Poema sem título e inédito

A água cai
E some pelo ralo
sem utilidade,
desperdiçada.
É que no canto do boxe
Ele hesita em se molhar.
Do alto do pescoço
Comtempla a própria nudez
E o ebulir da virilidade.
Toca-se com a mão nervosa
E, por fim, resolve-se,
Posto que a solidão
É o que há para hoje
E o que parece que haverá
Nos próximos tempos,
Sem que nem mesmo os céus
Arrisquem dizer até quando.
Boca língua beijo saliva
peitos bicos de peitos
bunda
e a fenda mais desejada
da humanidade:
é uma sequência
de recortes de imagens
inundando a mente
que o empurra numa
velocidade
entre a da luz e a do som
para um delicioso
choque elétrico
que lhe escala as pernas
e sobe para explodir na alma,
cerrando seus olhos,
desenhando em seu rosto
o sorriso maravilhado
que é o mesmo
de todos os homens
desde a criação das pedras.
Recompondo a respiração,
Ele enche com água
A mão em concha
E lava o jorro viscoso
Que vagaroso
Desliza pelo azulejo
Em direção ao piso.
A seguir
Deita-se úmido e nu na cama,
Pois é noite de verão
Noite de sonho desejo
ausência e falta.
Lembra-se dos cabelos
De mel claro
Espalhados no lençol,
Dos diáfanos olhos vivos
Feito pássaros sobre o mar,
Do sorriso que ora é santo
Ora, profano,
Quando conta divertida
Do que lhe encharca
E desce pelas pernas.
Nesse instante,
Ele sente um aperto
Um quase desespero
Por não ter
Para onde correr
E encontrá-la.
Vira-se para o lado
Em que ela estaria deitada
E sem solução
Abraça o vazio.

Até algum dia, Vicente Sá

Eu estava fora de Brasília e não pude comparecer ao adeus ao Vicente Sá.

Ou melhor, o adeus ao corpo do Vicente Sá, porque o Vicente de verdade segue vivo na imortalidade.

Queria postar alguma coisa em sua homenagem, mas não encontrava essa foto, de dez anos atrás, em um dos tantos saraus que ele e Lúcia promoveram no Leão da Serra.

Ela exprime o carinho e a admiração que temos um pelo outro.

Felizmente, no dia 24 de dezembro, estive no restaurante para buscar minha (deliciosa) ceia de natal e pude dar-lhe um abraço apertado e um beijo na testa.

Senti em troca aquela vibração de pureza e encanto que o Vicente carregava.

Foi assim que nos despedimos.

Vá em paz, meu amigo.

Você e sua poesia tornaram o mundo um lugar menos difícil.

A gente se encontra algum dia em algum sarau nas nuvens.

A cômoda solidão dos grupos de WhatsApp

Perdi a conta em quantos grupos de WhatsApp me enfiaram. Em outros precisei me enfiar, por obrigação, nunca por prazer.

Neles, “converso” com quem está na mesa de trabalho ao lado e também com quem mora no Pará ou na Crimeia.

Pois bem. Acho que nunca tive tão pouca gente para tomar um mísero chope no boteco em uma tarde de sábado.

Acho que não foram os grupos que nos distanciaram, foi a acomodação de achar que se está tendo vida social sem precisar tirar a bunda do sofá confortável e sem o trabalho de dirigir ou chamar o Uber para encontrar um amigo, ou um conhecido bom de papo que seja.

Nos últimos tempos, tenho tentando juntar amigos da vida real, mas que cada vez mais se exilam na acomodação da vida virtual.

Há sempre uma desculpa para não se sair do conforto letárgico do aplicativo: a sogra com hemorroida precisando de assistência ou a prima de segundo grau da mulher que chegou da Bahia, de Minas ou da puta que a pariu e quer conhecer a cidade.

As velhas discussões em mesa de bar, que nunca deram em nada, migraram para a tela do celular. Continuam não dando em nada, mas com o agravante de que perderam o calor humano e as boas risadas que provocavam em quem assistia ao debate inócuo e desproposital, como bem cabe à arena dos pés sujos.

Perdem-se minutos preciosos do dia tentando acompanhar embates, sem que saibamos – pois pela tela é impossível – o tom que as pessoas estão usando, se estão calmas ou exaltadas.

Se deixarmos, lá se vai metade do dia em piadas que nos enviam e enviamos, muitas certamente engraçadas, mas que não trazem a interpretação daquele amigo, o palhaço da turma, que todo mundo considera um humorista desperdiçado.

Os aplicativos de mensagens nos conectaram a uma multidão virtual, que só é menor do que a solidão em que nós mesmos mergulhamos entregues ao mundo frio de telas e teclados. .

Judite

Ela não nos esperava chegar em casa, seu limite não alcançava a alta madrugada, quando não o próprio amanhecer. Mas quando acordávamos, vinha com uma xícara de café preto fumegante, muito embora já fosse quase hora do almoço.

Ficava da mesa da sala espiando divertida nossas caras amassadas de ressaca, sentados no sofá, acordados sem estarmos exatamente despertos, tentando entender o que se passava já no meio do dia. E, quando afinal engrenávamos nossas histórias de sucessos e fracassos pelos bares da cidade, ela pousava em nós olhos risonhos e fazia um jeito de quem sabia de algumas coisas e desconfiava de outras.

Sempre que eu ia visitá-los, recebia dela um abraço tão apertado que tornava a viagem bem menos longa. Então, o cansaço da estrada, feito lagarta feia e amarronzada, se transformava em borboleta feliz e eufórica. Passava a despejar novidades e notícias de todos. Logo em seguida, ela me mostrava meu lugar na casa e a cama em harmonia com lençóis esticados, obra perfeita de seu carinho de mãe emprestada.

No jantar, antes de buscarmos outra vez aventuras na noite gelada de Curitiba, ela contava casos da vizinhança de tantos anos da Tijuca, desencavava outros ainda mais antigos da infância em Minas. E ríamos tanto, que se não fosse nossa busca desenfreada pelas ilusões dos vinte e poucos anos, ficaríamos ali em meio a tigelas vazias de sopa e farelos de pão na toalha.

Os anos passaram e guardei essas lembranças em enormes caixas de gratidão. Agora, lendo na tela fria do computador a mensagem curta que não comporta a tristeza do aviso que me traz, eu choro lágrimas sinceras do filho seu que fui em algum momento da vida.

Do livro Histórias de Pai, Memórias de Filho (7Letras, 2013)

Lost in love

Teu rosto se projeta
E se eleva
Na parede do meu quarto,
Desenhado em azul
Verde
Vermelho
Prata
Dourado
Feito luzes de boate.
O que o reproduz
São as notas
Daquela música
Que dançamos colados
Naquela noite
de uma sexta-feira
de setembro
aqui mesmo
nesse apartamento
espremidos
entre o sofá e a estante.

Aquela noite
De sexta-feira
Em setembro,
Que continua acontecendo
Em algum momento
Da eternidade.

*
André Giusti

Em qualquer lugar do mundo

Quando você estiver
Dormindo na poltrona
De um imenso boeing
Cruzando o Atlântico;
Na mesa de um café em Paris,
Que a maioria
Conhece apenas
de quadrinhos coloridos
de feiras de artesanato;
quando estiver em uma banheira
num quarto de hotel em Istambul
numa rua poluída de Pequim
mergulhada no mar
na Bahia Noronha Maragogi
ou finalmente em casa
na parte de cima
do sul do Equador,
saiba que também estará
um tanto um muito pra sempre
no lado esquerdo
de uma cama desarrumada
ou forrada
com a velha colcha suja e manchada
no fundo de um minúsculo
apartamento de paredes encardidas
quarto sala cozinha tudo junto
no meio pro final da Asa Norte
no coração
do Planalto Central do Brasil.
*

André Giusti

As nuvens de Brasília

O céu de Brasília não seria o que é sem as nuvens de Brasília, certamente as mais belas que já vi na vida.

Penso que não passaria de uma imensa monotonia azul.

Em tempo: esse post não tem musiquinha mala do Djavan falando do “traço do arquiteto”.

Inteligência artificial, preguiça natural

A entrevista de uma autoridade a um portal de notícias de destaque aparece carregada de erros de concordância e pontuação.

Está disponível na versão escrita e em vídeo, no Youtube, e é isso que explica tantos deslizes na primeira opção.

É que eles, os erros, vieram da conversa gravada em vídeo, em que os ataques à forma correta de se falar o português não podem ser corrigidos posteriormente em uma edição.

Mas na transcrição para a versão escrita podem. E devem.

Só que o problema é que essa transcrição foi feita sem dúvida alguma por inteligência artificial.

E ao que parece, publicou-se claramente o que o tal chatgpt cuspiu ao partir da conversa entre entrevistador e entrevistado, e não se tomou o cuidado de ao menos se dar uma rápida olhadela que fosse.

Certamente a IA nos ajuda, e muito, mas acho que não nos isenta totalmente do trabalho.

Quando conto, alguém, defensor / adorador da tecnologia, explica com ênfase que o chatgpt poderia ter corrigido os erros.

Não sei, não discuto, nada entendo de IA (e muitas vezes me falta a natural), mas se isso realmente é possível, acho que prevaleceram, neste caso, a preguiça e o desleixo naturais, que, pressinto, ganham bastante musculatura nesses tempos de facilidades oferecidas pela tecnologia.

A tardia balada dos inábeis (poema inédito)

Ao modo de Georgino Neto, poeta de Montes Claros (MG)

Passou o tempo
De você aprender
A tocar gaita,
A falar inglês
De verdade.
Agora não tem
Mais cabimento
Fazer aulas de pintura
Entrar numa escola
De mergulho,
Lhe ensinarem
A andar de moto.
Fique apenas
Com sua única
habilidade:
A de escrever
Histórias tristes
(e poemas ainda mais)
Que possam comover,
Quem sabe,
Os inábeis feito você.
*
André Giusti, 2024

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