Brasil acima de hinos e bandeira

Minha infância foi nos anos 70. Médici e Geisel, cada um em uma metade da década; Figueiredo no finzinho.

Hino Nacional toda 6ª feira no pátio da escola.

E mais o da Bandeira, Independência, Exército e Marinha (Aeronáutica deve ter hino, é claro, mas eu não lembro de ter cantado uma vírgula sequer).

Como todo garoto feliz, eu profanava as letras. “Japonês faz quatro filhos e Chinês faz mais de mil” pro Hino da Independência e “Seu Valdemar em noite de lua, abriu a porta e foi cagar na rua” pro Hino da Marinha eram os hits da nossa doce molecagem de 8, 9 anos.

Cantar esses hinos, em frente ao hasteado pavilhão verde e amarelo, não me tornou patriota.

Também, pelo mesmo motivo, não tenho horrores ou traumas a essas cantorias.

Portal Educação Sumaré
Portal Educação Sumaré

A bem da verdade, não sou patriota.

Gosto do Brasil sem excessos e ufanismos e olho para esse país como quem olha para um cara de meia idade que se recusa a crescer, um sujeito que deixa de pagar a escola dos filhos para bancar dezenas de prestações de carro importado.

Há símbolos nacionais que agregam muito mais sentimento pátrio do que hino, bandeira.

Nossa língua é mais do que sonora: chega a ser poética. Em que país mais se pode falar saudade?

Nosso folclore e nossa cultura (aquela verdadeiramente popular) tem uma diversidade que chega a ser incompreensível para outros povos. Como podemos reunir tanta coisa diferente em um só país? Devem se perguntar por aí.

Pra encerrar, há também, na esfera da diversidade, nossa culinária, banquete de cor, sabor, tempero, aroma e, o mais importante, saúde alimentar.

Que tal o governo do “Brasil acima de tudo” abrir a cabeça da garotada para o excesso de expressões inglesas no nosso dia-a-dia?

Mostrar que nossas crenças populares pariram personagens bem mais interessantes que aquela chatice de Mickey e Pateta?

E, por fim, pegar pra valer e substituir esse tanto de sanduíche, batata frita e doce que parece até de plástico por arroz, feijão e carne com legumes e verduras, para não comprometer em algum momento dos próximos anos a qualidade de vida dessas gerações mais novas?

Com a palavra o ministro colombiano, que aliás nos chamou de canibais.
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Publicado no Congresso em Foco

Muito além do Jornal Nacional

Jornal do Commercio
Jornal do Commercio

Uma grande placa em material que me parece fórmica veda a entrada de uma das lojas do Boulevard Shopping, na Asa Norte, em Brasília.

Trata-se daquelas propagandas informando que em breve uma nova loja será inaugurada naquele espaço, estratégia de marketing conhecida nos shoppings.

Aponto a foto colorida do anúncio e chamo a atenção de uma de minhas filhas: há quatro crianças sorridentes no anúncio.

Nenhuma é negra.

Depositphotos
Depositphotos

À noite, nas redes sociais, um sem número de posts celebram e comemoram Maju Coutinho, a 1ª negra a apresentar o Jornal Nacional, carro chefe do jornalismo da emissora que historicamente reserva às atrizes negras o papel de cozinheiras ou domésticas.

Aos atores negros, por sua vez, cabe interpretar motoristas de madames brancas, e que sempre se engraçam para as cozinheiras e domésticas, ou seja, nada de ultrapassar limites tácitos da aceitação da sociedade.

Não consigo enxergar qualquer otimismo ou sinal de novos tempos em uma mulher negra na bancada do JN.

Isso não deveria ser motivo de fogos e não seria se as estruturas desse país promovessem realmente igualdade, algo que vai (e precisa ir) muito além de uma apresentadora negra pondo o rosto na TV.

Antes de ela aparecer na bancada do Jornal Nacional, deveria ser corriqueiro, por exemplo, os negros nos comerciais. E em maioria, inclusive.

Maju na bancada do JN é embelezar o jardim de uma casa com grave infiltração nas paredes, piso esburacado e teto com goteira para tudo quanto é lado, um embelezamento para ser visto apenas de fora, por quem passa na calçada.

Alexandre Brandão, Vicente Sá e o velho Braga

La Parola
La Parola

Uma de minhas maiores influências literárias não é nenhum escritor europeu do século 19 com nome difícil de dizer e ainda pior para escrever.

É apenas Rubem Braga, o velho Braga, observador não apenas de passarinhos, mas de tudo que é importante, belo e maravilhoso ao nosso redor e a gente não percebe.

Braga também me influenciou a ser jornalista.

Achava fantástico o que ele contava de sair da redação de madrugada, com o jornal ainda quente da rotativa debaixo do braço, trazendo uma matéria dele e, de quebra (e o mais saboroso), uma crônica.

Ou seja, foi clara a influência da crônica na minha literatura e na minha escolha para ganhar o pão e o leite das crianças.

Vicente Sá - Face Book
Vicente Sá – Face Book

Andava afastado de ler crônicas, embora as tenha escrito bastante nos últimos anos com o advento dos blogs.

Me reencontrei com essa leitura nos livros de Vicente Sá (Crônicas S/A, publicado pela Semim Edições) e Alexandre Brandão (O Bichano Experimental, que saiu pela Patuá).

Leio uma crônica de cada um pela manhã, antes de me sentar ao computador e começar a trabalhar (Algumas pessoas leem a Bíblia pela manhã; outros, autoajuda. Eu leio Vicente Sá e Alexandre Brandão)

Brandão - Foto Face Book
Brandão – Foto Face Book

Brandão explora o quotidiano interpretando-o de uma forma que transcende o fato que o levou a escrever.

Vicente Sá faz crônica como quem conversa na cadeira do barbeiro, no balcão de um pé sujo.

Nos dois, é impossível não sentir a emoção de reencontrar um pouco do velho Braga e, por conseguinte, o frescor da minha puberdade, inclusive a literária.

Boechat e a simplicidade do rádio

Reprodução youtube
Reprodução youtube

Boechat não era um homem de rádio.

Descobriu-se de rádio já burro velho.

E bem ao contrário de outras crias dos jornais impressos que povoam as rádios de notícias há mais de 20 anos e entendiam o ouvinte, Boechat sabia lidar com o microfone, chamava-o de “meu bem”, para usar uma expressão empregada a Pelé com a bola.

Trabalhei nas chamadas emissoras all News por quase 25 anos e delas me afastei em 2010.

Saí cansado de tentar explicar – principalmente aos mais novos, mas também a muito sujeito rodado – que o rádio nada mais é do que uma conversa que tem muita gente escutando.

Cansei de dizer que na vida normal ninguém fala que fulano estava “dirigindo após ter ingerido bebida alcoólica”. A gente fala que o cara bebeu e foi dirigir, que estava dirigindo bêbado.

Ninguém te conta que o vizinho “foi alvejado por disparo de arma de fogo em via pública”.

A gente fica sabendo que o vizinho tomou foi um tiro no meio da rua.

Cansei de dizer para fazerem o que Boechat fazia: falar claro, objetivo, simples.

Parecia propositalmente caricato em algumas situações, como a que em pleno século 21 forçou uma ingenuidade para dizer que achava que ainda se usava creme rinse.

Às vezes pecava pelo excesso, pela crítica pela crítica, de olho na audiência, e havia também as risadas forçadas e teatrais na conversa com José Simão.

Mas Boechat aproximava o rádio do ouvinte, no meio de tanta gente que rema no sentido contrário, gente para quem os únicos verbos da língua portuguesa parecem ser afirmar e seguir.

(Reparem que ninguém mais garante, assegura, acha; todo mundo só afirma, bem como nada nem ninguém permanece, continua. O trânsito só segue engarrafado, o paciente só segue internado. É cansativo, é desinteressante).

Boechat já faria falta se o rádio atualmente fosse uma constelação de astros e estrelas.

Na mediocridade e no marasmo, fará ainda mais.

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