Abril*

Desde quando se lembra, abril é sempre belíssimo. A nítidez é a marca dos dias, em que as cores respeitam rigorosamente as margens. O que ele quer dizer é que em outros meses o borrão da névoa sempre mistura os azuis de céu e mar ou esmaece o verde da grama, desbota o amarelo das margaridas. O resto do ano eram pinturas impressionistas.

Abril, não. Junto com maio, abril é fotografia em alta definição, em que as cores ocupam com exatidão o espaço que lhes pertencem em cada paisagem. Não há céu transbordando para o mar nem plantas e flores manchando o sol. Cada elemento ocupa seu quadro com a precisão de um recorte, sem vazamentos. Talvez por isso as cores lhe pareçam mais concentradas, justamente porque são impedidas de se diluírem.

Mas abril é também mês de resfriados, pneumonias nascidas de gripes mal curadas, febres à beira do delírio. É em abril que as manhãs ventam geladas e sem nuvens, e por isso traiçoeiras. Ao ver o sol cegando o mundo, apostamos no calor e ganhamos as ruas apenas com nossas frágeis camisetas de verão. Quando damos pelo casaco, já é tarde, se foi metade do caminho, o ônibus está quase no ponto de descida, a hora do expediente está quase em cima. Mas aí a garganta já arde, não deixa engolir direito; a cabeça começou a doer do nada, um frio estranho e repentino nos faz tremer. E então nos enxergamos na goela do dia desejando apenas desaparecer em nossas cobertas.

Quantas dessas cenas tem vivas na memória: a manhã  mais espetacular que um cristal lavado, e ele escondido do frio num grosso capote, queimando em febre nos braços do pai, no colo da mãe, rumo ao médico que lhe receitaria injeções e xaropes repulsivos.

Por essas combinações da vida com o calendário, abril lhe desenterra da memória sobressaltos e a ocorrência de contratempos. Não tem o máximo da certeza, ou – vá lá – não tão nítida quanto as cores do mês – mas parentes e amigos queridos morreram em abril, de quando também recorda ter perdido o emprego e passado longo tempo batendo às portas. Fora em abril que batera o carro aquela vez, reduzindo-o a sucata? Se não era, estava perto de ser. Ano passado havia sido o abscesso no dente, a extração às pressas, uma semana de molho. Coincidências que desmerecem a aquarela desses dias, ele pensa no sinal fechado, olhando no horizonte a cortina alaranjada, rastro do sol desaparecido.

E este ano, o que vai ser? Pelo menos até agora, uma hérnia com certa urgência cirúrgica.

Queria virar tinta guache e ser espalhado na natureza por um pintor amalucado, embora de agudo senso estético. Ele demora a ir quando o sinal abre, porque está escolhendo que cor gostaria de ser.

*Publicado em 9/4/2010

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