Série Calendário – Poemas de janeiro a dezembro

Janeiro

O ar parado
Da tarde
É uma estática
E morna
Gelatina invisível
A grudar as roupas
No corpo.
Respirar pesa
Feito as pálpebras
Depois do almoço.
Por trás delas,
Quando cerradas,
Venta na praia
Despencam cachoeiras
Faz sombra de nuvem
Na montanha.
Até a noite,
a tempestade trará
alívio e tragédia.

Fevereiro

A morena dez anos mais velha
De biquini vermelho e lantejoulas
Interferiu
No eixo dos planetas
Quando puseram alto
o samba da Mangueira
ao pôr do sol
Na beira da praia
Em Saquarema
(Teu queixo foi ao chão,
mas teus pentelhos
mal haviam nascido).

Houve Aquele porre
De Velho Barreiro
Vestido de mulher
No bloco das piranhas
de Rio das Ostras
na terça-feira
em 1987.
Se Lembra?
Ora! Não diga
Que não.

E ainda aquela paixão
Do baile de domingo
Que sequer sobreviveu
à punição das cinzas.

O tempo passou rápido
Feito escola na avenida
E hoje você
Não tá nem aí pra carnaval,
Menos ainda para o que
Padres e pastores dizem
Sobre a quaresma.
O que te move
É chegar logo
O feriado santo
De martírio do salvador
E fugir prum mato perdido
Esfriar a cabeça
Esquecer do mundo.

Fevereiro
é o mês da sobrevivência
das memórias mais antigas
e do cansaço de se ter
que chegar até dezembro.

Março

Por mais
Que desiludidos
E decepcionados
Estejamos,
Essa teimosia inata
Insiste na esperança,
Corre a nossa volta
feito eletricidade
De festa começando.

Abril

Fecha os olhos
Para que as pálpebras guardem
Como em gavetas
O céu demais dessa manhã em paz
De feriado santo.
Escuta esse avião
passando longe,
Ao largo da cidade
Que dorme até mais tarde.
Imagina que é você
Mas sem o motor:
Valente planador
Desafiando o cume da montanha
E o abraço definitivo do oceano.

Aproveita bem esses dias
De friagem azul-alaranjada,
Tempo de colheita dos fotógrafos.
Aproveita que você está feliz
aceitando você e o mundo,
leve, feito pelo de gato
No chão de casa.
Aproveita porque nem sempre
(Ou quase nunca)
A vida tem esse
Enquadramento exato
E essa luz perfeita de fundo.

Maio

Na foto de arquivo pessoal,
A moça sorri em P&B
Na manchete do jornal.
25 anos se tanto,
A vida toda pela frente
Como geralmente é nessa idade.
Mas ela desmarcou o casamento
e não subirá mais ao altar
“nem agora nem nunca”
jurou o noivo,
foi o que o repórter contou.
Ele pega o jornal
E o belo rosto na folha
Se esfumaça na velha
Imagem de seu passado,
A imagem mais nítida
Em sua memória,
A daquela quinta-feira
Antes do Dia das Mães,
Ele chegando da escola
Tumulto na porta de casa
Polícia vizinhança gente estranha
E uma tia aflita
Que não o deixou entrar.
Cadê minha mãe cadê meu pai
E a exemplo da noiva
A cara dos dois
No dia seguinte
No Diário Popular.

Desde ali
Não teve gosto pra almoço
Nos domingos iguais
àquele que se aproximava
e nem para
os girassóis que ela plantava
e floresciam sempre nessa época.
Cadê minha mãe cadê meu pai
E sua voz de garoto
Ainda é viva aflita
A cada vez que volta
a imagem mais nítida
Que guarda na memória.
“Me perdoa, eu não sei
Onde estava com a cabeça”
Escutou
Na última vez em que o viu
Antes da degola
na rebelião da delegacia
superlotada
Da periferia.
Afaga os cabelos
Do filho pequeno.
Perdão é um girassol
Que não floriu dentro de si.
“Eu não estou
Te criando para isso”,
Mesmo com doçura,
É como se advertisse o menino.
Lá fora,
O domingo vai embora
Derrama no éter da tarde
O sangue da mãe
O da moça
E de todas as outras
Que saíram
Ou não nos jornais.

Junho

Dia azul gelado começa
e o corpo queria mais da cama.
Junho é um cobrador
Que não negocia dívida:
Apresenta a fatura
Do que foi pago
E o que resta do montante;
Um chefe intransigente
Esfregando em nossa cara
Uma lista de pendências.
Esses nossos tempos apressados,
De artificialidades gerais,
Nos cobram a metade vindoura
E a outra, deixada para trás.

Nos perguntam
O que foi feito daquela
Esperança gratuita de ano novo,
Se era fugaz
como as bolhas do espumante
Com que brindamos.
É preciso tirar
Do rascunho
do esboço
da planta
os nossos edifícios,
“Talvez ainda dê tempo até dezembro”,
Insiste um novo ensejo,
Apesar do corpo cansado
Do dia gelado
Que dão fastio
Só de pensar na obrigação
de sair e enfrentar,
até porque em nosso caso
há o seguinte agravo:
pra gente feito nós
nunca foram fáceis
os dias
semanas
meses
anos
séculos de gerações anteriores
que nos legaram
essa construção de vida.

Mas não há remédio
Para gente feito nós.
Continuarmos
Até dois mil e lá se sabe quando
É o que sempre nos coube
Como porta de saída.

Julho

Vai chover! Vai chover!
E na infância
A velha tia
Inventava onomatopeia
Para o bem-te-vi.
Mas na imobilidade
Do estio
O cantar do pássaro
Reverbera sem fruto
No azul calado
e sua monotonia
sem perspectivas
e possibilidades.

No fundo da casa,
Barulho de chaleira
Anuncia café
E a manhã de domingo
Pesa feito pena de pombo
Desprendida do sexto andar.
Quando cessa a chaleira
Fica apenas o bem-te-vi
A querer nos iludir.
No cochilo de um segundo,
Enquanto não servem à mesa,
Julho faz o tempo correr
Sem que ninguém veja ou ouça,
Como se fosse um rio subterrâneo.

Agosto

Folhas duras caem ao modo
De uma lisérgica
Chuva bíblica ressecada.
A depender do ângulo
O tímido sol do inverno cínico
Lhes emprestará
Fantasia de leves
Pepitas de ouro.
Um morno vento breve
As envolve em ciranda
De redemoinho
E quase involuntariamente
pedimos que vá embora
O que é velho
O que acabou
E precisamos aceitar.
Repentinamente otimistas
Enxergamos
Nesse movimento
Incentivo a revoluções
Que comecem
Por nossas próprias vidas.

Colegiais blasfemam
Contra o fim das férias
um cansado herói da segunda guerra
ergue um dedo para
lembrar aos que não viveram seu tempo:
mês de presidentes mortos!,
e os ipês amarelos
berram entre buzinas e motores
da ardida tarde de fumaça no horizonte
e desespero de pássaros
tatus e cobras na reserva em chamas.
Mês do desgosto…
Quanta injúria
Na pobre rima cretina
E no posto de ser apenas
O consolo de que setembro não tarda.

Agosto por Rogério Bernardes, em meu canal no Youtube

…e a boa nova andar nos campos… (Setembro)

Já é setembro, amor.
Corra ao jardim do prédio
e volte com alguma flor que te sirva no cabelo.
Vá antes que apareça o síndico milico reformado
explicar com detalhes que
a convenção do condomínio
proíbe o roubo inocente de flores.
Quando subir, vista aquela saia laranja
de estrelas lilases e círculos vermelhos
que te mostra acima dos joelhos,
e ao piano
toque Chopin para animar e alegrar os anjos.

Eles andam cansados e tristes por causa desse mundo
indiferente às crianças palestinas mortas na guerra
às crianças judias mortas pela estupidez das bombas
às crianças mortas pela insensatez da fome na África
às crianças sírias que aparecem mortas na praia
às crianças pobres abandonadas pelos pais miseráveis
às crianças ricas abandonadas pelos pais ocupados demais.

Os anjos estão desiludidos com o mundo indiferente às crianças às crianças às crianças
e aos velhos espancados pelos filhos e netos queridos
às mulheres tratadas aos chutes
aos homens sozinhos sem sonhos
sem mulheres que os entendam chorar.

Colha flores, toque piano,
porque a morte, quem sabe, em algum ano
poderá vir na primavera,
mas enquanto ela não vier
haverá chance para todos os síndicos de humor cinza chumbo de inverno de concreto armado
para todas as crianças sem infância
e todos os velhos sem paz na velhice.
Para as mulheres
caras solitários
Haverá chance.

Afinal, é setembro, e sempre dá
mais vontade de viver e ter esperança.

Setembro por mim mesmo, em meu canal no Youtube

Outubro

Para além do corte da minha janela
Ocorriam na ordem do silêncio
Sobre a desatenção dos homens
Os fatos relevantes da vida:
a florada do pé de cagaita
Que será fruto amanhã ou depois.
Ainda na folhinha
passava setembro
Quando sonhei que adormecia
À sombra de um desses
Deitado em um lençol amarelo
De polpa madura.

No sonho, eu –
Pescador curtido de sol
Homem do povo – descobria
A imagem de Nossa Senhora preta
No leito do rio.
Acordei então
Com aqueles quereres sagrados
De libertar os oprimidos,
Enquanto a primeira cigarra do ano
Anunciava o cerrado redivivo
E meu vizinho subia a rua assoviando
Aparentemente em paz
Levando o frango assado
Para o almoço de domingo.

Novembro

Ainda nem bem choramos nossos mortos
E a decoração ostensiva do shopping
antecipa a obrigação de se pensar:
O que faremos para a ceia de Natal?
Como agradar quem não come carne?
Colocaremos ou não passas no arroz
Maçãs na maionese?
Seus pais virão passar conosco?
Depois de tudo nesses últimos anos
Seu cunhado ainda pensa daquele jeito?
Na casa de quem interpretaremos
A comédia de horrores
de parecermos bem,
Alegres e esperançosos
no réveillon,
escamoteando
A verdadeira vontade
de ir para a cama
Antes da meia noite.

Calamos
O que verdadeiramente grita:
essa impressão anual
(incômoda feito
presente que se precisa
trocar)
De ciclo se encerrando
Sem que lhe fosse dada
A devida utilidade,
De água indo sem proveito
pelo ralo ao fim de mais uma translação,
Enquanto empregados temporários
Arrumam no magazine popular
O ringue em que cristãos
Disputarão aos tapas
socos e golpes baixos
panetones em promoção.

Dezembro

Andorinhas apressadas
Encerram o dia
E o verão é recém-inaugurado
Com suas nuvens
róseas e alaranjadas
suas paredes mornas
temperando
a chegada da noite
com a mistura
de esperança e tristeza,
típica da época.

Volto a passos lentos
De enfrentar o mundo
O leão que matei hoje
O mesmo de sempre
Que até morre sempre
Mas que invariavelmente
Me arranca nacos da carne da alma.
Toda última semana do ano
Me parece um corredor
Deserto e escuro
De um segundo andar,
Onde uma porta entreaberta
Lá no final
Deixa escapar uma luz branca
De cozinha
Um bater de talheres
um falatório confuso de TV
uma criança chorando
para a impaciência dos pais.
Repare bem se te acontece o mesmo:
Em todo dezembro
Eu, com minhas solas gastas
E seu ruído oco e seco,
tento abandonar o que não sou mais
para procurar
o que preciso ser.

A série de poemas Calendário foi escrita entre março de 2023 e fevereiro de 2024

André Giusti

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