O Mundo de K, do critico literário Alexandre Kovacs, é um dos blogs literários mais respeitados e consolidados da atualidade. Seu prato principal e literatura contemporânea. A seguir, uma resenha que me deixou pra lá de feliz sobre meu livro mais recente, As Filhas Moravam com Ele
O mais recente lançamento de André Giusti é uma coletânea de contos abordando diferentes aspectos das relações humanas em uma sociedade que prioriza a busca de poder aquisitivo em nome de um padrão de consumo que normalmente tende a ser confundido com felicidade. Este aspecto fica claro logo no conto de abertura do livro, “Piano, roseira, passarinhos e mangueira”, no qual o protagonista tenta convencer a filha caçula a escolher uma profissão não apenas pelo retorno financeiro imediato e, ao mesmo tempo, questiona o comportamento desagradável dos vizinhos frustrados: “Ele acha, e sempre achou e cada dia acha mais, que a vizinhança naquele prédio é cheia de pobre que só tem dinheiro e que essa frase, sucesso de rede social, desenha bem toda aquela gente.”
O autor provavelmente reflete a experiência como jornalista no seu trabalho de escritor, criando textos que podem culminar em inusitadas situações de violência, como em “Adega do bairro”, mas também resultam, em alguns casos, nas mais comoventes lições de amor, amizade e esperança, normalmente quando escreve inspirado por uma partida de futebol, algo pouco usual na nossa literatura e, ainda mais raro quando se combina na mesma narrativa uma história de amor e futebol, ideia que André Giusti desenvolve muito bem em “Domingo, 17 de Julho de 1994 (1)”, um dos dois contos no livro com o título homônimo, a data da final da copa do mundo de 1994, quando o Brasil se sagrou tetracampeão contra a Itália, depois de um longo período sem títulos.
“Débora e eu começamos a namorar na copa de 82, quando ela parou atrás de mim e disse qualquer coisa sobre o nariz do Zico que eu pintava no asfalto da nossa rua. Não nos desgrudamos mais pelo resto da copa, enfeitiçados feito um meio-campo com Cerezo, Falcão, Zico e Sócrates. Depois da tragédia contra a Itália, ela me abraçou e disse ‘quero ficar com você pra sempre’. ‘Pelo resto das copas?’, eu perguntei feliz. ‘Por todas que eu viver’, ela assentiu. Se para outros casais as lembranças dos primeiros tempos de namoro eram músicas ou filmes, para nós era um passe do Zico, uma bomba do Éder. ‘Lembra que você me girou pela sala lá de casa nesse gol do Júnior contra a Argentina?’, e ela sempre tocava no assunto quando reprisavam o lance na TV. […] Essas lembranças misturavam-se às imagens da TV a que eu assistia sem expectativa ou nervosismo. Flashes chegavam do estádio cheio e das praças que reuniam multidões no país inteiro, e eu tentando entender os motivos de meu casamento estar acabando. Cansava de procurar razões e terminava pensando na decadência dos esquemas táticos. Não conseguia aceitar que para ela o amor foi acabando ao longo dos anos, como acabaram os pontas autênticos.” (pp. 39-40) – Trecho do conto “Domingo, 17 de Julho de 1994 (1)”
A desigualdade social é apresentada de forma brutal em “Uma história de Brasília”, tragédia anunciada desde que Venâncio, um trabalhador rural, é conquistado pelo “olhar de abismos” da sensual Paula, um sonho impossível. Já em “Outra história de Brasília”, uma abordagem diferente para um problema semelhante, Joanir é um faxineiro humilhado na “mais alta instância da justiça no país” pelo desembargador: “O senhor trate de terminar essa limpeza antes das oito e meia, que não quero mais chegar aqui e ter que desviar do senhor e de seus baldes e panos imundos.” Em “Ana Célia”, a fome pode estar ao seu lado no balcão de um bar quando a mãe explica para a filha: “É a coxinha ou o ônibus”. Situações de injustiça social que você já deve ter presenciado.
“O erro de Venâncio foi não ter notado que ser fisgado por aquele olhar de abismos seria toda sua perdição. Pois era isso o olhar de Paula: um precipício muito alto, daqueles em que lá de cima não se ouve o impacto do corpo que nele se lança ao encontrar o solo ou a água. Não passava disso o olhar de Paula (como se não fosse pouco): um despenhadeiro onde eram lançados os homens que com ela se aventuravam, uma queda sem escapatória rumo ao desespero e à loucura. Venâncio deveria ter percebido que aquele olhar, àquela hora do dia, na estrada que corta o nada do cerrado e a imensidão da Chapada, só poderia ser provocação do tinhoso. E se percebesse, homem temente que era, teria desviado os olhos para o chão, como fazem de costume, e sempre deveriam fazer, as gentes do interior como ele. Mas pelo encanto que nele despertava, Venâncio encarava esse povo de Brasília como se não fosse de carne e osso, e outro deus, maior e mais poderoso que o das suas preces, os houvesse colocado na Terra. Por isso foi sendo arrastado, engolido pelos olhos castanhos da perdição (a maldição tem olhos castanhos, até hoje falam por lá, virou quase lenda no povoado), feito um incauto que vai caindo numa vigarice, um gordo e manso boi estrangulado pela sucuri.” (p. 44) – Trecho do conto “Uma história de Brasília”
O cancelamento de uma linha telefônica fixa após meio século de “serviços prestados” à família é o tema de “2268-1307”, uma comparação com o lento desgaste de nossa própria vida: “Igual a uma linha de telefone fixo que, com a modernidade, foi a cada dia e ano sendo menos usada. Foi-se aos poucos, cancelada aos poucos, sem que percebêssemos. Até ir definitivamente.” O futebol volta a protagonizar um conto em “O maestro e o matador”, fazendo do esporte um improvável exercício de inclusão. Já o conto que encerra e empresta o título ao livro, “As filhas moravam com ele”, é uma verdadeira preciosidade que vai emocionar o leitor sem precisar de clichês e prefiro não adiantar a surpresa. Um livro muito recomendado de um autor que vale a pena conhecer.
“A maestria do Doutor Otto só não causa mais surpresa do que a letalidade de Tomirez como atacante. Na verdade, a perícia dos passes de um descortina a mortalidade dos chutes do outro. Jamais se vira Tomirez jogar daquele jeito, e naquele domingo, fica claro que ninguém jamais entendeu como joga Tomirez, ninguém jamais enxergou o demônio que é Tomirez dentro da área. Doutor Otto, que nunca o olha nos corredores da empresa, agora é capaz de descobri-lo entre volantes, zagueiros e laterais. Estica a redonda pelo alto ou queimando a grama/terra e, implacável, impiedoso, Tomirez não desperdiça uma, não perdoa o goleiro adversário. O maestro consagra o matador que o consagra em retribuição. O time dos dois não perde, não sai do campinho, nunca é ele que abre a vaga para o time que espera do lado de fora. Torna-se, então, o time a ser batido, está em jogo mais do que uma bola. Está em jogo a honra dos peladeiros das duas outras equipes formadas, e elas decidem se unir na última partida, quando o sol de quase meio-dia parte para minar o restante das forças de todos.” (pp. 101-2) – Trecho do conto “O maestro e o matador”
Literatura brasileira contemporânea
Sobre o autor: André Giusti nasceu na cidade do Rio de Janeiro e mora em Brasília desde o final dos anos 90. Tem dez livros publicados entre contos, crônicas e poemas. Foi indicado ao Prêmio Jabuti com o livro “Voando pela noite, até de manhã” (1997). Outras obras de destaque do autor são “A Liberdade é Amarela e Conversível” (7Letras, 2021, 2ª edição); “A Solidão do Livro Emprestado” (7Letras, 2003 e Penalux, 2018, 2º edição) e “A Maturidade Angustiada” (Penalux, 2017), todos de contos. Também se destacam os volumes de poesia “Os Filmes em que Morremos de Amor” (Patuá, 2016) e “De Tanto Bater com o Osso, a Dor Vira Anestesia” (Penalux, 2021). É jornalista com 36 anos de experiência. Já foi repórter, apresentador e chefe de redação no Sistema Globo de Rádio e no Grupo Bandeirantes de Comunicação.