Resenha: Mário Baggio escreve sobre As Filhas Moravam com Ele

Além de denso e profundo, André Giusti é um escritor que escreve com ternura.

Isso é o que primeiro salta aos olhos no contato com sua prosa.

A compaixão que ele sente pelos personagens que cria sai das páginas dos 20 contos desta coletânea e gruda no coração e na mente do leitor.

Nas histórias são narrados fragmentos da vida comezinha que, sob a pena de Giusti, ganham uma luminosidade fora do comum. Transformam-se em acontecimentos extraordinários, como uma visita a uma adega do bairro para comprar uma garrafa de vinho, que se converte numa raivosa luta de classes. Ou como a conquista do tetracampeonato na Copa do Mundo de 1994, que reaviva um casamento à beira do rompimento. Ou ainda como o número de telefone fixo da casa da família, que, ao ser desligado por obsolescência, reacende velhas e dolorosas memórias.

Mas não há só ternura nas histórias de “As filhas moravam com ele”: há poesia também. O lirismo das narrativas chega a doer, tão verdadeiro é, tão espontâneo é, tão sincero é. Esta coletânea vem se juntar a “A maturidade angustiada” e a “Voando pela noite”, exemplos anteriores da prosa de Giusti que tive o prazer de ler, comprovando que escrever uma boa história com o coração é o caminho certeiro para chegar à mente do leitor — e ali ficar.”

Esse foi o texto que escrevi há algum tempo sobre “As filhas moravam com ele”, quando o livro ainda era um arquivo em Word. Agora, terminada a leitura da bela edição em papel da Caos & Letras, minha impressão não só permaneceu como se renovou. É um grande livro de contos, seja pela qualidade das histórias, seja pela humanidade com que são contadas.

No conto que dá título ao volume, lê-se: “São suas filhas, moram com ele, e ele, quando chega em casa, não encontra solidão. A chuva chega com força e o cheiro da terra molhada invade a sala. O vento forte sacode a copa da mangueira. É uma fúria aparente, pois na verdade apenas confirma que ele é feliz e que aquela é uma casa simples e em paz.” Um parágrafo aparentemente banal, comezinho, mas que alcança grandiosidade quando o leitor chega ao surpreendente desfecho.

“A felicidade dolorida do perfume de loção (ou Maria Paula não saberá)” é outro exemplo da poderosa escrita de Giusti: um perfume, que uma menina de 2 anos não esquecerá jamais, esconde um segredo brutal. Um conto curto, direto, que dialoga sem rodeios com a sensibilidade do leitor.

André Giusti, além do lirismo de sua prosa, também faz uso da ironia e do humor, como se lê em “12 de março de 2022” (um encontro de amigos de longa data) e em “Noite de premiação” (aqui, a necessidade de manter as aparências e a civilidade dá um gosto amargo à ironia tão bem descrita pelo autor).

“Esplanada dos ministérios”, “Silvério”, “A moça do jaleco branco”, “Mariana em trinta metros”, “O maestro e o matador” são outros contos que merecem menção e exibem a habilidade de André Giusti de colocar holofotes sobre o banal, transformando-o em produto para reflexão.

Nesse sentido, elejo “Bairro Anatole” como o grande destaque dessa coletânea. Uma construtora vai iniciar uma demolição e uma coisa assim nunca acontece impunemente (o que vai ser derrubado sempre tem significado para alguém). Lê-se: “Há muito não tenho mais o que perder neste mundo. A taberna é parte do meu amor por Helena, o sentimento mais bonito e puro que cultivei. O lugar assim, abandonado, uma parte em destroço, é como o que restou de minha vida. Se querem destruí-lo de vez, eu vou junto. Eu e minha história, que é um paralelo dessas ruínas.”

Costumo mencionar Caio Fernando Abreu e Eric Nepomuceno como autores que me falam diretamente ao coração. Incluo agora André Giusti na lista.

As Filhas Moravam com Ele” é uma coletânea de contos recomendadíssima.

Mário Baggio

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