Semana Santa, 1985

Quando o Marco ligou, já eram umas cinco da tarde, e ele assistia a vídeo clips no canal 9. É que na última hora apareceu uma viagem pra Rio das Ostras, na época em que a cidade era só praia e sossego e andava-se ao sabor do vento.

É naquele esquema: miojo, pão com ovo e colchonete para dormir onde der.

Tô na fita? Quis saber.

Se eu tô te ligando, animal!

Quem vai? E já procurava o pai pela casa. Precisaria negociar aquilo. Abril mal começara e as notas já estavam daquele jeito. Para ficarem ruins tinham que melhorar muito.

Ué, quem vai? Eu, Wagão, Mário, Maurão, Serjão…os mesmos otários de sempre.

Putz, só homem!

E ainda quer que a gente leve mulherzinha pra você?

Conseguiu umas pratas com o pai. Dava para ir, voltar e fazer algumas gracinhas por lá.

Lembra dos olhos do velho quando jogou a sacola de nylon nas costas antes de bater a porta. Por trás das lentes grossas, chegara definitivamente a certeza de que o filho começava a bater asas. Dali a um mês faria 17 anos.  Impossível segurar em casa, num feriado, uma fera daquela cheia de hormônios e sede de aventura. Só restava pedir juízo e rezar para que funcionasse tudo que ensinara até ali.

Na Rodoviária, entre partidas e chegadas, procurava pelo grupo. Acima do tumulto, pairava a ânsia pela farra, e amarrada a ela, feito rabiola na pipa, uma sensação de que haveria para sempre música no ar e que a vida toda seria daquele jeito, uma vontade permanente de dançar e dar risada. É claro que depois o tempo passou mostrando a verdade, e a velha chata da idade adulta desligou a música imaginária. Mas a lembrança daquela sensação nunca ninguém roubou dele.

Você tá parecendo uma hippie grávida. Um deles observou quando se encontraram. Escarnecendo, apontava a camiseta verde e branca, estilo mesmo bicho-grilo, comprada na feira da Praça Sães Peña, tão na moda naqueles anos 80. Hoje, ao olhar fotos da época,  parecia mesmo ridícula.

Gargalhada geral. When the moon is in the Seventh House, e um deles cantarolou a música de Hair.

Mandou-os para aquele lugar, eles e as mães de cada um, no linguajar próprio dos machos de 17 anos. Era a forma de dizer que se gostavam, que era muito bom estarem juntos: sacaneando e xingando uns aos outros.

Só conseguiram ônibus para depois de meia-noite, e assim mesmo para viajarem em pé. Quando entrtou, sacou que dava para viajar no banheiro, sentado na privada, com janelinha e tudo.

E assim foi bem uns 70, 80 quilômetros. Quando vinha alguém apertado usar o banheiro, ele saía, depois voltava. Até que uma hora entrou um coroa. Demorou mais de 40 minutos para sair. Aí não deu mais para ficar lá dentro, teve que ir se equilibrando no corredor.

Mesmo assim, de onde estava, conseguia um pedaço de janela para ver a estrada rompendo a madrugada. A lua cheia acompanhava o ônibus e clareava vilas pobres do estado do Rio, tornava possíveis seus sonhos de garoto, deixava em aberto hipóteses improváveis, como a de encontrar naquele feriado a menina que conhecera na última festa e de quem o telefone acabou não pegando.

Lá na frente, nas primeiras poltronas, um bêbado toda hora gritava: isso é lindo Carlos Alberto! Alguém próximo, talvez tão ou mais embriagado, arrastava um trecho de bolero ou samba-canção, e o sujeito consagrava a ébria cantoria: isso é lindo, Carlos Alberto! E quando o silêncio se prolongava, permitindo até um cochilo, o pinguço insistia: Carlos Alberto, isso é lindo!

Jamais se soube se havia mesmo um Carlos Alberto dentro do ônibus, mas durante o tempo em que a vida permitiu o convívio de todos, a beleza para eles, fosse da música, das mulheres, do dia ou da noite, possuía uma expressão que a sintetizava: isso é lindo, Carlos Alberto!

Quando chegaram, a melhor das novidades: Mário, o mais velho da tropa, espécie de gerentão sempre preocupado em dar civilidade à bagunça, esquecera a chave da casa.

Sim, havia uma cópia na casa de um conhecido, mas quem iria bater na porta do sujeito às quatro da manhã?

Seu merda! Gritaram quase em coro, no que foram seguidos por dois ou três bêbados que se arrastavam à saída dos bares fechando. Gargalhadas tomaram o céu pleno de astros e estrelas ofuscadas pela lua iluminando também a vida.

E agora, onde a gente vai dormir? Um deles ainda perguntou quando a resposta era óbvia. Mário apontou com o nariz a areia da praia: olha que cama enorme!

Fizeram de travesseiros as sacolas, e de dentro delas puxaram os lençóis que no Rio as mães haviam providenciado. Ficaram assim empilhados, sete ou oito um ao lado do outro, mal protegidos do sereno. Passasse por ali o serviço social, recolheria todos para o abrigo da prefeitura.

É claro que não dormiram, no máximo dez ou quinze minutos de cochilo revezado. Quando o dia clareou, contavam piadas indecentes e disputavam quem dava o peido ou arrôto mais alto.

Saindo do mar, o sol saudava o grupo na porta de uma padaria. Caras amassadas da noite vigilante não escondiam a felicidade dos olhos quando o rapaz do balcão entregou a cada um a respectiva média com pão e manteiga. Chegou na hora em que ele e mais uns dois cantarolavam Dire Straits, ecos do Rock in Rio três meses antes. O fato é que em tudo, na música, no pão, no café, era como se houvessem mesmo entendido o recado do sol: vivam a vida, rapazes, em seus menores e mais deliciosos momentos.

Aqueles dias entraram para a posteridade.

Ao longo deles, dois ou três pileques de caipirinha foram curados com todos de cueca na piscina, para escândalo da classe-média do condmínio.

Feito folha seca de outono, o vendaval do tempo varreu o nome da menina que conheceu no sábado numa roda de violão, mas lembra que ela – Marina ou Fabiana? –  substituiu a outra, da outra festa, pois aos 17 anos as paixões duram tanto quanto um feriado.

Voltaram no domingo carregando mochilas pela rua de terra que levava à parada do ônibus, magros e abatidos com a dieta de miojo e batida de limão. A roupa de um, o cabelo de outro, nada escapava às incansáveis piadas de todos. Dá-lhe, porco! E gritavam toda hora, porque sempre havia um arrotando alto no fim da fila, horrorizando quem passava.

Pouco antes de embarcarem, um deles reparou que a lua, já minguante, nascia rosada, pois no extremo oposto o sol se despedia daqueles felizes estropiados. Dessa vez ninguém falou nada, mas todos pensaram o mesmo e ao mesmo tempo: Isso é lindo, Carlos Alberto!

3 comentários em “Semana Santa, 1985”

  1. Lindo, nao so pela forma como esta escita, mas pela mensagem. A adolescencia nao Volta mais, mas da ainda para ver graca nas minims coisas e sempre a achar q “isso e lindo Carlos Alberto!”

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