, àquela hora do dia, na estrada que corta o nada do cerrado e a imensidão da Chapada, só poderia ser provocação do tinhoso. E se percebesse, homem temente que era, teria desviado os olhos para o chão, como fazem de costume, e sempre deveriam fazer, as gentes do interior como ele. Mas pelo encanto que nele despertava, Venâncio encarava esse povo de Brasília como se não fosse de carne e osso, e outro deus, maior e mais poderoso que o das suas preces, os houvesse colocado na Terra. Por isso foi sendo arrastado, engolido pelos olhos castanhos da perdição (a maldição tem olhos castanhos, até hoje falam por lá, virou quase lenda no povoado), feito um incauto que vai caindo numa vigarice, um gordo e manso boi estrangulado pela sucuri.” (p. 44) – Trecho do conto “Uma história de Brasília”

O cancelamento de uma linha telefônica fixa após meio século de “serviços prestados” à família é o tema de “2268-1307”, uma comparação com o lento desgaste de nossa própria vida: “Igual a uma linha de telefone fixo que, com a modernidade, foi a cada dia e ano sendo menos usada. Foi-se aos poucos, cancelada aos poucos, sem que percebêssemos. Até ir definitivamente.” O futebol volta a protagonizar um conto em “O maestro e o matador”, fazendo do esporte um improvável exercício de inclusão. Já o conto que encerra e empresta o título ao livro, “As filhas moravam com ele”, é uma verdadeira preciosidade que vai emocionar o leitor sem precisar de clichês e prefiro não adiantar a surpresa. Um livro muito recomendado de um autor que vale a pena conhecer.

“A maestria do Doutor Otto só não causa mais surpresa do que a letalidade de Tomirez como atacante. Na verdade, a perícia dos passes de um descortina a mortalidade dos chutes do outro. Jamais se vira Tomirez jogar daquele jeito, e naquele domingo, fica claro que ninguém jamais entendeu como joga Tomirez, ninguém jamais enxergou o demônio que é Tomirez dentro da área. Doutor Otto, que nunca o olha nos corredores da empresa, agora é capaz de descobri-lo entre volantes, zagueiros e laterais. Estica a redonda pelo alto ou queimando a grama/terra e, implacável, impiedoso, Tomirez não desperdiça uma, não perdoa o goleiro adversário. O maestro consagra o matador que o consagra em retribuição. O time dos dois não perde, não sai do campinho, nunca é ele que abre a vaga para o time que espera do lado de fora. Torna-se, então, o time a ser batido, está em jogo mais do que uma bola. Está em jogo a honra dos peladeiros das duas outras equipes formadas, e elas decidem se unir na última partida, quando o sol de quase meio-dia parte para minar o restante das forças de todos.” (pp. 101-2) – Trecho do conto “O maestro e o matador”

Literatura brasileira contemporânea

Sobre o autor: André Giusti nasceu na cidade do Rio de Janeiro e mora em Brasília desde o final dos anos 90. Tem dez livros publicados entre contos, crônicas e poemas. Foi indicado ao Prêmio Jabuti com o livro “Voando pela noite, até de manhã” (1997). Outras obras de destaque do autor são “A Liberdade é Amarela e Conversível” (7Letras, 2021, 2ª edição); “A Solidão do Livro Emprestado” (7Letras, 2003 e Penalux, 2018, 2º edição) e “A Maturidade Angustiada” (Penalux, 2017), todos de contos. Também se destacam os volumes de poesia “Os Filmes em que Morremos de Amor” (Patuá, 2016) e “De Tanto Bater com o Osso, a Dor Vira Anestesia” (Penalux, 2021). É jornalista com 36 anos de experiência. Já foi repórter, apresentador e chefe de redação no Sistema Globo de Rádio e no Grupo Bandeirantes de Comunicação.

Para pensar depois da tragédia

Metrópoles

Certamente a hora é de solidariedade, de ajuda, de recolher doações e donativos.

Mas em algum momento depois disso será necessário pensar: o Rio Grande do Sul é um estado em que o negacionismo arregimentou a maior parte da população.

Na eleição de 2022, Bolsonaro teve mais de 56% dos votos; do primeiro para o segundo turno, ele ganhou quase meio milhão de eleitores.

Bolsonaro despreza e debocha de diversas evidências, entre elas a crise climática e o desmatamento que faz do pampa gaúcho, ecossistema típico do Rio Grande, sua maior vítima.

Pampa gaúcho é o bioma com maior alta no desmatamento (Jornal do Comércio)

Supõem-se que o gaúcho, ou quem mora no Rio Grande do Sul, que votou em Bolsonaro concorde com seu candidato.

Tomara que essa fatia superior à metade do eleitorado que foi às urnas em 2022 apoiar o negacionismo não se faça de desentendida em relação ao duro e doloroso recado (talvez já seja um ultimato) que a natureza está mandando.

Lampião

Existe em mim
Um antigo
Lampião de rua,
Daqueles do Rio
Capital do Império.

Nele,
Me escoro na madrugada
Durante uma bebedeira
De juventude.

Sob sua luz
Que amarela
Um pequeno recorte da noite,
O poeta tísico
Murmura versos
Do ultrarromantismo
E com eles tenta
Comover a morte.

Um bêbado estilhaça
Todas
As garrafas que esvazia
Amaldiçoa a sorte
O destino as mulheres e a vida.

Embaixo de meu lampião
E ao som de bolero
Um casal se encontra
À traição
E troca beijos
em uma cena
De filme noir.

Mas nada faz
Mais sentido
Ao meu lampião
Do que a imagem
De teu rosto,
Cada vez mais
Longínqua no tempo
Sempre inaugurando
meus dias,
que amanhecem
Cansados e vazios.

André Giusti, 1989

Eu não gosto que me chamem de poeta

Sinceramente, não gosto que me chamem de poeta.

Não me sinto ofendido, de modo algum, não é isso.

É que o ofício de escrever poesia não é o unico que desempenho como escritor, e quando me chamam de poeta, me sinto um tanto reduzido.

Não que os autores que escrevem apenas poesia sejam de categoria inferior, de modo algum.

Mas em meu caso, há a prosa, com os contos, crônicas e, agora, um romance, que espero deixe de ser inédito no prazo de um ano.

Aliás, o poeta é um escritor. Dizer que alguém é poeta e escritor a meu ver é redudante. O poeta é uma/um escritora/escritor.

E eu sou um escritor que é contista, cronista e romancista. E, na minoria das vezes, também poeta.

Portanto quando alguém me chama de poeta, fico encafifado se a pessoa já leu algum livro meu, já que a poesia é apenas 20 por cento do que publiquei.

E há um aspecto além.

Penso que poeta é uma palavra que pode sugerir alguém romântico, a viver no mundo dos sonhos, na fantasia, desconectado e com a cabeça nas nuvens.

E eu escrevo justamente porque tenho os pés no chão e o olho na realidade.

Poemas para Brasília

Brasília está fazendo aniversário e trago em meu blog poemas que escrevi para a cidade em que moro há 26 anos.

Não são poemas deslumbrados pela capital do país; ao contrário, trazem minha visão crítica e até mesmo ácida sobre a cidade, sua gente e seu modo de vida, o que não significa que eu não goste daqui.

Boa leitura!
*
Eu sempre vou morar na 405 norte *

Dona vizinha me para e conta
de quando chegou aqui em 1980,
dos filhos formados, que cresceram
brincando na portaria.
As sombras verticais da tarde
também seguirão minhas filhas até o infinito, eu comento,
e dona vizinha ainda me conta que os dela
nunca deixaram de correr na portaria da memória,
que até hoje brincam na portaria da lembrança
(dona vizinha tem nos olhos uma saudade
que vai do primeiro ao último dos pilotis do bloco.)

Eu gosto da dona-de-casa
que passa com hora marcada
para fazer a unha,
da estudante que some no arvoredo
a caminho da universidade,
de quem veio do Maranhão
do Piauí
e nunca mais voltou.

Há sempre lua alta que a madrugada derrama
nos azulejos da cozinha
quando bebo água no meio da noite.
Há sempre uns pingos da última chuva
pesando nas folhas,
virando breves cristais de sol
nas manhãs afobadas da minha pressa.
Há sempre o vento dando no alto das árvores,
e o barulho das árvores conta de um tempo que não volta,
mas que também não vai embora.
(Por falar em tempo, dona vizinha,
vamos conversando no caminho,
se não perderemos
o baile de inauguração da cidade)

‘Brasilha’ da fantasia*

Ninguém acorda com culpa na Ilha da fantasia,
ninguém se sente culpado na ilha da fantasia
e não ser de todo inocente
é sempre muito normal na ilha da fantasia.
Na ilha da fantasia não interessam
os olhos inocentes dos filhos antes de dormir
os filhos apontados na rua
o que dirão os colegas na escola
e as crianças dos vizinhos.
Não fere arde envergonha
o olhar confuso das crianças
ao ler o que sai nos jornais.

Vamos ao que importa na ilha da fantasia:
a gratificação a estabilidade
a comissão as garantias
o adicional os benefícios
os 18% que me cabem
se não vou aos jornais
e conto da parte que não te cabia mas você levou
na ilha da fantasia.
Eu te filmei eu te gravei
eu sei de tudo da tua
deliciosa doce vida,
portanto, morreremos de mãos dadas
abraçados
atirando uns nos outros
até que nos esqueça a fugacidade da imprensa
e nos confortem as mãos amigas da Justiça
o entendimento do digníssimo desembargador
a interpretação da lei no tribunal superior.

Venha a meu gabinete
passe em meu escritório
vá com sua mulher lá em casa
daremos uma festa
faremos um jantar
quem sabe outros agitos até de manhã.
Ninguém é culpado na ilha da fantasia
ninguém deve nada
à mulher que espera o ônibus
e não combina bolsa e sapato,
à outra que atravessa a BR
longe da passarela,
nenhuma explicação merece o homem cansado
que sai tão cedo e volta tão tarde
levando no rosto
o resto de sonho desfeito.
Todos deitam sem culpa na ilha da fantasia
depois que se apagam as luzes lilases das festas
que se esvaziam as travessas
sossegam as bebedeiras
calam-se os vômitos
encerra-se o pó
e a paz reina envergonhada.

Cidadão comum

Brasília é uma festa,
Eu posso ver daqui de fora
Olhando lá para dentro
As pessoas dançando
Ouvir as músicas
As conversas
Risadas
Dá para sentir
O cheiro da comida
E dos perfumes.
Brasília é uma festa
Sempre vejo daqui de fora
Olhando pela janela
Sem nunca ser convidado.

Brasília como pano de fundo

Em um lobby de hotel
N’algum restaurante caro
Em um meio de semana
No almoço jantar happy hour
(Claro, fora da agenda oficial).
Olhe discretamente
Esses homens de terno, em volta.
Todos são suspeitos
Até que se prove o contrário.

Os pobres que só têm dinheiro

A mendiga alcoólatra
que perambula pela quadra 213 norte de Brasília
dança alegre sua valsa imaginária
enquanto passam taciturnos
carrancudos
empedernidos
cara de quem cultiva ódio feito planta
cria raiva feito bicho
os pós-graduados com mestrado
doutorado na França
a caminho de suas 4 suítes
três vagas
lazer completo.

A mendiga alcoólatra vagante errante
da quadra nobre de Brasília
sorri dá bom dia boa tarde boa noite
estando limpa ou bêbada
enquanto passam olhando
pro chão pra frente nunca para os lados
nunca para ninguém
cara de quem esse mundo não está à sua altura
de quem a humanidade não os merece
os superintendentes
os assessores especiais dos juízes federais
os capachos dos ministros dos tribunais
voltando da rotisserie
do footing
da adega
a caminho de seus 354 m² de área privativa
alto padrão com vista livre para o parque.

Entre um lado e outro
lá passo eu em meu neutro estar
sem muita alegria nem tanta tristeza
pedindo a Deus que tenha piedade
dos pobres e miseráveis.

E dos verdadeiramente pobres e miseráveis.

Os Brasis de Brasília

“Alguém me dá uma ajuda
Pra mim comprar uma cesta básica?”,
grita lá embaixo o Brasil
com fome e sem emprego
na tarde de sábado
entre os vãos dos prédios
com vidro fumê espelhado
mármore e granito
de Brasília
(a capital de todos os brasileiros,
dependendo, é claro, de quem
são esses brasileiros).

Lá em cima, nos quatro quartos com suítes,
nas coberturas com área privativa,
o Brasil com salário em dia
e quinquênio
não ouve:
cochila no sofá depois do almoço,
vendo seriado na Netflix.

Moro em Brasília

sinto
falta
de
andar
com
os
pés
e
descobrir
livrarias
e
cafés.

Correio Braziliense, janeiro de 2024

Brasília em janeiro*

Árvores tortas
decalcam o maior céu do mundo:
Penso nelas como gestos
de quem se afoga,
de quem dá adeus da plataforma.

O sol prateia nuvens musculosas.
Atravessando o Lago,
a vela persegue
lembrança de baía.

Em algum lugar
bem próximo
do horizonte
a tempestade
espreita o fim do dia.

Brasília*

Nos palácios e tribunais
homens de carne e osso
(apenas de carne e osso)
passam falam
nos olham por cima
(como se fossem imortais).

Calçadão Conic – Conjunto Nacional*

O homem na cadeira de rodas segura o saco de mijo com uma das mãos,
com a outra
ergue a receita amarela de sempre
repete a cantilena pesada
feito o dia nublado e quente.
Dó piedade tédio asco indiferença:
é a praxe da maioria,
mas até mesmo “foda-se o homem com saco de mijo
na cadeira de rodas”
poderá ser dito ou pensado,
a depender do dia
e de quem passa.

Logo ali, sentado no chão,
o velho engraçado sem pernas
conta alto piadas indecentes.
Horrorizada,
a beata ao lado sobe a voz estridente
que inferniza em nome de Deus.
Pouco à frente, os trigêmeos cegos
cantam e tocam baião parecendo Rock.
E duas vezes ao dia passo eu,
com o coração a pedir esmolas.

Brasília em agosto

Céu azul
Sem acontecimento de nuvens,
Estático oceano invertido
Inerte na sonolência
Feito quadro
Empoeirado de brechó.
Céu azul de tédio
Onde o tempo não passa
A vida não age
E as árvores marrons
Paradas sem vento
São papéis amarelos
Que aguardam carimbo e despacho
na cidade-repartição autarquia ao ar livre
(ar morno e pesado de mata enfumaçada)

Sinalização*

Sr. visitante,
nesta cidade evitamos buzinar.
E cumprimentar o vizinho.
E dar bom dia no consultório.
E puxar papo na fila.
E tamborilar no elevador.
E cantar na condução.
E abraçar e beijar
quem acabamos de conhecer.

Denuncie,
se vir alguém
com alegria de viver.

Brasília em setembro

No fim da tarde
no cruzamento de avenidas aflitas
além da fumaça do diesel
acima da acidez do chorume
resistia o cheiro novo
da primavera anunciada.

Setembro em Brasília

O vento arrasta as últimas folhas secas e avisa que a chuva não tardará tanto mais, embora não venha amanhã nem depois, ou no final da outra semana.

Avisa que ela está em casa, preparando-se para sair, feito mulher com seus longos banhos, colônias e cremes.

Antes de vir – lembra o vento – a chuva passará na casa da primavera, e juntas buscarão a esperança, trazendo-a criança para todos nós.

*Poemas do livro De Tanto Bater com o Osso, a Dor Vira Anestesia

Entrevista

O portal Livros Para Sempre , uma página dedicada não apenas à literatura de uma forma geral, mas principalmente à divulgação de concursos literários, também faz entrevistas no Instagram, as famosas lives, com escritores.

Um deles, fui eu, que bati um papo bem bacana com o Rafael Moraes, fundador do site.

Espia só.

Rolar para cima