Encantamento Luiz Eduardo de Carvalho* fala sobre meu primeiro romance
Ler, selecionar, editar e recomendar um livro aos leitores, com o perdão da apropriação, só vale a pena se houver encanto! E foi o que se deu diante da facilidade para contar uma história verificada neste primeiro romance de André Giusti, autor tarimbado que já publicou dez títulos de poesia, crônicas e contos, o primeiro deles finalista do Prêmio Jabuti em 1997. Agora, em Só vale a pena se houver encanto, ratifica-se a fama de bom prosador que o precede.
Na vanguarda dos relatos auto ficcionais que despontam como tendência na literatura contemporânea, André Giusti vale-se de sua extensa experiência como diretor de redação, âncora e repórter em grandes empresas de radiodifusão, para criar o personagem Alessandro Romani, um jornalista e escritor que, dos trinta e cinco anos de idade em diante, atravessa um momento em que a vida opõe-lhe algumas primeiras contrariedades que, em sua própria concepção, configuram-se um conjunto de indicadores de um rito de passagem dos derradeiros adeuses da juventude à concretização dos acenos da maturidade. Sem embarcar em digressões existencialistas acerca das transformações experimentadas, nem buscar apoios nos jargões esclarecedores da crise da meia-idade, o autor deixa que os fatos percebidos pelo protagonista, que os narra em primeira pessoa, falem da circunstância por si sós, tão somente acompanhados de pertinentes e reativas reflexões que dão conta da expressão do campo emocional do personagem central.
Com o decorrer dos acontecimentos, decerto se avolumará a empatia do leitor conforme são expostos os percalços vividos por Alessandro, relacionados a temas de grande identificação: as dificuldades de recolocação no mercado de trabalho quando a experiente maturidade substitui o viço da juventude, a resistências às mudanças, o crescimento da família e das decorrentes obrigações financeiras, a intromissão de parentes na gestão familiar, o desgaste do casamento, o adiamento de projetos que já deveriam estar em curso, a submissão das convicções ao pragmatismo das contas a pagar, a oscilação entre soluções que reduzem a realização e as realizações que reduzem as soluções, o sonho com a estabilidade, desvios de rotas, divisões internas, o abalo da autoconfiança, a constante reconstrução dos parâmetros de normalidade que a vida não consegue fixar. Em determinada passagem desta sua incursão autoficcional, André delata: “minha arma para isso era minha literatura confessional, abarrotada de conflitos pessoais”… Espelhos nos quais todos nos enxergamos em algum, ou em vários momentos da vida.
O drama cotidiano, assim, serve de cenário à trama que se segue e logo transcende as preocupações autorreferenciadas do protagonista para imergir na narrativa dos acontecimentos políticos que, objetos de sua cobertura jornalística cotidiana, passam a deflagrar um muito bem arquitetado painel das sempre supostas relações e das relativas contingências factuais que habitam os bastidores do poder, seja o público ou o privado. Tudo com requintes de verossimilhança calcada em ecos de realidade histórica e em arguta observação dos comportamentos das instituições privadas. Dessas profundezas, emergem reflexos de tais acontecimentos a condicionarem a manipulação de marionetes a serviço de empresas jornalísticas visceralmente envolvidas com o conjunto dos interesses em disputa no palco das cenas tão roteirizadas da política, sob pena de verem-se cortados os cordões do sustento se negada a adesão aos pactos que perpetuam os conluios.
O título, Só vale a pena se houver encanto, antecipa a intenção de André Giusti, plenamente traduzida em êxito, de desmascarar a hipocrisia, delatar conspirações, apontar a triste e, por vezes, desfigurada realidade que transita pelas mazelas da humanidade, porém sem abrir mão do lirismo que, encantado, vê possibilidades de superação, ainda mais se embasadas em preceitos como a coerência defendida a qualquer custo e elevada à condição da maior realização que se possa alcançar, mesmo que, por ela, abra-se mão de muitas outras conquistas! A opção do essencial em detrimento do supérfluo: perder a ternura, jamais! E não que tal busca faça de Alessandro Romani um baluarte da coerência, pois buscá-la não implica em alcançá-la com plenitude; assim, não raro, atuando no campo oposto do defendido em sua prédica, humaniza-se, ainda mais ao passo que fragiliza suas crenças quando traduzidas em ações desproporcionais.
Os subtítulos das duas partes em que a obra divide-se, feitos das datas que abrangem o período narrado, reforçam o caráter de uma espécie de diário em que o protagonista registra as ocorrências mais importantes do suceder de seus dias em constante ebulição, em inestancável transformação, o que o arremessa do centro dos acontecimentos às emoções por eles suscitadas e, delas, de volta para a marcha inestancável dos fatos de sua própria existência mergulhada em incessantes mudanças.
O personagem central, a exemplo de grande parte dos coadjuvantes, desfila sua complexa extensão com passos curtos de simples constatações: a personalidade bem definida revela-se no trajeto e, dela, decorrem seus atos e seus juízos a respeito de si mesmo. Repartido entre os principais binômios da modernidade, alterna os opostos com a singela sinceridade dos contemporâneos quando, por exemplo, vai em busca da espiritualidade em templos de medição, enquanto se confessa materialista extremo em passagens como “como a minha falta de grana, meu carro usado e meu apartamento pequeno são para mim: uma escada para o fundo do fosso da baixa autoestima.” E assim, par e passo com as sínteses que encontra na vivência dessas dicotomias, trilha seu longo e tortuoso caminho de autoconhecimento que finda reconhecido como o trajeto de todos os humanos.
No decorrer do livro, nos momentos de tensão, em que as emoções derivadas da reatividade frente aos acontecimentos sobrepujam os próprios fatos, aproximam-se as vozes do personagem narrador e do personagem protagonista, por meio de uma equalizada contaminação de coloquialismo que, por pouco, não as funde num quase discurso indireto livre. Em outros momentos, nos quais prevalece a relevância dos fatos, e não a de seus efeitos incidentes sobre os ânimos do protagonista, as duas vozes do mesmo Alessandro – a que narra e a que testemunha os próprios pensamentos e desejos – distanciam-se e voltam a soar em timbres diferentes. Modulação que, operada no nível da linguagem, é muito difícil de fazer, artifício de autores que dominam os diversos usos da palavra, principalmente para contar uma história com as sutilezas que conduzem o leitor, mesmo o mais experiente, a conclusões que não percebe de onde vêm, pois não se originam no discurso ou no enredo, mas na forma como são empregadas as palavras. Na boa literatura, é assim que se faz: a linguagem cria a história!
Emerge dessa densa voz repartida entre narrador e protagonista, um personagem que, em sua simplicidade, revela-se complexo ao passo que desfila seus contornos psicológicos sem a prédica de digressões, mas pelo comportamento cotidiano que revela seu perfil. Postulante a neuroses, despontam algumas obsessões com quesitos aparentemente fúteis, como marcas e procedências de vinhos e carros; com uns de senso estético, como o repertório cinematográfico e musical – que, aliás, propõem uma trilha sonora repleta de citações para o enredo –; com alguns existenciais, como idade e virilidade e com outros ligados ao caráter, como coerência e integridade profissional, que flagram um homem de meia idade em crescente crise que abarca e afeta todos os setores de sua vida em transformação: o conjugal e o familiar, o vocacional e o profissional, o econômico e o social… O fato de Alessandro frequentar um divã de terapia, torna-se um potente elemento narrativo de reflexão objetiva, sem desvios em questionamentos verborrágicos.
Alguns críticos, com preconceito às avessas, poderiam acusar o romance de ser mais um relato confessional de um homem branco, cis, hetero, classe média, com nível superior completo e repleto de crises pequeno-burguesas – esqueci algo? –, o que, nos últimos tempos, tem causado, mesmo aos membros mais aderentes à causa da defesa da diversidade, um divergente e desencontrado desconforto por serem o que são e por realizarem reflexões acerca da realidade que disso deriva. Por outro lado, se falam de outras condições, incidem-lhes acusações de estarem apropriando-se do lugar de fala alheio. Um impasse que André Giusti transcende sem escusas, por meio de uma narrativa vigorosa, repleta de questionamentos sociais, políticos, econômicos e psicológicos de alguém que valoriza a própria identidade como veículo suficiente para uma boa história autoficcional que, em determinada passagem, aponta até mesmo esse fato citado: “a tua literatura não é engajada em causas identitárias, não fala dos negros, dos gays, das mulheres, dos índios, da galera da periferia, do sertanejo nordestino”, afirma um coadjuvante acerca dos livros do protagonista, como uma intencional referência ao próprio livro em que se insere tal fala.
Por essas e outras, aproprio-me do título desta obra mais uma vez, com o fito de asseverar que sua leitura vale a pena, pois dela emana o encanto traduzido pela “dor e delícia de ser quem se é”, e de, em mais palavras emprestada do próprio livro, ser um personagem que “precisa ser apaixonado. Em casa, no trabalho, na cama, nos livros, na mesa. Se não estiver, leva a vida por levar, sem tesão, e morre um pouco a cada dia sem admitir que está morrendo!” Fica o convite para a leitura de Só vale a pena se houver encanto, este relato vivo, vivíssimo, em pleno curso do descobrimento do valor que evoca justamente a soberania da vida em plenitude, da paixão em primazia e do encanto em decorrência!
*Editor e escritor. Autor de Mãos de Deus, biografia autorizada do Padre Júlio Lancelloti