Livros que se arrastam.

Um livro precisa ter volúpia, isso no sentido de pegar o leitor pela gola e deixá-lo dependente de sua história. Acredito nos livros que nos roubam horas de sono, aqueles que nos fazem dormir bem depois do que o juízo recomenda, que nos transformam em felizes irresponsáveis perante o crivo da rotina.

Bom é o livro que sabe fazer a mágica do avesso. Arrasta-nos para seu universo, e nos torna seu habitante em tempo praticamente integral. Se estamos no elevador, no trânsito ou no escritório, na verdade, não estamos, pois acaba que não saímos da página que interrompemos antes que fôssemos até o raiar do dia. É como se ao invés de pausa para a leitura, esta fosse dada para que cumpríssemos os afazeres. Como se o irreal fosse a vida real. Coisa doida, coisa de livros. Os bons, diga-se.

Não acredito nos livros que não nos acompanham no metrô nem nos consultórios, que não tornam rápidas as filas dos bancos. Livros precisam nos fazer apressar o passo na volta para a casa, como fazem os namorados novos na saída do trabalho, da escola.

Existem livros pesados, não no sentido físico do número de páginas, ou no literário, a respeito do enredo. São pesados porque se arrastam em torno de um ponto a que sempre retornam sem novidades, como uma criança pequena que foge mas, sem saber caminhos além da esquina, volta para a casa. E no dia seguinte foge e volta de novo.

E muitas vezes insistimos na leitura e damos a cada dia uma nova chance, como se mantivéssemos uma esperança caridosa de que uma reviravolta possa regenerar o que está condenado.

Mas chega a um ponto em que não dá mais, o autor não nos levou a lugar nenhum. E aí o livro fica jogado no canto da estante menos importante da casa, ainda com o marcador na página em que paramos, indicando o ponto da nossa desistência.

Um dia tomará o caminho da doação em uma daquelas arrumações que o passar do tempo e o acúmulo das coisas exige. Vai junto com as roupas desbotadas e o par de sapatos ainda novo, mas que nos convecemos que estava apertado na segunda vez que usamos. E ao olharmos um ao lado do outro, nos passa pela cabeça que leitura não pode ser mesmo sapato apertado, e sim pé descalço na areia molhada da praia.

11 comentários em “Livros que se arrastam.”

  1. Walkíria Matheus

    Livro que mata “as sedes”! É destes que eu gosto!
    Daqueles que a gente sente um vaziozinho quando acaba… ai, ai…
    Os que se arrastam…deixo pras minhocas…
    Gostei das tuas colocações, André! Bjs

  2. HUGO GIUSTI

    Muito bom! Observou com muita propriedade André. E quanto ao pensamento, é “impressionante”, onde êle está, aí estaremos! Caso a “pensar” …

  3. 100% de acordo com o artigo e comentários.
    Fiz todo o curso de Letras lendo na bicicleta da academia, como diz o José Rezende Jr. Ganhei do meu amigo Lourenço Flores, que na época ainda tinha a Esquina da Palavra, uma camiseta que dizia: Quem lê é mais sexy! Era cômico!
    mas li muito nas filas, esperando filhos no colégio, em consultório então, nem se fala.
    É isso mesmo, o livro eleva!
    Abraços e parabéns pelo lindo texto.

  4. Denise Giusti

    Belo texto, André, tenho o hábito de logo pela manhã abrir seu blog para ler o artigo do dia, sempre trazendo assuntos diversos e sempre uma surpresa, sempre fico pensando o que será que ele escreveu hoje, um poema, política, algum acontecimento que viu pelo caminho indo para o trabalho, ou a inspiração de alguma gracinha das filhas, o que será o artigo de hoje? Realmente não devemos ser teimosos na leitura que não nos traz prazer e sim trocar por outro melhor, o tempo deve ser bem aproveitado. Falando em aproveitar o tempo acabei de ler ontem “As vidas de Chico Xavier” de Marcel Souto Maior, grande livro, grande homem, um exemplo de vida, que estamos muito longe de alcançar ….

  5. Belíssimo texto, André. Concordo com vc. Ainda reluto em abandonar um livro antes do fim, mas já o fiz algumas poucas vezes na vida. Em compensação, li Crime e Castigo quase inteiro pedalando na academia e A Montanha Mágica tomando chope antes do almoço. Não acredito em lugares sagrados para a leitura de livros idem. Os dois volumes de Os Irmãos Karamazov foram lidos no banheiro e as últimas páginas de Miguilim, no Café Martinica (chorava tanto que assustei os garçons e a freguesia).

    Grande abraço!

  6. Raquel Madeira

    Eu já tive essa mania de insistir em livro ruim, sei lá porque. Você tem toda razão, o seu artigo é ótimo, bem escrito como sempre e com um final lindo. Você, aliás, tem me ajudado a descobrir que não devemos perder nosso raro tempo com o que não presta. Também concorco plenamente com a Ana Cristina Melo.

  7. Livros são bons companheiros. Alguns revelam alegrias, outros sobriedades. Uns são joviais, outros apenas chatos. Mas continuam ao nosso lado. Com uma paciência canina, como que esperando o carinho da palma da mão. Um olhar furtivo. Ou um empurrão împaciente. Tenho-os ao alcance da mão, dentro do coração.

  8. Na pausa que dou na vida, para cumprir os afazeres, tem sobrado cada vez menos tempo para circular por todos os lugares, mas cada vez que me presenteio vindo aqui, vejo-me num espelho, ouço minha própria voz declamando esse amor pelos livros.
    Perfeito o seu artigo. Essa é a essência de quem gosta de ler, não ler como se fosse necessário saber do que está acontecendo no governo, ou no próximo capítulo da novela, ou do barraco do último artista. Ler para se deixar sair do chão, para manter aqui apenas o corpo, enquanto a mente vive outros mundos, respira outros cheiros; dar a nossa existência singular milhares de experiências. Ter a bolsa sempre um pouco mais pesada para aproveitar o mínimo espacinho de tempo na fila, no transporte, no consultório. Tem um livro que li há pouco tempo que fez muito eco também ao nosso pensamento. Não só porque ele é daquela leitura que nos faz querer continuar, como porque o personagem vivia nesse mesmo vício. É o romance “O campeonato” do Flávio Carneiro.
    Beijão,

  9. Hoje terminei um às 4 da manhã, e às 9 fui trabalhar… feliz!

  10. Cansei de ler livros por pura teimosia, só pra insistir e ter a certeza que era uma porcaria…hahahahahaha. Como que pra pagar pelo dinheiro gasto.

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