Toca Raul.

Mal entrou no carro, pediu ao pai que pusesse Raul Seixas. No caso dela, pedir para tocar Raul era pedir para ouvir uma música em particular, Rockixe. Desde bem pequena gostava não só da música, mas da letra que falava de sapato, boné, dormir mais cedo. Mexia com seu imaginário aquele doido maravilhoso que cantava alto falando de coisas engraçadas, tão familiares a seu simplório e delicado mundo. Então, sempre que pedia Raul Seixas, estava era pedindo a música do boné, do sapato.

Dessa vez o pai argumentou. Filha, o Raul Seixas tem tanta coisa boa, vamos escutar outras músicas, vamos?

E sem esperar resposta, como no geral fazerm os adultos quando interrogam as crianças sobre o que na verdade eles já decidiram fazer, localizou no mp3 uma coletânea. Essa era boa maneira de dar à filha uma visão geral da obra do artista.

Ela ouvia calada, atenta. Mal começaram as primeiras frases da terceira música, a menina perguntou de pronto.

Pai, o que é Sociedade Alternativa?

Ele, pegando um retorno e desviando de um caminhão que estava à frente, embatucou. Como explicar a uma criança o que quiseram dizer os gênios?

Bem, filha…e ficou nisso alguns minutos. Passavam calçadas, sinais, faixas de pedestres e a resposta não lhe vinha. Do lado de fora, a cidade aflita ficava mais nervosa com a demora dele em responder. E aí, não vai dizer nada? E o trânsito se fez mais neurótico para também cobrá-lo explicação à garotinha. Ela, mais serena que ele e o caos urbano, insistiu. Hein, pai? O que é Sociedade Alternativa?

Aproveitou um sinal fechado. Filha, Sociedade Alternativa foi um lugar que o Raul Seixas imaginou, criou na cabeça dele onde as pessoas poderiam fazer o que quiser, sem obedecerem a ninguém. Entendeu?

Olhou pelo retrovisor e deu com aqueles olhos azuis de boneca fixando algum ponto além parabrisa, mas que na verdade não viam o que enxergavam. Deveriam estar acompanhando a pequena mente na escalada da interminável montanha da curiosidade. Mais alguns anos, e o pai diria também que Raul Seixas cantava coisas que incomodavam uns homens de farda que mandavam no Brasil e que não gostavam que as pessoas reclamassem deles. Mas tudo a seu tempo. Por hora, explicara o que era possível, tomara que ela tenha ficado satisfeita, pensou engatando a primeira e soltando a embreagem.

Só que o problema permanecia para aquela vivacidade encarnada, vestida pro colégio, que não se contentava com apenas uma estocada.

Quer dizer então que na Sociedade Alternativa a gente não precisa comer quiabo e nem parar de correr pelo apartamento?

Pego no contra-pé, não reagiu, sequer esboçou um não é bem assim, o que seria coerente com seu papel de pai. Desarmado pela astúcia dos verdes anos, restou-lhe tão somente gaguejar um patético é filha, é isso mesmo.

Então eu vou morar na Sociedade Alternativa! E ela resolveu sem consulta paterna. E riu seu costumeiro riso de “clareia-o-dia”.

Esse Raul Seixas é mesmo perigoso, ele apenas pensou, porque  não havia como dizer mais nada.

4 comentários em “Toca Raul.”

  1. Maria Villela

    Ótima, André! Essa menina merece um livro inteiro só com suas tiradas, no melhor estilo “Criança diz cada uma”. 🙂
    Bom descanso.

  2. Denise Giusti

    Muito bom! Fofa demais! Essa aí vai longe, curiosa e inteligente! Uma coleânea de crônicas falando das crianças, seria maravilhosa! Muitas gargalhadas, para sair da rotina do dia …

  3. Em uma discussão inútil com o amigo Natanael: ” O trem da música do Raul é o trem dos minérios de Minas Gerais. Levando montanhas e horizontes. Montanhas que nunca subirei para, enfim enxergar o mar no horizonte.” Natanael sempre além do Raul.

  4. hehehe, fala pra menina que na sociedade alternativa tudo é permitido, menos fazer coisas que incomodem os outros. ou seja, ela pode parar de comer quiabo, mas tb não poderá correr no apartamento.

    []s

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