Poema fingidamente alegre para disfarce de poesia triste

Para Gianna Xavier

Eu vou escrever um poema
Que pareça alegre
à moça que acha triste
A minha poesia.

Um poema que a ela
soe contente,
embora eu lhe conheça
A verdadeira essência
E o real sentido.

Um poema que,
Imbuído do consagrado
Fingir de poeta,
Fale de sol,
Mesmo que eu saiba
Seu significado de tempestade
e vendaval.

Um poema que para a moça seja dia claro,
Ainda que eu o conceba
Como madrugada que não alcança aurora.

Que a faça pensar em asa de gaivota
Quando no fundo conto
De animal na jaula.

Que eu disfarce opressão
Fazendo-a entender liberdade,
Que ela perceba igualdade
Quando para mim é ferida
De preconceito e discriminação.

Que a moça leia em meu poema
Conversa alegre
De amigos em bar,
Mãos de namorados em parque,
E que só eu saiba
Que é canto de solidão e abandono.

Que a moça que acha
Triste a minha poesia
Acredite que eu falo de sorriso
E que jamais sequer desconfie
Que meu poema trata de lágrimas
Do título ao verso final.

Dica – O Sequestro do Papa

Achei O Sequestro do Papa um baita filme, e olha que tenho visto bons e ótimos filmes ultimamente (Testamento e A Grande Fuga, entre outros).

Esse, italiano, que se passa durante o papado de Pio IX, em Bologna, mostra, em detalhes, o quanto o alto clero da Igreja Católica, com sua vaidade, sua sede de poder, sua luxúria, sua arrogância e prepotência se afastou, ao longo da história, dos ensinamentos, atitudes, gestos e exemplos do Cristo.

Você pode até não acreditar em reencarnação, como eu acredito, mas se vir o filme, vai cogitar a hipótese de que toda aquela gente do Vaticano, não apenas na época em que se passa a história, está toda aí de volta, negociando em cifras a abertura de igrejas, formando bancada no Congresso e até mesmo se elegendo Presidente da República.

Não tenha gratidão (não por quase tudo)

Gratidão não, por favor.

Muito obrigado sincero é o suficiente.

Afinal eu não tirei você da rua da amargura nem paguei seus estudos.

Apenas abri pra você a porta do elevador.

Na dúvida, vá estudar interpretação de texto e conhecer os reais sentido e significado das palavras.

Domingo, 17 de julho de 1994 (2)

A meu lado o cara esfregou as mãos uma na outra e cruzou os braços contraídos, típico gesto de torcedor nervoso. À nossa frente o telão mostrava imagens de outras cidades, praças aglomerando gente, famílias e amigos reunidos, milhões mobilizados por um só motivo.

“Não deve haver ninguém que não esteja na frente da televisão agora” o sujeito disse. Eu o conhecia apenas de vista, frequentava o mesmo bar que eu e meus amigos. Pensei que eu estava ali, em frente à TV, mas era como se não estivesse. Em casa eu não estaria melhor, se você quer saber. Indo e voltando pela sala sem poder contar nada a ninguém, a família observando aquela agonia estranha, achando que fosse mesmo por causa do jogo, logo eu que nunca fiquei muito nervoso com futebol.

Fecharam a rua ao meio-dia e agora só faltavam 15 minutos para a partida. Tomaram a calçada com mesas e cadeiras de metal barato, um grupo batia devagar bumbos e pandeiros. Uma pequena espuma de chope desprendeu-se do copo levada pela brisa da tarde de azul perfeito. Carvão, picanha, sal grosso. O mundo cheirava a churrasco.

Os amigos que chegaram depois já haviam juntado mesas, conversavam entre eles e com os grupos paralelos de outras mesas apinhadas de copos e pratinhos. No entusiasmo, alguém abriu demais os braços e derrubou meu chope, intocado sob minhas vistas distantes e preocupadas. “Foi mal, te pago outro”, e veio o novo, que ficou chocando, o colarinho na borda consumido pelo nada. “Você tá calado, o que houve?”, alguém finalmente notou. “Tá tudo bem”, eu respondi tão baixo como se não houvesse dito nada.

O resultado do exame sairia no dia seguinte, de manhã. Eu até que tentei trazer minha cabeça para o bar, ficar nervoso como todo mundo, mas o pensamento dava saltos até a manhã do dia seguinte, e depois outros saltos pelo futuro, imaginando o que me restaria. Quando os times entraram em campo, senti inveja daquela angústia fútil e efêmera que assomaria o país na brevidade de 90 minutos. Como quis trocar a minha angústia pela do país inteiro.

“Ninguém aqui viu o Brasil campeão, a gente era muito pequeno em 70”, um de nós falou mais alto. “Mas se Deus quiser, hoje a gente vê”, ele mesmo emendou e um terceiro disse que estava com medo, que a Itália era pedreira, ninguém lembrava de 82? “Vamos ter que esperar outra Copa?”, tenso, outro de nós pôs a questão. Eu chegaria até a próxima Copa? me perguntei. Quanto tempo se vive nesses casos? Mais quatro anos me pareceram muito, dependendo do que estaria escrito naquele papel no dia seguinte. Pousei os olhos vazios no chope morno.

Só me dei conta de que a partida havia começado quando um bando de gente pulou das cadeiras e voltou a sentar falando palavrões. Alguém mais calmo explicava a cabeçada que passou perto da trave. Eu olhava o telão sem enxergar e os lances da partida tornavam-se apenas uma confusão de movimentos coloridos. Ao redor achavam que a seleção tinha que cair mais pela lateral, em vez de afunilar o jogo. “Pode um passe desse? Não pode, né?”, vieram reclamar comigo. Eu disse que não, que não podia, e voltei ao meu mundo, que me parecia pendurado por um fio.

Mais um pouco e muitos começaram a se levantar, a esticar os braços, envergar as costas, retirando de cima de si o peso do primeiro tempo que terminou sem que eu percebesse. Homens continuaram bebendo e fumando, riam breves, logo fechavam a cara. Mulheres, menos tensas, comentavam detalhes de shorts curtos, saias elevando acima dos joelhos as cores da bandeira nacional. Olhei-as com tédio e sem avidez, como se recebesse o abraço vazio de minhas noites inconsequentes. Ocorreu-me que se meus casos furtivos de amor, minhas aventuras nas camas em que me deitei e com quem me deitei virassem moedas de ouro, eu as jogaria em qualquer fonte da sorte que me garantisse 30 ou 40 anos de vida feliz, saudável e pacata.

Em meu desligamento, o segundo tempo me pareceu um frêmito, pois começou e acabou quase sem que eu me desse conta, e me surpreendi quando, junto a mim, alguém blasfemou contra a prorrogação. Pensei em me levantar também, ir ao banheiro, mas acabei dando um mecânico gole no chope morno e repugnante. Vi que ninguém reparava e cuspi no canto. O garçom trouxe outro, que ficou ali, do mesmo jeito. Quis voltar para casa, mas lá colocariam em xeque minhas frágeis desculpas para tanta apatia e tanto alheamento, e minha angústia estaria tão visível quanto uma mancha de vitiligo no rosto.

Um bip começou a apitar quando terminou a prorrogação. “Não vou aguentar ver pênaltis” alguém gritou. O alarme insistia no meio do burburinho nervoso. Acabou sendo notado. “De quem, de quem é?” perguntavam impacientes com o absurdo de um bip chamando em plena final de Copa do Mundo. “O meu não é, o meu não é” repetiram, eximindo-se de culpa. ‘É o teu!”, apontaram para mim, e, espantado, concordei com a improbabilidade de um recado àquela altura. “Ligar para a doutora Fátima assim que puder”, era a mensagem.

Levantei-me apressado e não conseguia colocar de volta o aparelho no suporte. “Minha médica quer falar comigo”, eu disse alto, mais por nervosismo do que por querer explicar alguma coisa a alguém ali. “Agora? Ela é louca?”, mas não respondi à pergunta espantada.

Abri passagem por entre gente que comia as unhas, respirava sobressaltada. Não reparavam meus passos sem cautela à procura de um orelhão. Boca seca, coração aos saltos feito o mais angustiado dos torcedores. “O que ela quer comigo numa hora dessas? Só a vida ou a morte merecem tanta urgência”, eu perguntava e respondia em silêncio no fundo desesperado de minha cabeça.

Defendeu! Defendeeeeeeu!!!!! E como num estalo gigante, do silêncio a minha volta irrompeu o grito de centenas que logo se perdeu no céu. Feito um monstro que sossega por instantes, a multidão calada aguardava outra cobrança. Foi o que pude deduzir. Em meu ouvido, agora, um único barulho: o sinal agoniado do telefone chamando.

“Doutora Fátima, sou eu”. Atrás, a cidade calada, e eu também, em silêncio, por motivo diverso, ouvia meu coração parecer um bumbo. “Seu exame ficou pronto na sexta, eu mesma peguei, mas não consegui falar com você”, ela contou, e o tempo que levou para dizer o resto carregou a mesma angústia dos instantes em que a bola leva entre o pé do batedor e o seu destino de glória ou tragédia: a rede, a trave, as mãos do goleiro ou a linha de fundo. “Você não está doente, tá tudo bem. Vá viver, rapaz, com juízo”.

Ela ainda disse outras coisas que foram sendo engolidas pela enxurrada de berros que, em um segundo, explodiram por todos os lados. Começaram a pular perto de mim. Muitos se abraçavam ajoelhados, gritavam. Um homem chorava levantando as mãos para o alto. Fogos enchiam o céu de brilho e barulho. Um alívio desprendia-se em histeria.
Ainda assim pude perceber minha médica assustada, do outro lado da linha. “Meu Deus, que gritaria é essa?”, perguntou como se estivesse em outro país, ou mesmo planeta. “A seleção, doutora, a seleção ganhou! O Brasil é campeão do mundo”, expliquei chorando e rindo ao mesmo tempo. Divertindo-se com a própria distração, ela contou que não se lembrou do jogo, ficou lendo o dia inteiro e nem ligou a TV, não gostava de futebol para falar a verdade. “Mas você deve gostar, não é?”.

“Eu gosto, doutora, eu adoro futebol! Eu amo futebol, doutora!”, e sem chegar a pôr o fone no gancho, ajoelhei-me também aos prantos, agarrado à haste do orelhão.

Do livro As Filhas Moravam com Ele, Editora Caos e Letras (2023)

A Mulher da Minha Vida (ou um exercício de terapia)

Por um segundo,
a mulher da minha vida
pensou em me matar,
mas aos prantos
voltou atrás
me esperou
em sua casa
e me recebeu em sua
própria carne.
A mulher da minha vida
Disse que eu olhasse
A vida nos olhos
E que eu estivesse pronto
Porque o mundo
Não é um parque
Em que se vai passear.
A mulher da minha vida
Me tirou da cama
A chineladas
Em alguma noite fria de 1975
Para que eu guardasse
Os brinquedos que mais
Uma vez esqueci
Espalhados no chão da sala.

A mulher da minha vida
Ensopava carne de segunda
Com legumes
E se notasse em mim
Expressão contrariada de fastio,
Bradava que eu levantasse
As mãos para o céu
E agradecesse
Porque milhões não tinham
O que comer.
Foi desse modo que a mulher da minha vida
Me ensinou a ser socialista
Sem que jamais soubesse o que é socialismo.
A mulher da minha vida
Me abandonou a primeira vez
Para viver no planeta conturbado
De sua própria cabeça.
Passei anos sozinho,
esperando que ela voltasse,
E quando voltou,
Fomos felizes
Até ela partir de vez,
Deixando a esperança de que
A verei de novo em alguma estrela.

Quando conheci a mulher da minha vida,
Entendi em seu rosto
O lençol limpo e esticado
A mesa de jantar
As panelas no fogo
As crianças correndo pela casa
E vendo os desenhos na TV.
Conheci a conta da luz
As compras do mercado
A prestação da geladeira
o vencimento do aluguel
e a ilusão de que seríamos
mais fortes
do que o tanto que nos afastou.

A mulher da minha vida
Me disse adeus
Com o semblante triste
Mas altivo pela missão cumprida
De pôr em meus braços
outras três mulheres da minha vida.
A mulher da minha vida
Sorriu para o retrato eterno
da minha memória
com a janelinha dos dentes-de-leite
na pequena boca
que esperava os definitivos.

No dia em que nasceu
A mulher da minha vida,
Foi quando aprendi
O que é amar de verdade.
A mulher da minha vida
Atravessa meu espaço
Com a leveza e a precisão
Dos saltos e dos passos
De bailarina,
E quando está no chão,
me olha com os olhos maduros,
mais adulta do que eu.

A mulher da minha vida
Colore meus olhos
Pintando pássaros e flores
Nuvens e céus
Nos muros do jardim.
Cantando,
A mulher da minha vida
Me ensina a alegria de viver.

A mulher da minha vida
Nasceu da mesma carne
Que me deu vida.
É de um exagerado
Querer para comigo
E me cuida
Como o filho que não teve.
Mas sei
Que quando todos me abandonam,
lá está ela
com seu sorriso
seus braços
seu acolhimento
de irmã.

A mulher da minha vida
dançou comigo e me beijou a boca
em um baile na Tijuca
numa noite do verão de 1984.
Trocamos o telefone,
mas ela nunca ligou,
e sempre que liguei
a mulher da minha vida
nunca atendeu.
Por trás da mureta escondida
Pelas roseiras,
na varanda da casa de subúrbio,
a madrugada entrava
e eu e a mulher da minha vida,
ansiosos e divertidos,
nos descobríamos
além de nossas roupas.
A mulher da minha vida
voltou da minha adolescência
e me fez viver o amor
que não vivemos na juventude.
Aos quarenta e tantos,
Amamos como os adolescentes
Acham que é amar,
E no final ela me traiu
Como sabem trair
As mulheres vividas.

Logo depois disso,
A mulher da minha vida
Me fez subir
As montanhas e as ladeiras
De Minas
E foi lá no alto
Que ela me reapresentou a poesia.
A mulher da minha vida
Encheu minha cama de nudez
minha mesa com fartura
e meus ouvidos
com a harmonia de seu piano.
A mulher da minha vida
Não suportou a dureza de minhas palavras
E me deixou na cama vazia
Com fome
No silêncio
E na solidão.

A mulher da minha vida
Me fez vários,
Diversos
Amoroso e estúpido.
Cada um de mim
Guardou dela
Riso e lágrima
Chegada e partida
Amparo e abandono
Dor e prazer
Talho e cicatriz
Consolo e saudade.
Cada um de mim trouxe dela,
a mulher da minha vida,
Todo homem que me tornei.

Só acho

Eu acho que o sujeito que nos dias de hoje veste a camisa da seleção brasileira (seleção? brasileira?) não incorre no ridículo apenas pelo seu abominável significado político, mas também por estar reverenciando um futebol cada vez mais pobre, deprimente e melancólico, acomodado mais e mais a cada competição como a quarta ou mesmo quinta força da América do Sul.

Só acho.

Só acho – A feiura de algumas palavras no plural

Eu acho que certas palavras ficam muito feias quando postas no plural.

Material, munição, comércio e carne são os exemplos que me ocorrem; esta última bem em voga devido às negociações em torno da reforma tributária.

Materiais, munições, comércios e carnes, com tanto ruído na sonoridade, chegam a me soar erradas.

Ninguém come carnes. A gente come carne de boi ou de porco. Bovina e suína também, por favor, não.

No caso do frango e do peixe, come-se direto frango ou peixe, sem o substantivo geral antecedendo. Ou alguém pede diferente?

Materiais chega a me dar dor nos ouvidos. É uma palavra que já significa o todo, o conjunto, o coletivo. O que custa especificar o tipo? Material de construção, odontológico.

É o mesmo caso de munição. Munição é munição, e varia de acordo com o calibre e o tipo da arma, variação que não exige que coloquemos S no final do vernáculo.

Mas o pior de todos é comércio. Nas redações em que chefiei, a toda hora puxava as orelhas de algum repórter. Era recorrente a mania de chamar uma loja de comércio. Entendo comércio como a atividade e não como um estabelecimento. Daí que ninguém tem um comércio ou dois, ou três comércios, mas sim uma loja e duas ou três lojas.

Só acho.

A Ilha

As críticas de Lula ao Banco Central são assunto que fazem as paredes tremer em Brasília.

No últimos mês, é dos dez mais nas paradas de sucesso das fofocas e intrigas nos palácios da capital do país.

Pois bem.

Uma pesquisa da Quaest, instituto que vem ganhando credibilidade desde as eleições de 2022, revela que apenas 34% dos entrevistados sabe dessa história de que o Lula desce o pau no Banco Central.

Ou seja, enquanto burocratas, políticos e investidores do mercado (aqueles que ganham dinheiro sem trabalhar e sem gerar emprego e qualquer riqueza para o país) não falam de outra coisa, bem mais da metade da população nem desconfia do que se trata.

Definitivamente, a Brasília oficial, a dos poderes e dos engravatados ( e não a das cidades satélites e da periferia do Distrito Federal) é uma ilha sem conexão com o Brasil de verdade.

Inédito (sem título)

Eles dizem “que nada!”
Que nada
Vai matar o rio
Poluir o mar
Derrubar a mata.
Juram que vai gerar
Emprego e renda.
Só que o rio secou
o mar virou lixão
E não há mais sombra
Apenas o sol a pino
E a gente sem onde
Para se abrigar.
Enquanto isso
Eu tô em casa parado
Já mandei currículo
Já bati em porta
E hoje penso em desistir.
Eles garantem
Que vai ter escola
E que agora
A saúde pro povo
Decola.
Mas meu filho já é grande
Mal lê e faz conta
E eu tô na fila
Há mais de ano
Pra arrancar um caroço,
Duvidando se chego
Mesmo até lá.
Eles trocam tapas
Cusparadas
Palavrões
E até tiros.
Mas na calada
Da escuridão
Se abraçam festejando
Os mesmos interesses,
Enquanto eu
Corro perdido
Com fome febre
E tosse seca
No país do retrocesso
Entre a estupidez
E a hipocrisia
Do que eles chamam
De direita e esquerda
Nas notícias da televisão.

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Inédito

Essa paz
Essa alegria
Essa esperança
Que chegam
Feito brisa
que não sabemos
O motivo de soprar.
Essa paz
Essa alegria
Essa esperança
Sem razão
Sem porque
Sem entendimento
São aquelas
em que mais
Devemos
Acreditar.

André Giusti, 2024

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