Poemas de separação, divórcio & afins

Os dias em que você começou a ir embora

Você não é essa que saiu porta afora
anteontem
levando em sacolas roupas sapatos escovas
o passado feliz
o presente morto
e o futuro sem rosto.
Você é aquela cujo sorriso
era lua cheia dobrando noite de tempestade,
era sol transformando quartos escuros em câmaras de luz.
E essa foi se mudando daqui
em pedaços
e um pouco a cada dia
ao longo dos últimos anos.

Eu percebia e te avisava
que você estava indo,
mas você não ouvia,
não se dava conta de que a toda hora
você partia
e deixava a porta aberta
para que sempre um pouco de você
fosse embora todos os dias.
Anteontem, amor, você já havia
saído de casa há muito tempo.

Do livro Os Filmes em que Morremos de Amor

Quadrinha doída, doída…

Andava de um lado pra outro,
na casa quase vazia:
não era só o que restara dos móveis,
mas o que lhe sobrara da própria vida.

Do livro De Tanto Bater com o Osso, a Dor Vira Anestesia

O homem no fundo do calendário

Há dez anos
eu e elas
na mesa posta
na mesa tirada
a louça suja
a louça limpa
brinquedos espalhados
em noites de pizza
de branca de neve
cinderela
rapunzel
discovery kids,
e sempre
camisas na lavanderia
calças no cabide,
e em todos os dias
lençóis esticados
camas prontas
para sono profundo
de consciência em paz
e dever cumprido.

Há dez anos
parece que foi em outra vida
e ao mesmo tempo
é como se houvesse
sido ontem.
Às vezes
e ainda
a sombra do que fomos
a culpa de que não me dispo
desprezam o que me tornei,
e a felicidade antiga
olha feito morta
por trás de mim no espelho.

Portaria 24h*

Eram 11 e meia da noite
De um sábado sem lua
Quando ele atravessou
A portaria.
Levava na sacola
Três mudas de roupa
Que trouxera na sexta-feira
Para ficar até domingo.
Acenou sem graça
Ao porteiro
Que, quem sabe,
escutou um pouco
do muito que foi dito
Lá em cima.
Sem vontade de ir pra casa
mas sem ideia de pra onde iria,
pensou se veria de novo
Aquele sujeito e o outro,
Que trabalhava durante o dia.

*Poema meu com música de Leonardo Almeida Filho

A Dor das Pequenas Tolices

Quem de nós pagou o último café que tomamos
Quando foi que pela última vez
Pus na torradeira uma fatia de pão
Para você
Qual foi a última garrafa de vinho que abrimos
O último filme no cinema
A última camisa que você viu na vitrine
E achou que me cairia bem.
Vasculho a memória
Das tolices felizes
E paro na frente de alguma loja
Em que esperava na porta
Você experimentar roupas
Que provavelmente não iria comprar.
Então sigo minha tristeza sem rumo
E nenhuma certeza,
Nenhuma além de que se cravou
Em meu peito enorme faca de inox em brasa
Ou lâmina afiada de gelo.

Sem título 1

Nenhum rosto
Me captura
Nenhum sorriso
Me ilumina.
A malícia por trás
da maquiagem
banal
é serpente disfarçada
de pomba branca
e eu sinto falta
da fraternidade
de que tomei conhecimento
quando a vida me apresentou
teus olhos.
Minhas fantasias
Mundanas
Se tornaram estúpidas
Hipóteses sem cabimento.
Não há mais significado
Na liberdade
De ir sozinho a bares.
Tudo tudo é
um absurdo irreal
perdendo o sentido
Despencando em silêncio
No abismo da tua ausência.

Sem título 2

Tomarei coragem
E revisitarei cada bar
E pizzaria
Todos os hotéis
E pousadas.
Escolherei a mesma
Poltrona do cinema
A mesma mesa da cafeteria.
Passarei de volta
Os quilômetros de rodovias
a trilha do cerrado
que levava à cachoeira preferida.
Subirei novamente
As ladeiras de Ouro Preto
Atravessarei Pirenópolis
Da Matriz ao Rosário
pelo mesmo lado da calçada.
Suportarei
A dor dessas visitas
Como quem enfrenta
borrasca sem roupa
longe de abrigo,
correndo amorosamente
o dedo
pelo mapa das cidades
em que fui feliz contigo.
Quem sabe
minha saudade plasme
Na realidade do presente
Teu rosto
Que me olha sorrindo
Desse passado tão vivo.

Carta de Bukowski

Não demora muito
E você encontrará
Um cara bem estabelecido
O tipo de sucesso na vida
Um coroa
De barba cabelos grisalhos
(Que sempre te chamou atenção)
Com uma gorda aposentadoria
De funcionário público
Ações em alta
E lojas alugadas
Que deixem ainda
Mais robusta a renda.
Com quem você
Não precisará dividir
A conta da pizzaria
A diária do hotel.
Um coroa boa pinta
Que possa ir à Bahia
Roma Montevidéu
No dia seguinte,
Se assim você cismar.
Ele terá também um belo sedã
De luxo japonês ou coreano
em que você se sentirá
numa sala de visita.

Um sujeito com
Netos crescidos
Que não deem trabalho aos avós
e, claro,
que muito menos precise
pegar e levar filhos
para cima e para baixo.
Mas principalmente
Para ele estará tudo
Absolutamente tudo
Invariavelmente
Sempre bem.
Ele jamais reclamará
De mau atendimento nas lojas
De pagar quinze pratas
Em dois dedos de expresso
Na cafeteria descolada.
Não perderá a paciência no trânsito
Nem xingará
Quem não der seta para virar.
Sorrirá o tempo todo
Sem um segundo sequer
De humores ácidos
Em dias de limão azedo
Porque entrou
no cheque especial
(ele não imagina
O que é entrar no cheque especial).
Não saberá dizer
O que pensa da fome na África
E por isso não se indignará.
Tolerará o capitalismo
(fazer o quê)
E achará fofa
A esquerdinha gourmet
Com suas feiras orgânicas
E suas cervejas com gosto
De pitanga e toques de laranja.
Você encontrará um dia
Um sujeito desse jeito
Que só traga pra casa
Pra mesa pra cama
o lado bom da vida a dois.
E nesse dia
Todos os poemas
Que escrevi pra você
Lhe Parecerão piadas imbecis.

Dissolução em juízo

A advogada disse
que nosso caso é simples:
não tivemos filhos
não há partilha de bens materiais.
Entre nós,
a dividir,
apenas esse passado
fotografado com poemas,
mesas fartas de domingo
com vinho, Milton e Clube da Esquina,
curvas de serra
enroscando montanhas
e esse presente de mágoas
cancelando o futuro.
Mas disso tudo,
mesmo que
entendesse,
a advogada
não poderia tratar.

9 comentários em “Poemas de separação, divórcio & afins”

  1. É saber ler, entender e mergulhar na alma dos Humanos. Que bom que existam humanos, que amam, sentem saudades e alguém que nos represente de forma lirica.
    Grande André

  2. Luiz Eduardo de Carvalho

    Plena identificação! Belos poemas, meio doídos para mais uma solitária noite de domingo!

  3. Rosana Xavier

    Sem título 1 resume tudo aquilo que torna bem difícil um novo amor. Sem título 2 tudo aquilo que eu, particularmente, tento evitar. Carta de Bukowisk é tudo aquilo em que buscamos a justificativa para o que “não deu certo” ou “onde erramos”. É, André. Vc sabe muito do que é “Ser” humano.

  4. Ádlei Carvalho

    Rapaz, sou cada vez mais fã. Poemas lindíssimos. Parabéns!

  5. Que perfeito, André! Fica a sensação de que você lê a nossa alma!

  6. Maria Cida Neri

    Poemas que inundam a gente com a beleza e trespassam com a dor dos desfazimentos.

  7. Cláudia Guerreiro

    Mais uma vez: impossível ler e não se enxergar (ou encontrar?).

  8. Sidneia Simões

    Poemas que atravessam a gente! Fortes e sensíveis; intensos; cheios de vida.

  9. Pqp, André! São lindos os poemas, mas confesso que me bateu uma tristeza dolorida, aquela dorzinha de saudade, magoada, enjoada… putz.

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