Vinte e oito dias com Samara

“Oi, tudo bem? meu nome é Samara. Não nos conhecemos. Quer dizer, nos vimos rapidamente uma única vez. Eu sou aquela para quem você mandou um bilhete com seu telefone, pedindo que eu te ligasse. Eu estava na cafeteria do shopping. Você se lembra?”

A mensagem chegou no fundo da noite, pouco antes de eu ir dormir. Confesso que já estava quase esquecido desse bilhete, entregue uns três meses antes, com zero vírgula um por cento de esperança de que Samara, agora eu sabia seu nome, entrasse em contato. Conto nos dedos de uma das mãos as vezes em que me dei a essa ousadia: escrever meu nome, meu telefone e uma frase trivial do tipo “você é linda. Me liga” e pedir para o garçom, garçonete ou sei lá quem estivesse me servindo entregar à mulher sentada na mesa próxima e que me chamou a atenção.

“Eu procurei você nas redes sociais. Na verdade é uma grande coincidência o que me levou a entrar em contato com você”. E colocou um emoji de riso.

Desculpa se eu te liguei. Hoje em dia não se usa mais telefonar para as pessoas, né?”. Novo emoji de riso.
Só então notei que havia uma chamada perdida em meu celular. Um interurbano, prefixo do nordeste, mesmo número que agora me aparecia no zap. Fosse de São Paulo, Rio ou Minas eu identificaria na hora de onde era o prefixo, de que cidade ou região do estado. Como era da Bahia pra cima, meu conhecimento caía no geral. No sul, sudeste e mesmo centro-oeste achamos que o nordeste é uma coisa só, como se não fosse dividido em estados, cada com sua personalidade, particularidades e cultura próprias.

“Em outra situação eu não entraria em contato com você, não tenho esse tipo de iniciativa. Mas como te disse, uma grande coincidência me leva até você”.

Antes que ela dissesse afinal qual era a tal da coincidência, relembrei o dia em que rabisquei no guardanapo da confeitaria meu nome, número e a frase padrão para esse tipo de arroubo. Eu estava numa lama emocional como nunca estive em minha vida. Meu estado normal era chorar. Eu andava sem rumo, sem saber para onde ir, sem querer ir para casa e ficar mastigando o passado, sem querer ficar na rua sem presente, sem esperança no futuro. Andava com a dor de um cara de quem houvessem arrancado um braço e uma perna. Só que essa dor era no peito, e atravessava a alma.
Atormentado, ainda assim meus olhos capturaram a imagem de Samara, sentada a uma das mesas da cafeteria chique e descolada. Seu rosto, seus olhos, seu sorriso, seu cabelo avermelhado formavam juntos um clarão. Com jeito de irlandesa ou de atriz de filme americano, Samara era um farol em forma de mulher. Para completar, ela também me olhou. E não foi um olhar distraído, desatento, apenas para ver quem passa. Ela se demorou em mim. E então, foi como se alguém houvesse me dado um empurrão.

“Puta merda que uma mulher dessa ajeitava minha vida, me tirava dessa merda onde me atolei”, eu pensei quase em tom de súplica a Deus ou a sei lá quem estivesse olhando por mim naquela hora. Se é que havia alguém. Claro que sair da merda é tarefa nossa, quem faz isso somos nós mesmos, mas às vezes outra pessoa pode dar uma mãozinha. E aquela mulher ali, um fogaréu numa cafeteria numa tarde de shopping center, me pareceu ter a mãozinha de que eu precisava.

Dei mais duas voltas para passar novamente por ela. Novamente ela me olhou. Sorria largo na conversa com a amiga, e quando passei, manteve o sorriso ao me olhar, chegou mesmo a me acompanhar com os olhos por uns breves milésimos de segundo. Quem sabe quisesse que eu acreditasse que era para mim mesmo que ela sorria. Foi então que tive o impulso, o terceiro ou quarto desse tipo em toda a minha vida. Peguei um guardanapo, pedi uma caneta ao caixa, caprichei na letra em cima do papel rugoso e escrevi o que já se sabe: você é muito interessante, meu nome é tal, meu número é tal e blá blá blá blá. Era como se eu estivesse escrevendo um S.O.S na areia de uma ilha perdida onde eu sobrevivia sem esperança de resgate após um naufrágio. Aquele guardanapo rabiscado era o braço estendido do afogado implorando uma boia.

“Aquela ali, ruiva, que está de costas, de vestido colorido”, e quase cochichando no ouvido da garçonete, apontei meu alvo e entreguei à moça o guardanapo. Seria meu pombo correio, quem sabe um cupido moderno que servia expressos, capuccinos e levava bilhetes com intenções amorosas.

“Você tem um blog, não tem? Eu vi o seu blog, no seu zap tem o endereço, né?

Sim, eu tinha um blog, em que escrevia crônicas falando mal da vida e reclamando do mundo.

“Eu sou amiga da Sophia. Esse nome te diz alguma coisa?”

A única Sophia que eu conhecia fora minha namorada dez anos antes.

“Ela mesma. Coincidência, né? rs rs rs”.

Talvez eu não tenha sido o melhor namorado do mundo, mas acho que não havia motivos para que Sophia falasse mal de mim. Em todo o caso, nunca se sabe.

“Ela não falou bem nem mal. Só disse ‘ei, esse cara foi meu namorado, quando morei em Brasília’”.

Eu não sabia por onde andava Sophia. Pelo jeito, mudara de cidade.

“Ela tem um blog sobre plantas medicinais. Achei que pudesse conhecer você. Bem, ela conhece, mas não como blogueiro. Rs rs. Até porque vocês escrevem sobre coisas totalmente diferentes.

Pelo andar da carruagem, Samara também não morava em Brasília.

“Nasci aí, morei até o final dos anos 80, na 109 sul. Era amiga do Herbert, do Bi… namorei o Dinho do Capital quando eu era da UnB… eu sou jornalista, na época eu cobria cultura pro Correio Braziliense. Hoje não exerço mais a profissão”, e completou dizendo que tinha uma assessoria, mexia com comunicação, esse tipo de coisa.

Eu nasci no Gama, morava no Guará. Era um anônimo professor de história. Não conheci ninguém famoso, muito menos namorei. Onde morava Samara agora? E Sophia? Bem, Sofia não me interessava mais.

“Eu moro em João Pessoa”, e então entendi o prefixo do telefone. Vim para cá quando me casei. Me separei e continuei”.

Por que diabos resolvera entrar em contato comigo? Será que meu pobre, mas pretensioso bilhete surtira algum efeito?

“Entrei em contato para dar notícias da Sofia, contar dessa incrível coincidência. Achei que você gostaria de saber”, e parecia querer dar a entender que o motivo era mesmo apenas este, que não havia da parte dela qualquer interesse em me encontrar. Por minha vez, nada contra Sofia, mas não era dela que eu queria saber, muito menos da coincidência. Mas será que Samara entrara em contato apenas para isto, me trazer notícias de uma namorada de quem eu já nem me lembrava quase? Na mensagem seguinte, começou a parecer que não.

“Estarei em Brasília na semana que vem”, e explicou que viria para tentar vender uma casa da família, no Grande Colorado. Não seria mal me encontrar com Samara. Nada mal, aliás. Propus, como quem não quer nada, mas quer tudo. “Acho que não me oponho à ideia”, e prometeu dar notícias quando chegasse.

Alguns dias depois, aninhada em meu peito, na cama, ela pedia desculpas pela terceira vez na noite. Estávamos vestidos. Seu estado não permitia que fizéssemos nada que nos obrigasse a tirar a roupa. “Eu não tô acostumada a beber tanto vinho. Fui na tua onda e me ferrei. Que vergonha ir parar na privada logo no primeiro encontro”. Eu repetia que ela deixasse disso, estava tudo bem. Eu jamais estive ao lado de uma mulher dentro de um banheiro fazendo carinho em sua nuca e beijando seus cabelos enquanto ela punha pra fora até a alma. Ali, no banheiro, eu já havia embarcado nos olhos de Samara, e isso aconteceu quando ela me olhou fundo pela primeira vez, ainda no bar. Senti que não haveria retorno, saída, escapatória. Eu fora capturado. Ainda uma vez mais me agradeceu por ter cuidado dela. Pensei e quase disse que a partir daquele momento eu queria cuidá-la por quanto tempo a vida permitisse. A presa queria proteger a predadora.

“Por que você se separou?”, ela me perguntou cinco dias depois; agora sim, nós dois estávamos nus, ela lambuzada de mim; eu, dela, na cama, após uma das melhores noites que tive na vida. Respondi, devolvendo a pergunta e foi ela quem explicou: “Por que o amor acaba, ora”. Comigo foi a mesma coisa, sorri triste, por dentro, respondendo apenas com um leve arquear de sobrancelhas, preferindo não contar que no meu caso o problema é que o amor acabara apenas para o outro lado, e foi isso o que arrastei meses seguidos. Meu passado era feito aquela cola poderosa que gruda na pele e parece que só arrancando o dedo para nos livrarmos dela. Nos piores momentos após a separação, eu não quis me matar, mas se eu morresse não teria sido de todo mau. Foi nesse estado pantanoso que vi Samara pela primeira vez, na cafeteria do shopping.

“Por que você pediu à garçonete para me entregar aquele bilhete?”.

Eu poderia responder com as trivialidades: “Por que você é bonita, porque você me pareceu uma mulher bacana”. Mas não, o assunto com Samara, naquele dia em que a vi, era muito mais forte. Ao passar por ela, parecia que eu estava desesperado na mata escura e fechada, e sua visão era um clarão de meteoro que se choca contra a Terra e ilumina todos os caminhos do mundo. Na cama, de seios à mostra, Samara corou levemente quando fiz essa comparação.
Aproveitei a inspiração de frases bobas, mas sinceras, e contei que quando a vi, foi como se de repente começassem a espocar os fogos coloridos em uma noite de réveillon, fogos que tinham basicamente a cor de seus cabelos ruivos. “Eu não sou ruiva, já disse. É castanho claro”. Sim, havia dito, mas a primeira impressão que tive, no shopping, e que perdurou, foi a de que seus cabelos eram sim ruivos, de um fogo brando que me iluminaria e me aqueceria na noite escura do inverno siberiano que se abatera sobre minha vida. Ela sorriu. Aceitou dançar quando peguei sua mão e a trouxe para o meio da sala, ao som de Etta James cantando I’d rather go blind. Uma garrafa de vinho quase inteira nos esperava e meu casamento, finalmente, começava a desfazer as malas no chão do passado.

“Eu vou ter que ficar mais tempo em Brasília. O cara que se interessou pela casa deu pra trás. Achei que iria resolver esse negócio…”, e ela parecia meio desanimada com o fracasso da venda. Tentei não demonstrar, mas por dentro estava eufórico. Eu queria dizer que desde a primeira vez que a beijei, bateu a certeza de que eu não conseguiria voltar de seu mundo, pelo menos não tão cedo e facilmente. Transávamos todos os dias; o homem arrasado, que até semanas antes se sentia um fracasso e roubado em sua confiança de estar com uma mulher, agora se percebia novamente macho, viril, fodedor, como se dizia no mundo das baixarias masculinas. E aquela noite havia sido mais uma dessas de sexo intenso. Só que não apenas de sexo. Havia ali, na cama de meu quarto, todo um universo que flutuava acima de mim cheio de magia, cor e entrega. Eu estava nas mãos de Samara, queria perguntar se ela percebia isso, se sentia o mesmo, se tinha vontade de falar as mesmas coisas. Ela não dizia nada, mas às vezes seus olhos brilhavam quando davam com os meus. Talvez eles fossem suas palavras, e eu, que também não me abria, nada dizia, me agarrava à esperança de que isso fosse verdade.

Se seus olhos me pareciam dizer o que eu tinha esperança de ouvir, sua boca fazia o oposto: por intermédio dela, Samara era clara e objetiva. “Eu não sei como vocês aguentam essa seca, esse calor, essa fumaceira”. Era setembro, dia 15. O cerrado ardia em chamas ao redor de Brasília. A cidade respirava fumaça. “Você viu o que a ministra disse? Que estamos vivendo um terrorismo climático”. Não, nas últimas duas semanas eu não tomara conhecimento de nada que não fosse Samara. “Por isso que não volto nunca mais pra cá, nunca mais. Quero morrer em João Pessoa, de frente para o mar, no Bessa”. Uma longa lista de deveres e obrigações me segurava em Brasília. A vontade de ser alguém na vida de Samara era grande, mas se rendia, por pragmatismo, ao sujeito que eu era na vida real, a vida que eu tinha, na cidade em que eu morava. Ela, por sua vez, me parecia claramente estabelecida no lugar em que vivia, teria bem menos razões para deixar lá sua vida de empreendedora, como gostam de dizer atualmente. E assim eu tentava disfarçar a tristeza, filha da certeza de que Samara era algo breve feito a existência de uma rosa. Ela foi ao banheiro se lavar de meus excessos e quando voltasse eu não queria que reparasse em meu rosto o peso de reconhecer essa realidade.

“A gente tá se vendo todo o dia, desde que eu cheguei”. Fiz as contas. Foi no dia primeiro, estávamos no dia 22. Ela só voltaria para João Pessoa quando a casa fosse vendida. De repente, saiu-se com essa, que me fez as pernas bambearem: “A gente tá parecendo até namorado”, e sorriu meio encabulada, meio sem saber se deveria ter dito. Só que em vez de se arrepender, foi além, e pela primeira vez eu soube o que se passava dentro de Samara. “Cara, eu tô pensando muito em você” Surpreso, quase sem ar de tanta alegria, vi crescer em seu rosto um sorriso, e ela foi até mesmo capaz de arriscar uma brincadeira. “Vamos ficar, então, feito namorados, até o dia em que eu for embora?”. Era a primeira vez que eu começava um namoro sabendo de fato que ele iria acabar, e que seria logo. Era como se tivesse um prazo curto de validade, feito iogurte que se compra no supermercado.

Vivi então aqueles dias como alguém que molha os pés na água que desaparece na areia da praia, feito uma criança chupando um picolé que se esvai debaixo de um sol de quarenta. Quanto mais crescia a paixão por Samara, em sua intensidade física e emocional, em mim também tomava corpo a certeza de que eu ficaria outra vez fodido, voltaria ao meu inverno glacial, inabalável diante da crise climática. Entraria no ar a segunda temporada da série em que o personagem principal era um cara fodido vagando por bares e noites sem sentido: o mesmo enredo, o mesmo roteiro, as mesmas trilha sonora e fotografia. Mudaria apenas a atriz coadjuvante interpretando o mesmo papel. E sem tanta metáfora, eu sairia de uma merda e entraria em outra. Mesmo assim, estava valendo a pena estar com Samara e sua nudez atravessando as noites quentes, feias e nevoentas de queimadas em volta de Brasília, mas porque justamente Samara as enfeitava, tornavam-se belas e mágicas, e me antecipavam que o que é belo e mágico também pode machucar, e muito. É preciso coragem para dirigir em alta velocidade, sem freio, tendo a certeza de que a qualquer momento você vai se espatifar na imensa traseira de um caminhão.

“A casa foi vendida”, ela disse por trás de mim, enquanto eu abria uma garrafa de vinho. Estava apenas de calcinha, os peitos pendurados na noite quente e seca do Planalto Central. A luz do abajur pegava metade de seu rosto. A outra, ficava na penumbra. Às vezes me parecia que Samara surgia de um portal do outro mundo, um mundo fantástico de fadas. “Por que a vida vai me levar um anjo desses?”, perguntei em silêncio, para mim mesmo, olhando seu rosto. Estava séria. Embora objetivamente nunca tenhamos falado sobre o assunto, ela sabia o significado que aquela notícia tinha para mim. “Legal, né? Resolvi essa encrenca”, e sorriu quase constrangida. Eu sorri com uma falsidade da qual poucas vezes fui capaz em minha vida, e por dentro eu falava, aliás, falava, não, eu berrava: “Legal é o caralho! Eu queria que ninguém quisesse comprar essa porra dessa casa”. A casa era o último vínculo, ao menos material, de Samara com Brasília, e com outras palavras ela deixou claro que, a não ser algumas amigas, não tinha mais qualquer motivo para vir. “Não tenho mais nada que me prenda a essa cidade além do meu passado”. Eu estava incluído nesse passado; recente, intenso, na velocidade de um jato, mas passado. E pelo jeito, não havia porta aberta para mim no futuro de Samara, pois ela jamais mencionou qualquer possibilidade de me incluir nos dias e nos anos que viriam em sua vida. Nosso namoro, velocista de cem metros, estava em seus momentos finais de validade, e a história de que ela pensava em mim todos os dias, não voltou mais a sua boca. Estávamos no dia 28. “Comprei passagem para amanhã”.

Parei os olhos fixamente na garrafa de vinho. Na estante, o Spotify encerrou uma música. Um torvelinho desesperado de frases silenciosas invadiu a minha cabeça. “E se eu a pedisse para ficar? Lembrasse a ela de que Brasília quando chove é boa pra cacete… E seu eu rasgasse o meu coração e dissesse bem alto que a queria como minha mulher, tendo apenas a morte como prazo de validade? E se eu falasse “Samara, eu vou com você” e ela, espantada, sorrindo, perguntasse “Mas e sua vida aqui, cara?”, e eu respondesse “Foda-se a minha vida aqui. A minha vida é do teu lado, em qualquer lugar…”.

Baby, I love you so, I Want you know…

Foi quando o antigo sucesso do KC and Sunshine Band, de quando éramos jovens, rasgou o silêncio da sala.

Please, don´t go, don´t go away, o refrão insistia, e como eu não conseguia por pra fora o que me passava pelas ideias, peguei a letra da música para dizer o que eu queria e sentia.

“Please, don´t go, I´m beggin you to stay”, e cantando, eu olhava fixo Samara. Com os olhos aguados, uma lágrima já descendo, levemente ela abanou a cabeça na negativa, mas de uma forma quase imperceptível, que me levava a crer que queria fazer justamente o contrário, dizer sim para a música. Foi então que a tirei para dançar, sempre repetindo o refrão, agora ao pé de seu ouvido. O choro de Samara aumentou, molhou minha camiseta sobre meu ombro. Aquele choro me explicava que eu não podia lhe pedir aquilo que eu queria pedir. E então entendi que a única coisa que eu podia fazer naquela história toda era tentar colar mais uma vez um enorme caco do meu coração despedaçado.

Eu vou buscar no silêncio uma canção pra dançar com você

Tente não escutar nada ao redor:
Risada freada tosse
Bater de copos
Ou essa música pavorosa
Dejeto de indústria cultural.
Nada, não ouça nada.
Se necessário,
Feche as janelas
Tape os ouvidos
Feito alguém
Que precisa dormir
E mora ao lado
De uma igreja de fanáticos.
Eu prometo de trazer
O silêncio
Do fundo dos oceanos,
Para que então
Você conheça
A canção que tenho
Na cabeça:
Uma calma balada estradeira
Algo da época de bailes
Um sucesso
Do tempo das FM’s,
Qualquer coisa assim.
É com ela
Que vou tirar você
Para dançar
Nas nuvens
Acima das estrelas
Ou debaixo
De lençóis de cetim.

André Giusti

Poema sem título

Envergonhada,
Você me pedia desculpas
Pelo tanto de vinho
Que não costuma beber.
“Deixa pra lá”,
Eu respondia sorrindo,
Sem ligar pra nada que não fosse
Mergulhar em teus cabelos,
Pistas do Pôr-do-sol
Em plena madrugada.
Nos dias que se seguiram,
enviei
links de streaming
Com flashbacks
E trilha sonora
De blockbuster consagrado.
Em troca disso
E de um poema esforçado
Recebi a promessa
Não cumprida
De que nos veríamos
Novamente.
Você me tirou do chão
Outro dia, beibi.
Por que quer me devolver
Assim tão rapidamente?

*
André Giusti, 2024

O combate à violência contra a mulher começa na casa de quem tem filho homem

Embora envolva uma criança, esse vídeo não tem absolutamente nada de engraçado e fofinho.

O que ele é é muito babaca, isso sim.

Se quando eu era moleque, fizesse isso que esse garoto está fazendo, tomava um tabefe na orelha capaz de virar o pescoço.

É claro que a forma não era correta (era o entendimento de educação infantil vigente à época), mas o conteúdo da reprimenda estava claro: respeite as mulheres.

Quando comecei a me entender como homem e a me engraçar para cima das meninas, meu pai me pegou e disse: “respeite a filha dos outros”.

Esse garoto do vídeo sequer tomou um puxão pelo braço, levando-se em conta a hipótese bastante clara de que o homem que o tira de perto da mulher, sem qualquer reprimenda, seja o pai ou responsável por ele.

Eu acho que o combate à violência contra a mulher começa na casa de quem tem filho homem, bem cedo, quando ainda estiver longe de lhe nascerem os primeiros pentelhinhos. Só acho.

E reparem que a moça ri o tempo todo, como se o moleque não estivesse lhe passando a mãozinha boba no buzanfã .

Aí também fica difícil

A cada dia mais, menos

A cada dia mais
Menos ter
menos querer
e menos achar que se precisa.
Não deixemos
Que ditem necessidades:
Elas nos escravizam.
Coisas juntam poeira
Acumulam sujeira
Criam ácaro
Mofam
Proliferam fungo.
Coisas são feitores
Que nos açoitam
Com o chicote
Da ilusão
Do falso sucesso.
Quero o não querer
Preciso do não precisar,
De ser leve
Como bagagem
De quem chegou hoje
E amanhã já vai voltar.

André Giusti, 2022

Um pouco de espelho para cada um de nós

Márcio Menezes, escritor conterrâneo meu, tem uma bela capacidade de criar personagens fodidos.

Não no sentido material, financeiro, econômico.

Muito pelo contrário.

Os caras podem não ser ricos, mas passam longe da pindaíba.

Dos livros que li do Márcio, os personagens/narradores viajam pro exterior e até moram em outros países.

Mas são fodidos emocionalmente, com a vida amorosa confusa, meio sem rumo, cheia de idas e vindas e reviravoltas, quando não destruídas.

E tudo isso, claro, descamba para outros planos da vida pessoal e vaza para os relacionamentos de uma forma geral.

Foi assim em Barcelona não é Espanha (Rubra Editora) e agora no recém-lançado Heroína, mon’amour, os dois com narrativa ágil, direta, objetiva, sem enrolação, e com cenas e situações cruas que envolvem quem está lendo, para o bem ou para o mal.

Nos dois livros, sujeitos de classe média caem de cara na vida buscando algo que lhes preencha um vazio que, no fundo, é de todos nós nos dias de hoje.

Olhando para trás, tudo que já vivi, em vários recortes eu me senti personagem dos livros de Márcio Menezes.

As Filhas Moravam com Ele é finalista do Prêmio Oceanos 2024

Todos os grandes prêmios da literatura brasileira são concorridos e, por conseguinte, difíceis, não apenas de serem conquistados, mas primeiramente de se chegar à final.

O Prêmio Oceanos, é, talvez, dos grandes o mais recente, e já se estabeleceu como tradicional e consagrador para o autor que nele alcança destaque, mesmo que esse destaque não seja a de vencedor final.

Então, com toda sinceridade, já me sinto vitorioso por As Filhas Moravam com Ele (Caos e Letras, 2023) estar entre os sete finalistas na categoria contos.

Foram mais de 2,6 mil livros recebidos pela organização do prêmio; desses, trinta são de prosa, e, entre estes, sete são de contos. As Filhas Moravam com Ele está nesse bolo.

As obras concorrentes foram editadas em quatro países de língua portuguesa; ou seja, é um prêmio internacional, e de acordo com o próprio critério de seleção, As Filhas Moravam com Ele é um dos sete melhores livros de contos publicados em língua portuguesa em 2023.

Além de mim, nessa final, estão autores consagrados, como Mia Couto, de quem sou fá como poeta.

Sim, estou concorrendo com Mia Couto.

É ou não é para se sentir premiado?

Antes ou Depois de Mim Mesmo

Acordei e forcei meus olhos contra a claridade. Ela me feria as retinas todas as manhãs, na rotina irritante de romper a tênue fronteira do basculante daquele quarto dos fundos. Aliás, meu destino era mesmo o quarto dos fundos, reservado pelos arquitetos às empregadas domésticas. Logo que fiz 13 anos, minha mãe espremeu a minha cama num espaço que não chegava a cinco metros quadrados. Motivo: meus primeiros pelos pubianos davam as caras para a vida e eu não podia continuar dormindo com a minha irmã mais nova. Vinte anos depois de ter saído de casa, Dona Getúlia, proprietária da pensão onde eu morava, no Catete, me alugou um quarto escondido do mundo, do qual eu só podia pressentir o aspecto cinzento e abafado da área de serviço de um prédio erguido nos anos 40.

Meu relógio era um velho Classic que meu padrinho deixou para mim quando morreu, mas eu não precisava ver as horas para saber que já deveria ter passado das 8 horas daquele domingo, 31 de dezembro de 2000. O estômago dançava no vazio. Dei um arroto e me lembrei do quibe cru que comi às duas da madrugada num bar do posto seis, antes de chegar em casa. Acordei de ressaca no último dia do século 20. Na noite anterior, eu tinha ido a uma festa na casa de um cara que trabalhava comigo e que resolveu patrocinar a bebedeira final do milênio.

Com a cabeça rodando, me levantei pra pegar os chinelos, mas eles estavam embaixo da cama. A preguiça de apanhá-los era maior do que a necessidade de calçá-los. Deitei novamente, pensando no que me obrigara a levantar tão cedo num domingo. Tinha prometido almoçar com meus pais e visitar dois ou três amigos. Queria também ver o por do sol da Pedra do Arpoador, o último após mil anos. Mais tarde seguiria para Copacabana. A festa de fim de ano seria a maior de todos os tempos no Rio. Eu havia lido no Jornal que cinco milhões de pessoas assistiriam na Avenida Atlântica à queima de fogos, que dessa vez seria feita do alto de todos os prédios. Em vários pontos da praia, haveria telões mostrando a retrospectiva do século. No mar, centenas de barcos iluminariam o céu com feixes de raio laser. E à meia-noite e meia, aconteceria o grande momento do réveillon: o U2 subiria ao palco armado em frente ao Copacabana Palace, para dar o show que saudaria a chegada do terceiro milênio. Eu queria ver o show do U2 de qualquer jeito. Há 15 anos eu esperava que eles viessem ao Brasil.

Tomei coragem, saí da cama e caí na imensidão do corredor da pensão. De tão comprido, ele serviria de pista de treino para qualquer velocista. No andar de baixo, os outros moradores já estavam tomando café. A pensão estava movimentada para um domingo de manhã. No chão de tábua corrida, reparei que havia uma carta. Me agachei para pegá-la e notei que era para o rapaz do quarto do lado do meu. Quando ia colocá-la embaixo da porta, a data da postagem me chamou a atenção: 17 de agosto de 1989. Franzi a testa. Meu vizinho deixara cair uma correspondência de 11 anos antes. Mas o estranho é que ela continuava fechada e sequer estava amarela. Fiquei mais intrigado porque ela ainda tinha cheiro de cola e a tinta do carimbo era recente. Observei o envelope durante alguns segundos e achei mais prático concluir que o correio havia carimbado a data errada.

Parei na porta do banheiro coletivo, com a escova de dente na mão e a toalha caindo pela cintura, escondendo a ereção matinal. Encostei na porta e dei duas batidinhas. Era o código na pensão. Duas batidinhas: você só tem mais cinco minutos. Três batidinhas: desligue logo o chuveiro e saia daí que tem gente esperando. Quatro ou mais batidinhas desesperadas: pelo amor de Deus, abre essa porta!

Apoiado no portal, eu tentava tirar com os dentes um pedaço de pele ressecada do polegar da mão que sobrou de uma bolha que estourei. A inquilina do quarto 42 passou por mim de baby-doll e eu continuei de dedo na boca, olhando suas pernas. Ela era sobrinha de Dona Getúlia e achava que podia andar seminua pela pensão. Por mim, tudo bem. Parou em frente à folhinha pendurada na parede a uns 20 metros de mim. Mudou a data e voltou em minha direção, dando um sorriso de bom-dia. Cuspindo a pele que finalmente conseguira arrancar, acompanhei sua passagem até que ela desaparecesse na escada. Virei para o outro lado e bati os olhos na folhinha. De longe deu para ver o mês: agosto. Olhei para a escada, como se ainda pudesse chamar a mulher e dizer que estava errado. Foi quando notei a data: 21. Uma palpitação começou de repente dentro de mim. Exclamei baixo um “Eu, hein!” e forcei os olhos para ver direito. E vi. 1989. Quis falar qualquer coisa, mas fiquei calado. Olhei para os lados procurando entender, querendo explicação. Mas não havia ninguém no corredor. Decidi ir até a folhinha. Ela marcava sem hesitação:

AGOSTO
21 SEGUNDA 1989

Senti zonzeira, o pé fora do chão, a vista turva e a boca salivando. Alguém estava de brincadeira com a minha cara. A menina do quarto 35 saiu do banheiro. Olhou para mim e gritou:

– Ei! O banheiro está vago. Não estava com pressa?

Fiquei olhando para ela sem enxergar. Me aproximei calado, os olhos arregalados. Ela me fitou de cima a baixo e fez um sinal de reprovação com a cabeça. Quando estava descendo a escada, eu a chamei:

– Ei! Espera!

Ela se voltou para mim, me encarando sem paciência.

– Que dia é hoje? – perguntei.

– Segunda-feira. Não tá vendo na minha cara?

Eu ri sem graça. Ela me olhava de mau humor. Insisti:

– O dia do mês?

– 21.

– De agosto?

– É… de agosto… – ela me olhava desconfiada.

Quando se preparou para descer novamente a escada, eu voltei a perguntar:

– Espere, só mais uma coisa: quando foram as olimpíadas de Seul, na Coreia?

– Ano passado, ué!

– 1988?

– Lógico, cara!

– É, lógico. Burrice minha. Ok. Obrigado.

Me virei de costas para ela. Eu precisava de um pouco de ar e fui até o janelão do corredor que dava para a Rua Silveira Martins. Dona Getúlia passou por mim e notou meu ar mais pálido que o costume:

– Meu filho, você está bem?

– Hã? Estou sim, muito bem. Onde estão os jornais de hoje?

Ela me olhou espantada. Eu nunca perguntava pelos jornais.

– Estão lá embaixo, na portaria…

Desci correndo a escada. Segurei a faxineira pelo braço:

– Onde estão os jornais?

– Na mesa da televisão.

Corri e peguei o primeiro exemplar que vi. Passei os olhos pela primeira página. Estava lá:

Rio de Janeiro, segunda-feira, 21 de agosto de 1989.

Comecei a ler as primeiras notícias. As três primeiras páginas eram sobre a sucessão presidencial, às vésperas do centenário da proclamação da república. Nos esportes, o destaque era a seleção brasileira, que disputava as eliminatórias para a copa do mundo da Itália. Em 1990.

Me belisquei, puxei os cabelos, mas tudo continuou como estava. Não acordei de nada, porque aquilo tudo parecia mesmo que não era um sonho. Saí andando pela pensão, perguntei a data a quase todo mundo, li a primeira página de mais três jornais. E todos me respondiam, com um ar de naturalidade que me levava ao desespero: 21 de agosto de 1989. Passei a mão no rosto e fiquei olhando atônito uma jarra de alumínio em cima da mesa. O que havia acontecido? A não ser que eu tivesse ficado louco, eu estava em 1989. E que diabos, meu Deus – se ele existisse, que me respondesse sem demora -, eu fazia onze anos antes? Pensei na possibilidade de ter morrido e meu espírito ter voltado no tempo. Fui até meu quarto, mas não vi meu corpo em cima da cama. Pensei também que pudesse ter sido atropelado, assassinado antes de chegar em casa e meu cadáver estivesse sem identificação no IML. Mas, não. Impossível. Tudo era muito real e, apesar de nunca ter morrido, eu achava bem pouco provável que defunto tivesse ereção matinal e vontade de fazer xixi. Eu estava vivinho da silva e em 1989. Fosse o que fosse, eu voltara onze anos no tempo e agora teria que me virar para encontrar meu lugar certo no calendário.

Olhei no espelho do armário e descobri que a minha aparência não havia mudado. A fisionomia era a mesma dos meus 42 anos. O que custava ao maluco que me arrumou toda aquela encrenca me trazer de volta também a minha aparência de 31 anos? Mas não. Só para me contrariar ainda mais, viajei no tempo cheio de fios brancos nos cabelos e na barba, além daquelas ruguinhas abaixo dos cílios inferiores. Tudo adquirido nos últimos onze anos. Ou melhor, nos próximos onze anos. Meus Deus! E agora? Eu estava antes ou depois de mim mesmo?

Fiquei dez minutos parado, pensando naquela confusão, ainda tentando aceitar que tudo era real. Me senti sozinho, desnorteado, desesperado. Quis telefonar para algum amigo. Mas a maioria das pessoas com quem eu convivia no ano 2000 eu ainda não conhecia em 1989. Lembrei do Antero, que era amigo de infância. O telefone dele era o mesmo há 20 e tantos anos. Peguei meu velho caderninho de endereços. Desci até a portaria e telefonei, mas ele não estava. Também, se estivesse, era pouco provável que acreditasse naquela loucura. Aliás, era pouco provável que alguém no mundo acreditasse.

Subia a escada devagar, desanimado, quando ouvi a faxineira cantando no andar de cima:

“Eu nasci há dez mil anos atrás.
E não há nada nesse mundo
Que eu não saiba demais.”

Parei onde estava. Senti calafrio, o coração disparando. Pensei alto e quase dei um grito: “Nossa senhora! Se tudo isso é verdade, Raul Seixas vai morrer hoje, às duas horas da tarde.”

Eu nunca me esqueceria daquela segunda-feira de agosto, quando eu e uma legião de desamparados perdemos um de nossos maiores ídolos. Eu adorava o Raul Seixas. Tive todos os seus discos, que foram se perdendo nas dezenas de vezes que mudei de casa. Mas a adoração e a idolatria por aquele que carinhosamente eu chamava de bruxo ainda estavam bem vivas em mim. Raul dissera tudo o que eu quis dizer, contestara tudo o que eu quis contestar e não conseguiu mudar tanta coisa que sonhou, da mesma forma que eu sonhei e não consegui.

Eu jamais poderia esquecer aquela segunda-feira de agosto, fim de década. Eu estava olhando o preço de uma televisão, numa vitrine da rua Uruguaiana, quando, às três da tarde, uma edição extra do noticiário informou que Raul havia morrido. A dor foi tão forte quanto a daquele fatídico 8 de dezembro de 1980, quando John Lennon foi assassinado. Já com lágrimas nos olhos, virei para um sujeito que estava ao meu lado e apenas comentei:

– Morreu o bruxo.

Deixei o cara para trás, perguntando o que havia acontecido e saí chorando pela confusão da Presidente Vargas. Raul Seixas estava morto e só o que eu queria era um quarto escuro, para chorar ainda mais e rezar por ele do jeito que eu sabia.

Essas lembranças me trouxeram um estalo na cabeça. Por que eu voltava ao passado justamente no dia da morte de um dos meus maiores ídolos? Se a questão fosse apenas dar um passeio pelo tempo, eu teria caído em qualquer dia, de qualquer mês e de qualquer ano. Aquilo era um aviso e eu raciocinava. Se eu quisesse voltar no tempo, teria que cumprir uma tarefa. Mas qual seria? Tudo era lógico. O louco que me arrumara aquela confusão deveria estar querendo prolongar a vida de Raul Seixas e acabou escolhendo um fã, porque somente quem gosta muito de uma pessoa é capaz de lembrar as datas de nascimento e morte. E vindo do futuro, eu poderia impedir que Raul morresse, pelo menos naquele dia. Agora, por que eu? Tinha tanto fã do Raul Seixas no Brasil… mas não discuti, mesmo porque eu não queria ficar em 1989, tendo tanta coisa para fazer no século 21.

Tomei um banho rápido. Olhei o relógio: 8h52. Eu tinha pouco mais de cinco horas para cumprir a minha missão. Na escada me lembrei de um detalhe: eu achava que em 89 eu ainda era casado. Era ou não era? Bem, se fosse, não teria acordado na pensão e sim no apartamento em que eu morava com a minha ex-mulher, em Botafogo. Pensei em ligar para ela e ver qual era, afinal, a minha situação conjugal naquele dia. Mas achei melhor não. A ligação poderia cair no futuro e o atual marido atender. De mais a mais, se eu fosse casado mesmo, não tinha a menor importância. Pelos meus cálculos, a separação era questão de semanas. Eu só tinha duas preocupações: salvar Raul Seixas e não perder o show do U2.

Seguia pela rua do Catete em direção ao Largo do Machado, desviando de barracas de camelôs e de filas de aposentados nas portas dos bancos. A manhã era nublada e abafada, ameaçando chuva. Peguei um ônibus. Os ônibus daquela época me pareceram horríveis. Eram duros, barulhentos e desconfortáveis. A indústria evoluiu em onze anos, pensei. Parei em frente à roleta e dei uma nota de cem mil para o cobrador. Ele riu:

– Que isso, meu irmão? Que grana toda é essa?

– Como que grana toda? – perguntei sem entender nada.

– Essa nota aí. Isso é o meu salário de um ano. Só se juntar todos os ônibus da empresa, eu posso te dar troco…

Ele estava certo. A inflação acumulada em onze anos passou de 15.000% e eu vinha do futuro com o dinheiro infinitamente mais forte que o daquela época. Eu estava milionário, poderia comprar a empresa de ônibus se quisesse. Me senti o Ted Turner. Acabei dando uma nota de mil para o trocador e ele me deixou pular a roleta. E ainda gritou:

– Toma cuidado! Rico exótico.

Saltei em Ipanema. Que eu me lembrasse, era lá que ele sempre morou. Devorava as calçadas da Visconde de Pirajá, apressado em salvar meu ídolo. Frente a frente com ele, eu falaria: “Oi, Raul, desculpa te incomodar, mas sabe o que é? Fui escolhido para te salvar da morte…”. Não, não poderia falar desse modo. Ele com certeza me olharia e diria: “Pô, bicho! Encontrei alguém mais maluco do que eu”. Eu não poderia parecer ridículo. Teria que encontrar um jeito de ficar perto dele. Qualquer movimento estranho ao seu lado, qualquer sinal de mal-estar, vertigem, qualquer coisa, eu entraria na história e pronto: teríamos o Raul por mais alguns anos.

Empaquei em uma das esquinas. Eu sabia qual era o prédio, mas e a rua? Prudente de Morais ou Nascimento Silva? Arrisquei a Prudente. Andei de ponta a ponta e não encontrei o prédio. Segui para a Nascimento Silva apertando o passo. 9h30. O tempo estava passando.

Andei uns dez minutos até chegar ao prédio, nem novo, nem velho. De classe média, mais para aposentado do Banco do Brasil do que para roqueiro. Enquanto muita gente que posava de astro do rock morava em casarões na Barra ou no Recreio, o velho bruxo, que trazia o Rock’n Roll na carótida, vivia sem luxo.

Parei em frente ao portão, quicando de ansiedade. Já me imaginava contando toda aquela alucinação ao meu ídolo. Mas quando o porteiro veio falar comigo, meu mundo desabou. Ele balançou a cabeça negativamente:

– O seu Raul não mora mais aqui. Há muito tempo.

Me senti fraco, derrotado. Perguntei quase sem voz:

– Como não mora? Você conhece ele? Você trabalha aqui há muito tempo?

– Há sete anos. Quando vim para cá, ele estava se mudando.

– Para onde? Você sabe?

– O síndico me disse uma vez que ele foi para São Paulo…

Paralisei. E o pior é que a história era verdade. Me lembrei que alguns anos antes da morte dele, eu li uma entrevista do Raul e ele dizia que estava de saco cheio da alienação da zona sul do Rio e por isso estava indo para São Paulo.

O homem fechou o portão atrás de mim. Me virei para a rua, passando a mão no queixo e olhando para o chão. A minha tarefa se tornara impossível.

Desanimado, tomei o rumo da praia. Parei no calçadão e fiquei olhando o mar, fumando um cigarro barato. Alguém me tocou nos ombros e falou atrás de mim:

– Vai caçar um trabalho, vagabundo.

Era Alfredo, velho amigo de grandes aprontos e noitadas. Ele era muito apegado a mim e vivia preocupado se algum dia a vida iria separar a gente. Agora eu poderia lhe dizer que a nossa amizade duraria pelo menos até a virada do século.

Ele estava acompanhado de uma garota que eu achava que conhecia, mas que não era a mulher com quem ele estava casado no ano 2000.

– Ô, cara! Não vai falar com a Laura?

Pedi desculpas, dei dois beijos no rosto e me lembrei que ela havia sido namorada do Alfredo durante uns meses. O namoro acabou porque ela resolveu fugir com um italiano joalheiro, duas semanas depois do carnaval. Alfredo ficou arrasado, quis sumir no mundo, mas aí conheceu a esposa e se apaixonou loucamente. A ideia de estar no passado ainda não havia entrado totalmente em minha cabeça e me dava vontade de brincar com aquilo tudo. Quis dizer que ele seria pai de um garoto que era uma verdadeira peste e que a mãe não era aquela vagabunda. Mas fiquei na minha.

– Pombas, cara! Você some. Já tem uns seis meses que a gente não se vê. Só consigo conversar contigo pelo telefone… – ele ia falar mais alguma coisa, mas parou e ficou me olhando espantado. – Cara, como você envelheceu! Nossa senhora! Tô até assustado…

Eu gelei por dentro. Ele continuou, me olhando mais de perto:

– O que te aconteceu? Você tá doente? Conta pra mim. Eu posso te ajudar.

Respirei fundo, fiz o que pude para disfarçar:

– Não, tá tudo bem. Só tive uns problemas de falta de vitamina, que afetaram a cor do cabelo…

Ele cruzou os braços, ficou me olhando sério. Arriscou perguntar:

– Isso tudo é por causa da Tatiana?

Não sabia o que eu falava. Tatiana era minha ex-mulher. Gaguejei, mas acabei me saindo bem:

– Também é por causa dela. Mas tem outras coisas, muita agitação… – eu queria mudar logo de assunto.

– Vocês dois… você acha que não tem mais jeito?

Vindo do futuro, eu tinha a certeza da resposta:

– Não, não tem não. É melhor ficar como tá.

– Ela me ligou no dia que você saiu de casa. Tava arrasada, mas disse que achava melhor também…

Que inferno! O Alfredo não parava de falar naquilo. Pelo menos descobri que eu não estava mais casado. Fiquei em silêncio. Ele notou que era hora de mudar de conversa.

– Mas eu tô te achando meio triste, preocupado… Quer ir ao show do Raulzito hoje à noite para dar uma extravasada?

Ele falou a palavra mágica. Dei um berro, peguei-lhe pelos ombros:

– Show do Raul? Onde?

– Calma, cara! No Trem Azul, às dez horas. Pensei que você soubesse.

Eu esfregava as mãos nervoso. Inventei a primeira coisa que me veio à cabeça:

– É que eu viajei… estava longe. – não deixava de dizer a verdade.

– Me disseram que esse show tá ótimo. Ele tá meio devagar agora, mas ainda é o velho Raul.

Minhas esperanças renasceram:

– Você sabe onde ele está hospedado?

Alfredo deu uma risada:

– Qual é, cara? O tempo de tietar essa galera já passou…

Eu também ri, sem jeito e melancólico. Realmente, aquele tempo havia passado. Para mim, há mais de 20 anos. Disfarcei a euforia, inventei uma desculpa e disse que tinha que ir embora. Antes de me despedir, perguntei baixinho, no ouvido dele:

– Você tá gostando dessa garota?

– Pacas.

Eu ri:

– Legal. Você vai ser muito feliz.

– Também acho. Me liga pra ir ao show.

– Pode deixar. – dei as costas e lembrei que, menos de um ano depois, eu estaria esperando por ele em um botequim sujo no Flamengo, para que ele desabafasse toda a dor de homem abandonado.

Parei no primeiro orelhão que encontrei. A sorte foi ter trazido o caderninho de telefones. Mais sorte ainda foi guardar um caderninho de telefones por tanto tempo. O único problema é que no ano 2000 os orelhões a ficha não existiam mais. O lindo cartão magnético da Telebrás que eu trazia no bolso não me serviria para nada. Olhei em volta. Atrás de mim, uma mulher segurava um bolo de fichas. Me deu duas e, por um breve instante, fiquei tentando me lembrar onde se colocavam as fichas no telefone. Liguei para o Roberto, um sujeito que na época eu conhecia por intermédio de um primo da Tatiana. Por ironia do destino, anos depois, Roberto se casou com ela. E pelas notícias que eu tinha, até o final do século eles estavam bem felizes juntos. Eu sabia que em 89 ele trabalhava no Trem Azul e poderia me dizer onde o Raul estava hospedado. Roberto atendeu e eu falei sem jeito:

– Desculpa tá te acordando essa hora. Pessoal que trabalha na noite acorda tarde…

Mas ele foi simpático e receptivo:

– Nada, mer’mão. Diga-me lá.

– Sabe o que é? Tô precisando saber em qual hotel que o Raul Seixas está hospedado…

Ele não perguntou por que, mas estalou a língua entre os dentes:

– Tsc! Putz, cara! Complicou. Sei não.

Eu passei a mão na cabeça:

– Não tem como você me arrumar isso?

– Hum… deixa eu ver… – ficou em silêncio alguns segundos.

– Faz o seguinte: me liga daqui a dez minutos.

– Ok! – bati o telefone. A vida de Raul Seixas estava em nossas mãos.

Enquanto esperava, fui dar um volta na Praça Nossa Senhora da Paz. Em 89, ainda se podia passear por ali. No ano 2000, a praça havia se transformado num grande abrigo de mendigos. Passei por uma barraca de frutas e a cor das maçãs me despertou o apetite. Olhei e vi que o barraqueiro estava de costas. Rapidamente, meti a mão em duas maçãs e escondi dentro da camisa, sem que ele notasse.

Sentei num banco do outro lado da praça para comer as frutas. Estava preocupado com o horário. Já eram quase dez horas. Brinquei com duas menininhas que giravam bambolê e notei que perto de mim estava alguém familiar. Era a minha ex-namorada, a primeira mulher com quem tive alguma coisa séria depois do casamento. Só nos conhecemos em 1994 e ficamos dois anos juntos. Ela engravidou e, quando íamos casar, um acidente de moto destruiu nossos planos. Eu quebrei a perna. Bianca não sofreu nada, mas acabou abortando. Ela ficou louca com isso. Não suportou a ideia, porque vivia com a paranoia de que não engravidaria mais. Se mudou para Nova York, deixando no Brasil mil retalhos meus, que levei meses para costurar. Depois, ela foi viver com um americano em Paris, e eu continuei na solidão da rua do Catete.

Bianca estava diferente, com o cabelo mais curto e um pouco mais gorda. “Vai estar mais bonita quando me conhecer”, pensei, jogando o esqueleto da maçã fora. Era divertido ficar encontrando na rua os fragmentos do futuro. Ela estava acompanhada, de braços dados com um rapaz. Deveria ser o cara que ela namorou antes de mim. Acertei. Os dois começaram a se beijar de uma forma apaixonada, igual a como a gente se beijava, ou melhor, iria se beijar. E ela me disse que nunca tinha beijado ninguém da forma como me beijava. Me deu tristeza, melancolia, um pouco de abandono. Comecei a comer a outra maçã.

Voltei ao orelhão e fiz questão de passar em frente aos dois. Olhei-a no rosto. Bianca me acompanhou com os olhos, séria. E ela sempre me dizia que nunca olhava para outro homem quando estava com o namorado do lado.

Discava os números, batendo nervoso com os dedos no orelhão. Mal Roberto atendeu, eu fui logo perguntando:

– E aí? Você conseguiu descobrir o hotel?

– Consegui. É o Guanabara. Sabe onde é?

– Não.

– Aquele da Presidente Vargas.

Com muito custo, acabei me lembrando de que no fim do século ele já havia sido demolido e em seu lugar fora construído um Centro Empresarial.

– Só não sei o quarto em que ele está. – ele completou.

– Isso eu descubro. Obrigado, hein?

– De nada. E a Tatiana? Vocês não voltam mais?

– Acho que não. Nunca mais. Tchau.

Desliguei sorrindo. Sempre tive a impressão de que ele dava em cima da Tatiana. “Espere alguns anos. Esse problema vai ser teu um dia”, pensei.

Entrei no primeiro ônibus que me levasse ao Centro da Cidade para que eu pudesse cumprir a minha missão. Raul Seixas estava a poucas horas da morte, a história do mundo se sucedia e eu era um cara brigando contra o tempo, na tarefa inglória de alterar o momento das coisas acontecerem. Spielberg, E.T., Back To The Future, Indiana, o sonho de sonhar o impossível, a necessidade de acreditar no irreal, porque agora a vida imitava a arte e eu tinha que impedir que um cara bem legal morresse na hora escolhida. Pensei no Super-Homem, voando desesperadamente ao redor da Terra em sentido contrário ao da órbita, para que o tempo voltasse e ele pudesse salvar a mocinha da morte. No último banco de um Leblon-Usina, aproveitei a vista da enseada de Botafogo e pedi a Deus pelos loucos.

Para evitar novos problemas com o troco, saltei pela porta de trás, sem pagar, só que um ponto antes do hotel. Atravessando a Avenida Rio Branco, notei que a cidade era bem mais limpa em 1989. O trânsito também era mais fácil, não se levava tanto tempo para se ir de Ipanema ao Centro. Também não existia tanta gente sem casa, morando pelas ruas, com a família inteira pedindo comida e dinheiro.

Entrei no saguão do hotel e encostei no balcão da recepção. Uma morena linda veio me atender.

– Por favor. Eu gostaria de saber qual é o quarto do senhor Raul Santos Seixas.

Ela me pediu que aguardasse. Pegou o livro de registros e com a caneta acompanhava linha por linha o nome dos hóspedes. Certas coisas que eu via me chocavam e pareciam absurdas. No tempo em que eu vivia, o papel era coisa obsoleta. Ninguém trabalhava mais sem o computador. A morena se deteve em uma das páginas, olhou, olhou e disse:

– O senhor Raul Santos Seixas entregou as chaves na portaria às 8h30.

Não era possível. Demorei quase um minuto para falar. Insisti:

– Por favor, confira bem, veja se não há outra pessoa com esse nome.

– Pacientemente ela folheou o livro outra vez, enquanto eu me contorcia de agonia, encostado no balcão.

– Não, senhor. Ele era o único com esse nome no hotel.

Eu não queria acreditar. Eu não podia acreditar naquilo:

– Mas será que ele não foi dar apenas uma volta por aí?

A morena não perdia a paciência comigo:

– Sinto muito. Ele entregou o quarto e fechou a conta, senhor.

Levantei as mãos para o céu, puxei os cabelos, falei um palavrão. A mulher me olhava séria, pensando que eu fosse bater nela.

– Você sabe para onde ele foi?

Ela me pediu que aguardasse. Foi até o gerente e, quando voltou, não me trazia boas notícias:

– Segundo o nosso gerente, ele estava se sentindo mal. Pediu um táxi para o Aeroporto Santos Dumont e disse que voltaria para São Paulo.

Nem agradeci a atenção da menina. Virei as costas e saí pela portaria feito uma bala. Atravessei na frente dos carros e uma Kombi velha quase me atropelou. Peguei o rumo da Praça XV. A minha última esperança era que os voos estivessem lotados e que houvesse fila de espera.

Corri feito um desesperado, desviando em cima de tudo que me aparecia pela frente. Mas quando virei a rua Primeiro de Março, não teve jeito. Um cara entrou na minha reta e o encontrão foi tão forte, que ele caiu no chão.

– Porra, babaca! Toma cuidado! – e ele gritava comigo, tentando se levantar e recolher um monte de papel espalhado.

Eu ia pedir desculpas, mas quando ele se virou, arregalou os olhos e seu rosto ganhou uma expressão de horror. A minha reação foi a mesma. Soltei um grito e tive vontade de chorar. O cara em quem eu tinha esbarrado era eu mesmo com 31 anos de idade. Não falamos nada. O eu do futuro começou a tremer da cabeça aos pés, enquanto o eu do passado olhava estático, com os lábios também trêmulos, pálido, com dificuldade para respirar.

– Que porra é essa, bicho? Quem é você? – e a minha imagem do passado falava comigo praticamente aos berros, ofegante.

Eu comecei a chorar e as palavras não saíam. Tive vontade de abraçar aquele cara na minha frente e dizer-lhe que, acima de tudo, aguentasse e fosse forte, porque a barra pesaria e muito dali por diante. Ele me segurou pelo braço e me sacudiu:

– Fala, miserável! Quem é você? Qual é o teu nome?

Eu soltei um berro angustiado, empurrei ele de volta para o chão e saí correndo pela rua.

– Filho da puta! Quem é você? Vem cá me dizer, infeliz! – ainda pude ouvir atrás de mim.

Comecei a correr mais ainda para evitar ser alcançado, caso ele resolvesse me seguir. Depois de cinco minutos, parei na porta de uma igreja e fiquei mais um tempo chorando, sem saber novamente se eu acreditava ou não em tudo o que estava acontecendo. Eu não imaginava que a loucura seria tanta. Já era difícil para mim ter voltado onze anos. Mas ter dado um encontrão comigo mesmo no meio da rua parecia alucinação.

Parei de chorar, me recompus. Eu tinha que ir até o aeroporto tentar salvar Raul Seixas se quisesse voltar ao meu tempo. Levantei e comecei a correr de novo. Cheguei ao Santos Dumont com o coração na boca. O meu fôlego não era mais o de 31 anos. O saguão estava vazio e os voos saindo nos horários. Infelizmente, tudo normal naquela segunda-feira de 1989. Corri até o guichê de passagens e perguntei:

– Algum passageiro chamado Raul Santos Seixas embarcou hoje?

A mulher do guichê, que deveria ter a mesma idade que eu na época, me olhou sorrindo:

– O Raulzito? Embarcou sim. No voo de 9h30. Comprou a passagem comigo. – meteu a mão no bolso do blazer e tirou um pedaço de papel. – Eu o amo. Olha o que ele me deu.

E me mostrou aquele que, talvez, seria o último autógrafo do bruxo. Rabiscado em letras grandes, dava para ver embaixo da assinatura: “Faça o que tu queres, pois é tudo da lei!”.

Fitei a mulher com ternura e tristeza. Ela não sabia, mas dentro de mais algumas horas, nós dois e outros milhões de uma geração estaríamos órfãos. Quis contar isso a ela, mas era lógico que eu não poderia. O máximo que disse foi um “Guarda com carinho”, agradeci e saí.

Fiquei andando pelo aeroporto, derrotado. Raul Seixas estava a menos de três horas da morte, enquanto eu, seu salvador inútil, a mais de 400 quilômetros de distância, pensava num jeito de brincar de cinema e voltar do túnel do tempo. Eu caminhava sem rumo, deixando que as sombras do dia nublado abraçassem a angústia da perda.

Olhei para uma das entradas do saguão e notei que uma mulher vinha sorrindo na minha direção. Foi quando a tristeza e a angústia que eu sentia deram lugar a um calafrio de pavor. Maria Paula, minha melhor amiga desde a infância, parou em frente a mim e continuou sorrindo. Eu comecei a suar frio e a tremer novamente, com vontade de soltar outro berro de desespero. Eu não merecia aquilo. Maria Paulo morreu dois anos depois, no réveillon de 1991, quando um caminhão desgovernado bateu de frente no carro dela, na estrada para Arraial do Cabo. Ela morreu na hora e eu, aterrorizado, assistia em minha mente voltarem as cenas daquela noite: o corpo da minha amiga estendido no asfalto e eu passando a madrugada de Ano Novo no Instituto Médico Legal de Cabo Frio para conseguir a certidão de óbito.

– Qual é, Papel? – ela me chamava pelo apelido de criança, porque eu era magro e branco demais. Sorria e me olhava com seus olhos negros, que devoravam as pessoas mais desavisadas que a encaravam. Falava mil coisas ao mesmo tempo, mas o meu pavor não me deixava prestar atenção. Jogou os cabelos negros para trás e disse:

– Vou pra São Paulo resolver uns troços, mas volto hoje mesmo. – era difícil acreditar que ela, um sinônimo de vida, só existisse no passado.

Maria Paula notou que eu estava pálido e trêmulo. Chegou mais perto de mim:

– Que foi, cara? ‘Cê tá legal? – só aí notou minha aparência – Que porra de cabelo branco é esse que você não tinha quando te vi da última vez? E essas rugas?

Passei a odiar aquela brincadeira de estar no passado. Aquela loucura toda estava debochando de mim, me torturando, usando agora a minha amiga de uma forma covarde. Ela passava a mão nos meus cabelos e eu tentava manter a calma:

– Eu tô legal. Foi só um problema de falta de vitamina que eu tive, mas já tô me tratando.

– Mas parece que você envelheceu dez anos…

Eu sorri, quase chorando. Ela perguntou:

– O que que é? É a separação? O desemprego? Calma. Aquele meu amigo falou que vai te arrumar alguma coisa.

Eu queria gritar que não era nada daquilo, que ela era o único motivo.

– Não, não é nada disso. É que eu tô fraco, não comi nada hoje ainda…

– Eu vou te dar dinheiro para almoçar. Toma. – e tirou uma nota da bolsa e colocou no bolso da minha calça. Ela sabia que na época eu estava numa miséria que fazia dó.

– Não precisa. Eu como lá na pensão. – meti a mão no bolso e devolvi o dinheiro. Ela me olhava séria e eu não conseguia encarar a pessoa mais pura que conheci na vida. Nós dois éramos a prova de que o amor espiritual existia. Com 15 anos, tentamos namorar. Não deu. Não sentíamos desejo um pelo outro. A nossa atração estava apenas em nossas almas, em nossas mãos dadas, sempre como se fôssemos crianças, a lei de nosso pacto de irmãos eternos. Tomávamos banho juntos, mas nada acontecia. Éramos andróginos um para o outro.

– Você tem certeza de que não quer dinheiro para comer?

Eu balançava a cabeça, dizendo que não.

– Então, tá. Mas vai logo pra pensão comer alguma coisa.

Ela me beijou na testa. Eu a abracei, passei a mão em seus cabelos, apertei sua nuca. Beijei-lhe o rosto seguidamente. Eu queria gritar, cair de joelhos berrando, implorando poder levar Maria Paula para a minha época, pular o tempo, driblar as garras do destino. Com a garganta apertada, disfarcei o choro e falei:

– Mapau! Te cuida. Eu te amo demais!

Ela se desenlaçou do meu abraço e me disse baixinho:

– Eu também, mais do que você imagina. Deixa eu ir, senão perco o avião. À noite eu te ligo.

Quando ela já estava no portão de embarque, eu tive um estalo. Se eu não conseguia salvar Raul Seixas, a minha amiga, a morte não ia levar. Pegaria Maria Paula e contaria tudo que estava acontecendo e que se danasse se ela não acreditasse. Por ela eu seria capaz de ficar no passado e viver onze anos novamente, apenas para protegê-la. Saí correndo feito um louco, sem ver nada na minha frente. Uma mulher cruzou o meu caminho com um carrinho de bagagens. Voou mala para tudo quanto foi lado. Eu caí estatelado, a uns vinte metros, com uma dor violenta no tornozelo. Me levantei e, capengando, me dirigi ao portão de embarque. Os seguranças me impediram de passar. Por trás do ombro de um deles, pude ver o velho Electra pegando a pista.

– Eu te amo, Mapau! – e falava chorando nos braços do segurança que me tirava dali.

Voltei para o saguão, mancando, me sentindo aniquilado e com vontade de sumir do passado e do futuro. Das minhas lágrimas escorriam Raul Seixas, Maria Paula e todos os erros que cometi, todas as coisas que eu poderia ter feito e não fiz. Eu queria dizer a quem me levou até ali que tudo tem uma razão de ser e era tolice querer voltar e mudar o curso e a história.

Fui até um trailer comprar um maço de cigarros e tomar um café bem forte. Quando dei o dinheiro, o rapaz falou:

– Moço, me desculpe, ninguém por aqui vai ter troco para essa grana toda.

Eu tinha esquecido que eu virara milionário. Puro costume de sempre ter sido pobre. Desisti do café e do cigarro e voltei a andar sem rumo.

De repente, um novo estalo:

– Puta merda! É claro! – com o dinheiro que trazia do futuro, eu poderia ir a São Paulo 20 vezes num só dia. Com toda a confusão, nem me lembrei disso. Com exceção dos banqueiros especuladores, acho que fui o único brasileiro a gostar da inflação, mesmo que por poucas horas. Fui até o guichê e comprei passagem para o voo de 12h30. Raul Seixas voltava a ter chances de continuar vivo.

Antes de embarcar, tive que conseguir o endereço de Raul Seixas. Me lembrei que um colega meu tinha uma coluna de música numa revista. Saquei do velho caderninho outra vez. A memória estava ajudando. Eu conseguia lembrar onde as pessoas estavam trabalhando onze anos antes. Se duvidasse, nem elas lembrariam mais. Ele só teve o trabalho de abrir a agenda e me dizer o endereço. A facilidade me deixou ainda mais animado e a cada hora eu acreditava mais que salvaria Raul Seixas.

Sentei numa poltrona à direita e nem reparei o jeito que as pessoas me olhavam. Eu vestia uma calça jeans surrada, uma camiseta amarrotada e um casaco de moletom amarrado na cintura. Era um elemento destoante em meio aos executivos da ponte aérea. Observei dois ou três carinhas daqueles. Eles usavam gel fixador no cabelo, óculos de armações pretas e gravatas de seda coloridas. Em 2000, aquilo já estava fora de moda há vários anos, inclusive terno e gravata. A inversão térmica, que elevava a temperatura a quase 50 graus no verão, fez com que quase todas as empresas deixassem funcionários e diretores trabalharem apenas de camisa. Eu, que nunca me liguei em moda, achei engraçado pensar que aquela gente era cafona.

Perto de mim, um garoto de uns dez anos não tirava os olhos dos meus tênis, um modelo lançado no final de 99, que eu ganhei de presente de aniversário da minha mãe. Era totalmente diferente dos tênis que aquele moleque conhecia. Como ele não tirava os olhos, eu perguntei:

– Gostou?

– É. Muito maneiro. Mas eu não conheço, nunca vi igual…

– Como não? Lançaram no ano passado.

– Eu nunca vi.

– Quando você for mais velho, vai ter um igual. – me virei para a janela sorrindo.

As asas cortavam as nuvens e isso me fez pensar que foi preciso voltar ao passado para que eu andasse de avião. “Pobreza”, murmurei.

À medida que o tempo passava, comecei a sentir medo de fracassar. Estávamos com 25 minutos de voo e eram 25 minutos que Raul Seixas estava mais perto da morte, e eu, possivelmente, mais distante da minha verdadeira época. Pela primeira vez parei para pensar como eu voltaria, quem me levaria de volta ao futuro. Eu não poderia continuar vivendo em 1989, atravessar novamente onze anos da minha vida, sabendo exatamente o que aconteceria comigo e com as pessoas ao meu lado. Seria uma tortura viver novamente situações pelas quais eu não queria ter passado uma vez, quanto mais duas. Me angustiava pensar que eu teria que viver de novo um processo de separação, duas demissões, dois anos desempregado, passando fome e comendo aipim com ovo cozido todos os dias, Bianca perdendo a criança e me abandonando, Maria Paula morrendo de forma estúpida… Não! Eu não teria estrutura, mesmo sabendo que sobrevivi a todos esses cataclismos. Eu seria um homem de 42 anos, passando tudo que passei depois dos 31, mas sem a energia daquela época. Eu precisava acreditar em duas coisas: a primeira, que eu salvaria Raul Seixas; a segunda, que quem me arrumou tudo aquilo se daria por satisfeito e me levaria de volta ao lugar certo no calendário.

Eu sentia medo quando o avião aterrissou. Quase levantei, no ímpeto de saltar logo, mas disfarcei, lembrando que eu não estava num ônibus, onde a gente levanta antes de chegar ao ponto.

Pisei no saguão do aeroporto às 12h57. A primeira coisa que vi foi uma plaqueta indicando a parada de táxis. Às 12h59 entrei num velho corcel, mostrando o endereço ao motorista. Ele olhou balançando a cabeça e comentou:

– É do outro lado da cidade.

Animador. Uma hora para cruzar São Paulo e salvar a vida de um pop star.

– Em quanto tempo você faz até lá? – perguntei mordendo os lábios.

– Se tudo correr bem, meia hora.

Olhei para ele implorando:

– É caso de vida ou morte, literalmente.

O cara deu uma arrancada e chamou a atenção de todo mundo na rua. Numa tacada só, cortou três fuscas e avançou um sinal. Tentei me lembrar se em algum dia de 1989 eu cheguei a pensar que morreria dentro de um táxi em São Paulo. Perguntei quanto seria a corrida.

– Se a gente chegar vivo, deve dar uns 2 mil… – ele respondeu, desviando de um ônibus.

Eu tinha dinheiro para voltar ao Rio de táxi, se quisesse.

Ele dizia que aprendeu a dirigir nos pegas. De repente, deu uma freada brusca. Um sinal havia fechado.

– Esse aqui não dá pra passar.

Fiz que sim com a cabeça. Ele estava fazendo a parte dele. Mas também, por que quem me jogara no passado não poderia me conceder apenas mais meia horinha? Eu não sabia responder. Em algum lugar estavam determinadas as regras daquela gincana pirada e não me caberia agora, depois de ter aceitado participar, querer mudar o regulamento.

Eram 13h10 quando apareceu o primeiro engarrafamento. Dois caminhões bateram num cruzamento e o trânsito parecia arroz empapado. Eu olhava os carros parados na nossa frente e a torção no tornozelo latejava. “Agora fodeu tudo!”, pensei comigo.

– Fique calmo. Eu dou um jeito – e ele engatou a primeira, subiu na calçada, quase deixou o para-choque num hidrante e foi embora. Aí começamos a ouvir um barulho de sirene. Era a polícia atrás de nós. O motorista me olhou assustado:

– E agora? Vou ter que parar.

– Não! Pelo amor de Deus, não para! – gritei, fazendo gesto de súplica com as mãos.

– Mas se eu não parar, ele vão atirar.

Olhei pelo retrovisor do carona e vi que um dos policiais colocou uma escopeta para fora da janela, apontando contra nós. Imediatamente pus as duas mãos para fora, mostrando que estava desarmado. Virei para o motorista e ordenei:

– Agora faz o mesmo. – ele não entendeu. Eu gritei. – Anda, cara! Põe as mãos para fora!

– E quem segura o volante? – ele gritou também, me mostrando a lógica da situação. Raciocinei rápido:

– Vai. Agora você pode mostrar as mãos. – e eu segurei o volante, tentando controlar o carro que ele acelerava feito um doido, muito mais por nervoso do que por pressa.

– Você tá metido com alguma parada? Tráfico? Homicídio? – o suor escorria de sua testa.

– Não, juro que não. – respondi olhando no retrovisor. O policial ainda estava com a escopeta para o lado de fora. Ordenei novamente. – Faz uma coisa. Diminui a velocidade e deixa eles emparelharem com a gente.

O cara deu um tapa no volante:

– ‘Cê tá doido? Eles vão trucidar nós dois!

– Faz o que eu tô mandando, senão você é quem vai ser trucidado. E por mim.

Ele viu que eu não estava num estágio normal de raciocínio e resolveu me obedecer. A polícia emparelhou conosco. O policial que estava dirigindo gritou:

– Encosta esse carro!

Aos berros eu tentava explicar:

– Fica calmo! Ninguém aqui tá armado!

– Então por que não encosta essa merda?

– Porque o Raul, quer dizer, a minha mãe está morrendo sozinha no apartamento e eu tenho que salvá-la.

A figura materna comoveu. Pedi que eles nos seguissem para ver que eu falava a verdade. Eles colaram em nossa traseira, mas o do lado direito permaneceu com a arma pra fora. Dentro do táxi eu continuava dando ordens. Desviávamos dos ônibus, caminhões e outros carros, tirando finos menores que um fio de cabelo.

– Acelera! – eu gritava.

O motorista estava trêmulo e acabou confessando que pegou uma rua errada. Agora tinha que fazer o retorno e voltar para o caminho certo. Olhei para ele enfurecido, fechando a mão direita em forma de soco e mordendo o indicador dobrado. Eram 13h25. Meu tornozelo doía. Explodi:

– Cara, eu vou te matar! Acelera isso!

Ele me perguntou quase chorando:

– Você é carioca, não é? Bem que meu irmão falou que vocês são todos doidos…

– Cala a boca, infeliz! E acelera, senão eu te mato!

Ele resolveu me desafiar:

– Me mata como? Você não tá nem armado.

Botei minha presença de espírito para funcionar. Tirei do bolso uma cápsula alaranjada. Era um antibiótico que eu estava tomando contra a sinusite e mostrei a ele:

– Tá vendo isso aqui? – ele olhava de rabo de olho, apavorado, sem desviar a atenção do trânsito. – Isso aqui é uma cápsula de cianureto. Aqui dentro tem uma agulha. Se você não acelerar essa ratoeira, eu quebro a cápsula, vai começar a sair um líquido gosmento de dentro da agulha e eu vou enfiá-la na sua barriga, tá legal? E aí você morre em menos de cinco minutinhos. Ouviu, ô pastel?

A minha sorte é que ele era burro. Calou a boca e continuou dirigindo. A polícia atrás de nós e eu fazendo sinal para que nos seguissem.

Eram 13h42 quando ele deu uma freada brusca. O carro da polícia deu um cavalo de pau e parou atrás de nós. Os dois policiais pararam apontando as armas. Eu olhei para a cara do motorista do táxi:

– Tá maluco? Parou por quê?

– Porque chegamos. – e ele se esparramou no banco, olhando para o alto.

Tremi, gelei. Apesar da pressa, fiquei alguns segundos sem ação. Era ali, num prédio branco de varandas, que estava o meu objetivo. Joguei 100 mil na mão do motorista e 200 mil na dos policiais. Eles olharam abestalhados, parecendo não saber que estavam sendo comprados. Saltei do carro e o motorista gritou atrás de mim:

– Cara! É muita grana! Tem troco…

– Vai embora, porra! – e subi correndo uma escadaria.

Cheguei na portaria do prédio. 13h45.

– O Raul Seixas, por favor… – falei esbaforido, já quase me dirigindo ao elevador.

O porteiro veio atrás e me segurou firme pelo braço.

– O seu Raul está dormindo e pediu para não ser incomodado.

– É urgente! Eu preciso falar com ele! – falei abrindo os braços desesperado.

– O seu Raul está dormindo e pediu para não ser incomodado.

13h46. Eu não sabia se arrebentava a cara do sujeito ou subia na marra.

– Você não está entendendo nada! – e corri para o elevador.

Raul morava no décimo segundo andar. Apertei o botão. Quando a porta estava fechando, o porteiro segurou o elevador. A porta abriu. Forte e com os ombros largos, ele me puxou pelo pescoço e me jogou para fora. 13h48. Caí no chão. Me levantei, o tornozelo doeu, mas mesmo assim voei em cima dele, com toda a minha raiva. Ele caiu dentro do elevador e, como o botão estava apertado, a porta fechou e ele subiu. Eu fiquei. 13h49. 13h50.

– Merda! – gritei.

Corri para procurar o elevador de serviço. Acabei saindo na garagem. 13h51. Achei a escada. Era o jeito. Comecei a subir de três em três degraus, esquecendo o tornozelo inchado. Do terceiro para o quarto andar, as minhas pernas começaram a doer demais. 13h53. No final do quinto andar, eu já não conseguia mais respirar direito. 13h54. Do sexto para o sétimo, o desgraçado do porteiro apareceu na minha frente. Ficou uns oito degraus acima de mim. Eu, embaixo, esperei para ver o que ele ia fazer. 13h56. O retardado deu um berro de artes marciais e se atirou contra mim. Eu dei um salto para trás, me encostando na parede. Ele passou feito um saco de farinha cheio, bateu com a cabeça numa viga de cimento e se estatelou no chão. 13h57. Continuei subindo, mas perdi a conta dos andares. Abri a porta de um deles e saí na escuridão do corredor. Procurei o interruptor. Encontrei e acendi. 13h58. Estava no décimo andar. Voltei para a escada, sentindo que me faltava oxigênio no cérebro. Todo o meu corpo doía e o ar não entrava nos pulmões. Comecei a colocar sangue pelo nariz. 13h59. Engatinhei pelos degraus, vomitando as frutas que comi pela manhã. Veio um gosto amargo na boca. 14h00. Senti um gosto amargo de derrota na alma.

14h01. Me arrastei e abri a porta contra fogo do décimo segundo andar. Ao contrário do outro corredor, esse estava iluminado, mas não pela luz elétrica. Uma claridade imensa, que chegou a me cegar, vinha do interior do apartamento 1.203, cuja porta, não sei por que motivo, estava entreaberta.

Me levantei com dificuldade e entrei no apartamento. A claridade era mais intensa à medida que eu penetrava no recinto. Havia uma névoa fresca, que dificultava ainda mais a minha visão. No entanto, ela acalentava o meu corpo, empapado de suor.

Fui entrando. Não havia ninguém. A névoa e o silêncio invadiam a claridade. Conforme eu andava, ia sendo tomado por uma paz infinita, uma ternura de criança, uma vontade de chorar de alegria. Já não estava mais desesperado e o meu coração tinha voltado a bater calmamente. Tudo que eu sentia era uma tranquilidade, do tamanho do amor que me levara até ali. Quis agradecer por ter chegado, mas a quem eu agradeceria? Não tive vontade de falar nada, em respeito ao silêncio.

Uma rajada de vento entrou por alguma janela aberta e espalhou um pouco da névoa. Pude ver que eu estava num quarto. Olhei em volta e havia um vulto de homem de meia-idade, deitado em uma cama. Me aproximei trêmulo, solene. Era Raul Seixas. Estava morto. Raul Seixas morreu e eu não tinha conseguido cumprir a minha missão. Não consegui revogar a lei do tempo, mudar o curso da história. Mas não me senti triste. Senti a resignação dos sábios, a conformidade dos magos de antigamente.

Me ajoelhei ao lado da cama e peguei na mão de Raul Seixas. O corpo ainda estava quente. Foi mesmo por uma questão de minutos. Senti vontade de rezar, mas esqueci como era. Notei em seu rosto um ar de sorriso, um sorriso calmo de quem conhece o verdadeiro valor das coisas. Sorri também e falei seu nome para dentro de mim. Ele já tinha pegado a estrada, mas ainda estava perto e talvez pudesse ouvir aquilo que se transformou na minha oração. Jogada no tapete, uma folha de caderno, com a data daquele dia, onde Raul escrevera qualquer coisa sobre o tempo, a vida e a morte. Não consegui entender direito a letra. Guardei comigo para ler no futuro.

Beijei-o na testa. Levantei e fui embora, tateando as paredes e os portais. No corredor do prédio, o porteiro chegou todo ensanguentado e com um galo na testa. Ameaçou partir para cima de mim. Eu o encarei firme, fulminando-o com os olhos. Ele ficou estático, parou e não saiu do lugar. Puxei um pigarro e falei baixo:

– Avise a família. Por favor.

Ele arregalou os olhos:

– Avisar o quê?

Não respondi e entrei no elevador. Pensei em procurar Maria Paula pela cidade. Mas, mesmo que fosse possível encontrá-la, eu havia entendido que não poderia lutar contra certas coisas que já estavam determinadas.

Quando cheguei na calçada, o motorista do táxi e os policiais bebiam cerveja num bar em frente. Me aproximei e perguntei ao motorista se ele poderia me levar ao aeroporto. Ele colocou o copo sobre o balcão e respondeu sério:

– Não, moço. Desculpe. Eu tenho duas filhas para criar.

Fiz que sim com a cabeça e falei baixinho:

– Tudo bem. Eu entendo.

Começou a ventar frio. Vesti meu casaco e atravessei a rua, pensando num modo de voltar ao ano 2000 antes da virada do século.

Do livro Voando Pela Noite – Até de Manhã (7Letras, 1996;2013, 2ª edição)

Balada do adeus ao pequeno conversível

Obrigado, carrinho,
por todos esses anos
acelerando nas retas,
cantando pneu nas curvas
com ronco de motor
enchendo as tardes
de sábado e domingo.
Obrigado, carrinho,
até pelo cheiro
Do vapor de gasolina
subindo pelo carburador.
Obrigado pelos
cabelos ao vento
dando a ideia
de como deve ser
a liberdade dos pássaros.
Obrigado também
Pelo sol se pondo
Além do para-brisa
ou no canto do retrovisor
E pela lua cheia
Em noites
Sem capota.
Vai, carrinho,
vai fazer feliz
Outro que também
tenha o volante como terapeuta
E que coloque as ideias em ordem
a cada pisada no acelerador.

Enquanto você dormia

Na beira da cama
ainda sem luz do dia
seus ombros pesam
suas pernas pesam
e você vacila em se erguer.
No entanto,
Tudo que não seja físico em você
Prescinde de esforço.
Há dentro de você
uma incomum leveza
de orvalho
que se torna vapor
ao beijo do sol.
Embora até há pouco dormisse,
você pensa que andou
léguas e léguas
falando de estrelas
de pássaros soltos
de crianças com infância
mulheres respeitadas
e da possibilidade
de um mundo melhor.
Parece também que
ao longo da noite
sem lembrança de sonhos,
você deu água, comida e casaco
quando foi necessário,
pois suas mãos igualmente pesam
emendadas a seus braços exaustos,
e ainda assim por dentro
insiste a leveza
de grão de pólen
que escapou da abelha.

Mas o que será
Que lhe traz essa sensação,
se às onze da noite
você apagou feito
vela consumida
e dormiu sem quebra
o sono de pedra
dos homens explorados?
A resposta é justamente
esse conforto estranho no peito,
e a impressão de que
em algum lugar
ao qual você nunca foi,
alguém que você jamais viu
pensa em você
e sorri com gratidão.

Rolar para cima