O pesar de dar razão a Romeu Zema (mesmo que uma única vez)

Romeu Zema é um dos atuais destaques na representação da elite cancerígena que suga o sangue do país há mais de meio milênio.

Se por acaso em algum momento for eleito Presidente da República, será um retrocesso semelhante ao que vimos entre 2016 e 22.

Semanas atrás, o governador de Minas disse que “homem branco, heterossexual e bem-sucedido, no Brasil, é rotulado de carrasco”.

Desconto o exagero da última palavra, mas admito (com grande pesar) que Zema, neste único e absoluto caso, não está muito longe da verdade.

Não sei se sou bem sucedido, ao menos de acordo com o que isso significa para o senso comum (incluindo aí o próprio Zema), mas sou branco e heterossexual.

Nos últimos anos, em algumas ocasiões, eu receio que tenha sido olhado de lado e com preconceito por causa disso.

Cito apenas um caso.

Há uma livraria aqui na Asa Norte, em Brasília, bastante badalada e que promove a literatura feita pelos representantes das lutas identitárias.

Perfeito, mais do que justo e necessário.

Nas duas vezes em que entrei nessa livraria como consumidor, uma delas com minhas filhas que parecem suecas, as duas atendentes fizeram cara de quem não fazia questão que, principalmente eu, estivéssemos ali.

Só faltaram pedir “Por favor, vá embora. Não precisa comprar nada”.

Entrei lá uma terceira vez, como autor.

Eu procurava um espaço para lançar As Filhas Moravam com Ele, meu livro mais recente.

Fizeram a mesma cara de quem não fazia questão de mim, menos ainda do meu livro.

Secamente, pediram que eu mandasse um e-mail tratando do assunto.

Mandei e-mail e mensagem pelo Instagram (neste, a mensagem foi marcada como vista). Nunca recebi uma resposta sequer.

Sou um autor cujo trabalho tem uma pegada social intensa (e não sou eu quem digo; são os leitores).

Como escritor e cidadão, sempre me posicionei contra o racismo (odioso), a homofobia (cruel) e a violência contra a mulher (tirânica).

Acho que nunca se deram ao trabalho de conhecer essa minha pegada, mesmo que eu não esteja em nenhum dos supracitados lugares de fala.

Penso (ou tenho a quase certeza) de que me resumiram pela minha pele branca azeda, pelos meus olhos claros.

Acho que serviu de lição para mim mesmo, que nos últimos anos vinha desenvolvendo preconceito contra homens brancos, de classe média e, especialmente, meia idade (o que sou); mais ainda se tivessem a bordo de um jipão, uma SUV ou uma caminhonete monstruosa (o que não tenho e não gosto).

É certo que, pelo o que temos visto na prática, essas características são a face quotidiana mais comum do machismo, do racismo e da homofobia.

Mas também pode haver, nesse miolo, uns sujeitos que pensem e ajam como eu.

Na dúvida, vamos deixar que eles primeiro abram a boca para falar.

7 comentários em “O pesar de dar razão a Romeu Zema (mesmo que uma única vez)”

  1. Luiza Xavier

    Como sempre, seu agudo senso de observação nos leva a refletir.

    Lendo seu texto me lembrei de um episódio que não aconteceu no ambiente cultural nem intelectual. Foi no meio da rua mesmo, e talvez isso tenha me causado mais tristeza, a ponto de não ter esquecido.

    Há cerca de 20 anos, empurrava um carrinho de bebê onde estava meu filho de três anos. Bairro do Flamengo, Zona Sul do Rio. Parei na calçada aguardando o sinal abrir para atravessar a rua.

    Do meu lado direito, uma mulher negra, magra, com um bebê no colo que deveria ter a mesma idade do meu. Ao lado dela uma menina também magrinha, de uns sete ou oito anos. A mulher começou a dar tapas na cabeça da garota. Argumentava que a criança estaria tentando atravessar antes da hora. As pessoas em volta se entreolhavam, murmuravam, mas eu fui a única a falar: por favor, não faça isso, voce está machucando ela.”

    Foi o bastante para a mulher olhar pra mim com raiva, começar a gritar e desabafar com uma frase que voltou a ecoar agora aqui. “Pra você é fácil. Branca, com bebê no carrinho, morando na Zona Sul.” Fiquei com vergonha. Atravessamos todos a rua com ela esbravejando. A situação piorou porque algumas pessoas vieram “me consolar”, com aquelas frases que começam com “essa gente…”.

    Nem lembro como cheguei em casa naquele dia. E não, não é fácil viver em um país eternamente desigual.

  2. Ricardo Almeida

    Reflexão necessária, com um tom absolutamente adequado: o tom sereno de quem percebe os equívocos e contradições, mas não se arvora juri, nem juiz, muito menos o carrasco mencionado na fala do político retrógrado. Compartilho a visão expressa no comentário da Claudia Maria Navegantes e espero com moderado otimismo a superação desse momento.

  3. Ana Maria Lopes

    Você não está só. Também já me senti mal em alguns lugares culturais , como os que vc já citou. Teve um momento em que me senti culpada por ser branca, “loura” e moradora do Plano Piloto. Inclusive, não do em locais, mas excluída de premiações literárias . Compartilho de sua indignação .

  4. Cláudia Guerreiro

    Excelente reflexão e dura percepção. Se servir de apoio, torno-me mais uma voz – dessa feita feminina – que sente este mesmo mal-estar apesar de mulher, mas branca, de meia idade, cabeleira grisalha e aspecto geral, dito por aí, como “descolado”: os olhares, as falas e os movimentos são os de que estou sobrando no “ambiente de luta” e a “cara de madame” já diz que não serve para ali estar…

    De fato, não encampo (jamais encamparei) uma fala de Zema ou qualquer outro dessa linhagem, do mesmo modo que apoio todas as lutas emancipatórias, exceto as que promovam a discriminação a qualquer preço (ou imagem ).

  5. Claudia Maria Navegantes

    Estamos vivendo a “curvatura da vara”, estamos sentindo um pouco do preconceito que por milênios os povos identitários sofreram. Não acho justo, é claro, mas entendo e tento me posicionar nessas situações. Espero que em breve possamos viver todos juntos com harmonia e respeito.

  6. Leonardo Filho

    Meu amigo, vivemos tempos de patrulhas por todos os lados. EU gosto de falar que estamos presenciando uma espécie de neo-zdanovismo cultural fruto da exacerbação do identitatismo em todas as instâncias da cultura. Fazer literatura sendo homem, branco, cis, hetero é ser condenado ao ostracismo. Prêmios literários, espaço na mídia, visibilidade na academia, cada vez mais é diretamente proporcional à cor da pele, à opção sexual, ao gênero, enfim, se você não é preto, gay, mulher, índio, et de varginha, prepare-se para ser uma coisa menor na escala Richter da cultura. Uma praga isso. Como se, para valorizar as excelentes escritoras pretas, gays, fosse necessário amassar o excelente escritor branco. Vivemos tempos esquisitíssimos. Eu continuo fã de Clarice e de Graciliano, de Caio Fernando Abreu e Cecília Meirelles, de Andre Giusti e Cinthia Kriemler… basta de segregação estúpida.

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