Dissolução em cartório (conto inédito)

Calculou para que não chegasse muito antes da hora, para que não ficassem muito tempo calados um ao lado do outro, já que não havia mais o que conversar. Há cinco meses não se viam, desde a noite fatídica em que foi dito muito mais do que deveria ter sido falado. Nesse tempo todo, apenas mensagens trocadas, ora desaforadas, ora carinhosas; estas, sugerindo a ele esperanças que, hoje, enxergava, não existiam mais, ou jamais existiram, foi tudo ilusão sua, e nela, residia sua mágoa caudalosa, não raro, vestida com a capa da raiva. Agora, dessa tarde em diante, não perduraria qualquer razão para que se vissem novamente. Então, de certa forma, aquele encontro trazia o consolo amargo de ver Alice pela última vez e aplacar, mesmo que apenas por breves minutos, a saudade que a ele parecia que seria eterna.

Faltavam dois minutos para o horário marcado, quando ele começou a atravessar o corredor dividido em baias enfileiradas. Falatório, barulho de carimbos que validavam assinaturas, sinais sonoros chamando senhas. Na última das baias, havia uma mulher que, olhando sem os óculos para longe, ele chegou a pensar, por um momento, que fosse Alice. Será que cinco meses distante são capazes de fazer mistura e confusão? Logo em seguida, quando suas vistas alcançaram o hall dos elevadores, não teve sequer um segundo de dúvida: era Alice quem esperava para subir. “Uai, eu passei agorinha mesmo pelo corredor e não te vi”, e quando ela falou, ele imaginou seus pequenos olhos de sempre, vivazes, por trás dos óculos escuros. “Cheguei agora, Alice. Boa tarde”. Ela esboçou um passo à frente para beijá-lo no rosto, mas ficou como estava ao perceber que ele não se aproximaria. Também chegou a esboçar um leve sorriso, mas o recolheu, e não mais o exibiu, nem discreto, nem muito menos claro e luminoso como era seu feitio, posto que, naturalmente, seria impróprio para a ocasião.

Entraram no elevador. Ele mantinha os olhos no chão. Estava também de óculos escuros, que optou em detrimento dos óculos para longe. Era para se proteger de seus olhos confirmarem vazio e tristeza. Alice tentava puxar conversa, disse que o advogado já estava a caminho. “Ok”, ele se limitava. Só tirou o olhar do chão quando a porta do elevador se abriu.

Sentaram-se em um sofá para aguardar o advogado. Alice não desistia, queria conversa, mesmo que não houvesse motivos. “Você cortou o cabelo. Fica melhor de cabelo curto”. Ele riu, com uma espécie de desdém machucado. “Há um ano eu estou de cabelo curto, Alice”, e finalmente soltou uma frase de tamanho razoável. Tirando os cinco meses de separação, até ali extraoficial, foram, então, sete meses anteriores em que ela não o notava mais, em que, pelo visto, pouco ou quase nada olhou em sua cara, em que ele vagou em segundo plano na vida a dois. Ocorreram-lhe as brigas, as discussões, as crises, a união tornada burocrática à mesa, na cama, aonde iam, onde estavam. Mas havia um extenso histórico felicíssimo de viagens, passeios, filmes, pizzas, vinhos, lençóis desarrumados, corpos suados e relaxados. Houve a cumplicidade, o companheirismo, e a favor disso o placar era elástico, maior do que tudo que os levou a esperar naquele sofá. E era isso o que mais doía nele, pois aquela união era uma parede cheia de infiltrações em que, achava, uma boa demão de tinta deixaria nova em folha, a ser, inclusive, decorada com um belo quadro colorido. O que havia entre os dois, pensava, era um carro bastante amassado por manobras desastrosas, mas que ficaria novo se os dois se dispusessem a ser dedicados funileiros. Mas no fundo ele acabou se cansando de dizer e pedir por isso, e então, seu amor-próprio, seu orgulho optaram pelo silêncio e pelos óculos escuros que ocultavam os olhos sustentáculos do discurso de reatarem.

O advogado, enfim, chegou. Era um rapaz novo, com idade para ser filho deles, se houvessem tido um. Prometeu que tudo ali seria rápido. Ao escutar, ele remeteu ao quão rápida foi a briga naquela noite do rompimento de fato. O rompimento ali, agora, o de direito, seria igualmente rápido, a julgar pelo que assegurava o rapaz. Bem diferente da lentidão com que tudo foi se acabando nos últimos dois anos.

A oficial de registros entregou aos dois uma cópia do termo de dissolução. Pediu que conferissem os dados. Passando os olhos no documento sem nada enxergar no emaranhado juridiquês, ele não se atinha ao que havia de ser checado, e sim a que nada daquilo escrito fazia sentido para seu coração. Mas mantinha-se firme: jamais cogitou em fazer cena naquele ambiente autárquico; havia de manter hombridade, decência, dignidade ou o que fosse. No entanto, quando a moça concluiu “Então, podem assinar”, uma última recaída esperançosa soprou-lhe feito vento rápido que bate porta com força, trazendo-lhe a expectativa vã de que Alice, do nada, virasse para a moça e para o advogado e dissesse que os dois precisavam conversar um pouco mais, devolvendo, em seguida, o documento sem assinatura. Só que antes mesmo que ele terminasse de se iludir, Alice chancelava o que na folha estava escrito, e em seguida lhe entregava a caneta.

Fora realmente tudo rápido, como garantira o advogado. Quase nove anos oficialmente encerrados em menos de dois minutos.

Desceram. Alice conversava trivialidades com o advogado; ele, mantinha-se calado e escondido nos óculos escuros. O rapaz saiu por outra porta. Sobraram ele e ela, descendo uma escada curta, de no máximo quatro degraus, até a calçada. Era tamanho o silêncio entre os dois que poderia abafar as buzinas e motores do trânsito das quatro e pouco. Talvez convencida de que nem banalidades havia para serem ditas, Alice desistira de puxar conversa. Então, ele virou-se para ela. Deu com aquela mulher a quem tanto se entregou em milhares de noites. Aquela mulher de vestidos invariavelmente belos, que jamais ficaram sem um elogio seu. Aquela mulher que, agora sem os óculos escuros, deixava à mostra os olhos, o espelho mais perfeito da alegria que tinha em viver e que o conquistara.

Um vento morno revirou os cabelos arruivados de Alice, cuja cor, pela idade, era imitação da original e, ainda assim, os preservava luminosos. Pela última vez, a acharia linda, altiva, pura, sempre dona daquela luz que iluminou seus dias. Bobamente, tentou calcular quantos dias mais ou menos cabem em quase nove anos. Novamente ela intentou dizer algo, certamente para se despedir, mas ele foi mais rápido. Após cinco meses em que, mesmo à distância do aplicativo de mensagens, dissera, inclusive, “Por favor, me perdoa, Alice”, saiu-se com a única coisa que lhe pareceu própria para aquela hora, a única coisa que restou dizer: “Acabou, Alice. É o fim. Fica com Deus”. Apertou suas mãos e lhe deu as costas.

Imprimiu passos decididos na direção do estacionamento. Deu a volta com o carro e, quando pegou a rua, viu que ela descia a alameda arborizada. Quis parar para acompanhá-la com os olhos até que desaparecesse para sempre, no fundo da tarde. Dentro da cabeça, ouviu a própria voz gritar “Alice! Alice”. Colado a sua traseira, um caminhão feroz acelerava impaciente, um caminhão enorme, do tamanho da distância que a partir de agora se abriria entre eles. Acelerou enquanto as lágrimas passaram a verter volumosas, distorcendo totalmente sua visão do tráfego, como se caísse um temporal no para-brisas e o limpador estivesse quebrado. Escolheu no Spotify uma música bem triste, que o fazia lembrar de todos aqueles anos e que o ajudasse a desabar por completo. Cerca de duzentos metros depois, encostou o carro, para poder chorar com segurança a certeza do nunca mais.

4 comentários em “Dissolução em cartório (conto inédito)”

  1. Maria Cida Neri

    André, sua escrita visceral nos diz tanto, revivi cenas e sentimentos que vivenciei quando me separei.

  2. Ana Maria Lopes

    Já está ficando repetitivo de minha parte elogiar seus textos . Esse, especialmente, vai num crescendo que deixa o leitor na expectativa. E se ? Será?
    Gosto muito dessa sua fertilidade e do conteúdo de seus escritos. Impossível não nos vermos – como atores ou espectadores . Show !

  3. Sidneia Simões

    Belo conto triste – e tão vida real. Texto fluido. Gostei muito.

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